A série de televisão britânica Black Mirror, famosa por trazer temáticas absurdas que acabam fomentando o debate público, trouxe no último episódio da sua 5ª temporada, estreada em 2019, a história fictícia de Ashley O, uma famosa cantora que, após adoecer, entra em estado de coma, sendo então substituída por um holograma.
A trama gira em torno da ganância da produtora em continuar lucrando com a imagem da artista, mesmo não tendo voz ativa nas novas produções e performances. Seus shows agora são comandados por um holograma à imagem da cantora, que imita seus movimentos e suas músicas. Apesar de parecer uma situação bastante futurista, a realidade não está tão distante.
A primeira aparição de um holograma na cultura pop foi no primeiro Star Wars, de 1977, em que é possível ver que a técnica depende de um aparato de projeção, possui imagens animais e simula a presença física. Depois dessa cena, outras situações similares foram criadas no cinema, em especial com a temática de ficção científica.
E fora das telas?
O maior marco holográfico na indústria de shows é o do rapper Tupac Shakur, reproduzido na 13ª edição do festival Coachella, na Califórnia, Estados Unidos. A apresentação ocorreu em 2012, quando o artista já havia falecido.
Um ano depois, Cazuza foi projetado com a mesma técnica em dois shows gratuitos, um no Parque da Juventude, em São Paulo, e outro na Praia de Ipanema, no Rio de Janeiro. Olhando a platéia, era um show como todos os outros: luzes de celular vibrando no ritmo da música, coro em todos os refrões e até mesmo lágrimas emocionadas. O parque lotou com 40 mil pessoas, e na praia havia uma legião até onde dava pé no mar, com 500 mil espectadores.
Fã do cantor desde a época em que ele era integrante do Barão Vermelho, Rosana Mancini o conheceu pessoalmente após uma apresentação em 1986 e fez questão de ir nos dois shows holográficos. Ao olhar para os palcos em 2013, ela teve sentimentos mistos: apesar de saber se tratar de uma projeção, a emoção batia forte em forma de nostalgia e saudosismo.
Ela conta que o holograma até interagia com o público, reproduzindo gravações de shows anteriores, porém causava certa estranheza nos momentos em que a música acabava, pois era desligado até retomar na próxima canção. Apesar dos gaps tecnológicos, Rosana confessa que se emocionou: “Me vi cantando e chorando ao lado de um desconhecido, unidos pelo amor a Cazuza”.
Quem tem direito sobre o holograma?
Reproduzir a imagem de uma pessoa não é a mesma coisa que tocar um CD com as músicas dela. Nesse caso, estão envolvidos o direito de personalidade e propriedade intelectual, tratados de maneira diferente pela lei.
Quando a pessoa já morreu, a família passa a ter os direitos sobre a imagem da pessoa, enquanto a obra (músicas, escritos, etc), pode estar sob domínio de uma empresa. Nos dois casos, a reprodução em holograma segue tal como seria pedir para um artista se apresentar: é preciso pedir para quem tiver os direitos (parentes, gravadora, etc) e pagar.
Um novo espectro de artista
Ao contrário de Rosana, Amanda Lumi foi a um show para encontrar sua idol mais viva do que nunca. Hatsune Miku é uma ídolo pop japonesa que tem um diferencial: é e sempre foi completamente digital, ganhando vida através da técnica de hologramas.
Em um pocket show de pouco mais de 30 minutos no Anime Friends de 2018, no Anhembi, a artista gerou gritos de animação com seus pré-gravados “Oi” e “Obrigada”. E, diferente de artistas de carne e osso, uma rápida transição junto com cenário basta para aparecer com um novo figurino e pronta para a próxima música.
Assim, a distância entre o virtual e o real fica ainda menor com a técnica dos hologramas, questionando a nossa concepção do que é ser artista. “Toda existência dela depende de uma programação prévia, então acho que é o mais próximo que eu conseguiria chegar (da idol)”, conta Amanda.
Colaboraram:
Amanda Lumi, graduanda de Biblioteconomia na ECA-USP e fã de Vocaloid.
Claudia Torres, produtora cultural que executou a planilha orçamentária do holograma do Cazuza no Projeto GVT Music Live: Cazuza
Eduardo Tomasevicius Filho, professor de direito civil na USP
Júlia Ticianelli, advogada pós graduanda em propriedade intelectual
Roberto Tietzmann, professor de Comunicação da PUC-RS, com especialização em imagem e tecnologia aplicada
Omar Marzagão, produtor cultural e curador do Projeto GVT Music Live: Cazuza
Rosana Mancini, fã do cantor Cazuza
Samara Kalil, jornalista e autora do doutorado “Comunicação e Hologramas de Entretenimento: Representações de artistas mortos em palcos de shows de música ao vivo”