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nada levará consigo

 

Por gabriel carvalho

 
arte: lara soares

acordei numa cama que não era minha. gelada e dura, diferente da que me deitei. meu cobertor agora era uma lona grossa, que me cobria da cabeça aos pés. em meio à escuridão, ouvi duas vozes conversarem. “me ajuda aqui”, uma falou para a outra. “o pessoal da funerária tá esperando lá embaixo”. naquele instante, a ficha caiu. morri.

me puxaram pelos pés e me colocaram no que parecia ser um carrinho, dado ao ranger de uma roda emperrada. “já assinou a liberação lá em cima?”, perguntou a mesma voz de antes. “sim. tá tudo certinho”, respondeu uma terceira.

antes de enfim me tirarem daquele saco preto, ouvi : “o svo já resolveu tudo, então é só limpar e esperar”. assim que o zíper se abriu, senti um cheiro ardido de produto químico. me deitaram em uma mesa de metal e me deixaram completamente pelado e me chacoalharam igual boneca de pano para passar desinfetante. quanta humilhação. “o velório vai ser quando?” a pergunta teve como resposta um dar de ombros. “a família ainda tá resolvendo com a prefeitura, esses perrengues de funeral gratuito, sabe?” nunca juntei dinheiro para isso. se o que eu ganhava mal dava pra viver, imagine pra morrer.

seguiram com uma sequência de cortes, injeções e suturas. aspiraram meu abdômen e encheram meu nariz e garganta de algodão para que eu não vazasse no caixão. nunca pensei que ficaria triste por não poder vomitar. me lavaram e me maquiaram – morrer não é desculpa pra ficar feio – para que eu ficasse com uma aparência mais viva. queria um espelhinho para ver como ficou. trocaram todo meu sangue por formol, para que eu durasse até que a concessionária da prefeitura resolvesse onde seria meu eterno descanso.

dormi na geladeira sem coberta ou lona, esperando. no outro dia, recebi os últimos adeus. “só tem essas velas?”, ouvi dizerem. “só. eu consegui mais algumas flores, ao menos”, responderam. quando o cortejo saiu, passou por grandes mausoléus e imponentes túmulos de mármore, com famílias inteiras reunidas dentro, até chegar numa cova aberta na terra. espero que meu fim não seja esse. antes de descer, vi uma plaquinha de pedra que dizia “salmos 49, versículo 17: ‘quando morrer, nada levará consigo.’”

colaboradores: nathalia paiva, auxiliar de necropsia; e funcionários do cemitério municipal da saudade, do serviço de verificação de óbitos da capital (svoc) e do grupo maya, que preferiram não se identificar.

O claro! é produzido pelos alunos do 3º ano de graduação em Jornalismo, como parte da disciplina Laboratório de Jornalismo - Suplemento.

Tiragem impressa: 5.000 exemplares

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