Foi ainda menina, “com nove para dez anos”, que Jaciara teve o primeiro contato com alisamento de cabelo. Hoje, aos 22, ela conta que desde criança sente o incômodo que seus fios causam em outras pessoas. Uma dessas foi sua tia, que pediu permissão à mãe da jovem para usar um produto que ajudaria a “soltar seus cachos”. O resultado, porém, não foi o prometido. Ao lavar o cabelo, Jaciara percebeu que ele já não era como antes: “Tinha alisado completamente. Eu chorei tanto”.
Com o novo visual, Jaciara virou “motivo de chacota” na escola. Em busca de aprovação, optou pelo alisamento. Mas o que ela conseguiu após quase dez anos de química foram fios fracos e quebradiço. Diante desse cenário, decidiu encarar a transição capilar.
E a mudança foi radical: cortou curto, deixou crescer naturalmente e reconstruiu a relação com seus fios. “Na época do corte, tinha muito medo do que iriam falar. No primeiro mês, eu mal saía de casa por vergonha”, revela Jaciara.
Mas o corte não é a única opção para quem deseja assumir as ondas. Almiro Nunes, fundador da Clínica dos Cachos, salão especializado em cabelos cacheados e crespos, diz que a transição pode se dar aos poucos. Para evitar restrições como as vividas por Jaciara, ele sugere o uso de faixas, turbantes ou penteados diferentes.
Almiro conta que a maioria das mulheres que chega ao salão querendo deixar a química para trás deseja “conhecer o próprio cabelo”. Assim como Jaciara, as mulheres costumam ser apresentadas ao liso artificial já na infância, então não sabem nem por onde começar a cuidar dos fios naturais, diz o cabeleireiro.
Já a psicóloga Ivani Oliveira, que em seu mestrado estudou a transição capilar em mulheres negras, explica que a imposição pelo liso “surge antes mesmo do nascimento, durante a gestação, com manifestações de anti negritude direcionadas ao bebê. As expressões manifestam o desejo de que o cabelo da criança não seja crespo”.
“Ensinadas” a admirar e perseguir o liso perfeito, muitas mulheres sentem desconforto com suas ondas. De acordo com dados levantados em 2017 pela multinacional de painéis de consumo Usage Care Panel da Kantar, apenas 4,9% das mulheres brasileiras se sentem satisfeitas com seus cabelos naturais.
Há também outros motivos que levam as mulheres a optar pelo alisamento, como no caso de Denisy Almeida. Africana, a moradora das Ilhas de São Tomé e Príncipe começou a alisar os fios aos 11 anos, por entender que seria mais barato manter o liso do que fazer tranças. Almiro destaca que, em alguns casos, essa promessa de praticidade aparece para encobrir o racismo, verdadeiro motivador dessa onda de negação dos crespos e cacheados. Denisy explica que a motivação para mudar veio quando percebeu que “aquele, na realidade, não era mais o meu cabelo de tanta alteração”.
Um novo olhar
Depois de um período de predomínio do liso imposto, a tendência parece começar a mudar. Na internet, esse movimento já dá os primeiros sinais. Segundo o Dossiê BrandLab do Google, de 2015 a 2017 a busca por “transição capilar” cresceu 55% na plataforma. A pesquisa aponta também que a busca por cabelos cacheados ultrapassou a procura por lisos pela primeira vez no país.
Almiro sente essa mudança no dia a dia de trabalho. Segundo o cabeleireiro, há dez anos o salão apresentava uma média de 10 a 12 clientes novas por mês. Hoje, esse número chega a 600 — desses, 30% chegam em busca da transição capilar. Ele acredita que essa mudança reflete um novo momento da sociedade, marcado pela representatividade: “Em tudo quanto é propaganda, na televisão, nos outdoors, você vê mulheres negras de cabelo crespo, mulheres brancas de cabelo cacheado. Tudo isso influencia”.
Em meio a todo esse processo, há um ponto que liga todas as entrevistadas e centenas de relatos colhidos em grupos temáticos nas redes sociais: o resgate da autoestima. A transição capilar costuma aparecer como uma aliada nessa busca pela aceitação e amor próprio.
A pesquisadora Ivani observou que após o período transicional o pensamento e a atitude dessas mulheres se transformam: “As mudanças mostram mulheres confiantes que se sentem bonitas e fortes”.
Luciana, maranhense que iniciou o alisamento motivada pelo bullying que sofria, conta que, hoje, após ter finalizado a transição, sente que “renasceu”. Ela diz que, se pudesse dar um recado para quem pretende começar ou está passando pela transição, diria: “Não deixem que os outros te desanimem. Cuidar da nossa imagem é importante, mas cuidar do nosso interior é muito mais. Ter uma autoestima boa é transformador”.
Denisy Almeida concorda que as mulheres devem se blindar das críticas. “Não liguem. Bonito mesmo será o seu sorriso ao ver que sua transição chegou ao fim. Quando vir que valeu a pena e você não desistiu da sua meta. Eu sou muito mais feliz hoje comigo e com meu cabelo.”
Colaborou: Laís Sobral