
Arte: Gabriel Eid
Em 1967, os brasileiros foram surpreendidos pela Lei de Censura, que decretava que qualquer cidadão seria livre para manifestar seu pensamento. Em letras miúdas, se contrariava: o disposto não se aplica a espetáculos, diversões públicas, jornais e rádios.
Com a sanção, surgia um aparato burocrático chamado Divisão de Censura de Diversões Públicas. Concurso ou nomeação era o meio de se tornar funcionário do órgão. Assumido o cargo, o censor tinha a função de analisar montes de papelada diariamente, rasurando o que perturbasse a moral pública.
Sua lista de itens reprováveis era razoavelmente longa, e variava de funcionário para funcionário. As obras vetadas pelo censor poderiam ser, no futuro, liberadas por um outro com poucas alterações, desde que o artista lançasse mão de certas gambiarras. Duplo sentido, cenas sexuais e palavrões buscavam distraí-lo para preservar trechos mais fulcrais da obra.
Ledo engano, o censor percebia. Quem ousava no vocabulário recebia rasuras enérgicas e até proibição, e assim foram vetadas mais de 13 mil músicas. Expressões fora da norma culta irritavam-no, porque além de ter uma pilha enorme de trabalho, ainda tinha de ler obras de quem “não sabia escrever”, explica a professora da UFPR Miliandre Garcia. Mas os “erros” por vezes eram propositais, como na música “Tiro ao Álvaro”, letra de Adoniran Barbosa que fala em “tauba” e “revorve” para simular um sotaque popular.
O que o aborrecia mais ainda era ter que ouvir esse vocabulário fora do escritório. Durante a ditadura, surgiram linguagens nas ruas que reagiam à repressão da sociedade, explica a pesquisadora em letras Lívia Marins, como a Gualín do TTK, dialeto carioca do bairro do Catete que inverte sílabas (“língua” vira “gualín” e “Catete” é TTK). Havia também vocabulários de identificação, como o Pajubá, popularizado no período pela comunidade trans. “O dialeto teve um papel de resistência cultural, mais do que de proteção contra a polícia”, esclarece o professor da ECA-USP Eneus Trindade.
O censor só foi questionado quando o Conselho Superior de Censura (CSC) permitiu que a classe artística recorresse aos pareceres. Um dos membros do CSC foi Ricardo Albin, pesquisador de MPB. Ele conta que cada vez foi ficando mais simples refutá-lo, pois o cargo não exigia formação, e por isso eram despreparados.
Mesmo quando recorrer não dava certo, nem tudo estava perdido. Ainda existiam lugares como os cineclubes, onde filmes como os do documentarista Jorge Bodanzky circulavam clandestinamente pela Dinafilmes. “Não tinha jeito de proibir; quem queria ver, via”, conta Jorge.