
Arte: Mateus Cerqueira
– Delegado, minha filha sumiu já faz cinco horas.
– Tem que esperar 24 pra fazer o B.O.
– Tudo isso?!
– Sua filha tem quantos anos?
– Tem 20.
– Ih, mãe! Fica tranquila, deve tá com um namorado. Daqui a pouco ela volta.
– Minha filha não namora, seu delegado. Não vou ficar esperando, preciso procurar por ela.
– Mãe, a gente não conhece os filhos que tem, ainda mais essas meninas de hoje. Ela faz o que da vida?
– Estuda artes plásticas, doutor. Passou na federal mesmo tendo feito escola estadual a vida inteira.
– Tá explicado. Artista é tudo doido!
…
– Boa tarde, dona delegada. Minha filha sumiu faz seis horas e preciso que comecem a procurar por ela!
– Mãe, são 57 desaparecimentos por dia em São Paulo. Daqui a pouco ela aparece. Se não, você vem aqui fazer o B.O. depois de 24 horas.
– Já ouvi isso hoje e não arredo o pé sem o boletim.
– Ai, tá bom, espera ali.
…
– Já faz dez horas que ela sumiu!
– Quando foi a última vez que você viu a menina?
– Ela saiu pra trabalhar às sete e meia. Vi na câmera que tem perto do ponto e fui na companhia de ônibus, ela nem chegou a entrar.
– Certo. Fiz o B.O. aqui. Depois é só levar na Delegacia de Desaparecidos. O resto é com eles.
– Obrigada, doutora! Agora vocês já vão procurar, né?
– Tem que ver na Desaparecidos.
– Mas o que eles vão fazer com o B.O.?
– Não sei, mãe. Desaparecimento não é crime, não tem lei dizendo como funciona pra investigar, não.
…
– Moça, deu entrada uma menina aqui? 20 anos, negra, cabelo preto, 1,60. É minha filha! Desapareceu semana passada!
– Deu sim, no pronto-socorro, mas tem um problema no registro, não sei pra onde ela foi. O sistema aqui não funciona muito bem, tem gente que não registra a alta direito. Transferência então…
…
– A gente está investigando sim! Mas não tem como o hospital saber que ela tava desaparecida: não existe um cadastro geral, não dá pra acessar os outros sistemas do governo, a coisa não conversa. O melhor é a senhora continuar indo nos IMLs, nos hospitais…
…
– Olha, nenhum aqui bate com a descrição, mas já faz um mês, deve ter ido pra um cemitério. Eles têm seções de corpos assim, mas é bem bagunçado. Tem que ver também em outros IMLs, mas não adianta ligar só, não vão te falar. Vai lá!
…
– Quando vai ao ar aquela matéria que vocês fizeram aqui em casa, sobre minha filha desaparecida?
– Oi, mãe! eu lamento, mas a pauta caiu, não vamos mais passar ela no jornal.
– Mas vocês me pediram a entrevista tão em cima da hora, isso ia ser tão importante pra mim, faz um ano que tento colocar minha filha no jornal!
– Desculpa, mãe. É que esse assunto não está em pauta.
…
– Vocês podem postar essa foto nova? É minha filha com 30 anos. Sabe, nem reconheço ela na foto, mas a polícia fez assim, com as técnicas deles lá…
– É, mãe. A gente sabe como é.
…
– E aí, mãe, faz 27 anos. Depois desse tempo todo, a senhora ainda tem esperança de encontrar sua filha?
– Se você me fizesse essa pergunta cinco anos atrás, eu encerraria a nossa conversa aqui. Mas, hoje, eu sinto que ela pode ter partido. Aceitar isso dói, é como ser cúmplice de uma morte. É como se parar de buscá-la fosse desistir da vida da minha filha. Queria poder seguir em frente, igual a irmã, o pai. Mas não dá. Eu daria tudo, tudo pra que alguém me dissesse “sua filha virou um zumbi na cracolândia”. Eu só não posso morrer sem resposta!
COLABORADORES: Ivanise Espiridião, da ONG Mães da Sé e mãe da Fabiana, Vera Paiva, membro da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos e filha de Rubens Paiva, Sandra Moreno, fundadora do Instituto ímpar e mãe da Ana Paula, e Eliana Vendramini, Coordenadora do Programa de Identificação e Localização de Desaparecidos, dados do G1