Arte: Bianca Muniz; foto: Vinícius Mendonça – Ascom/Ibama; Pixabay
A terra arde. Flamas subterrâneas aquecem a semente de Bulbostylis paradoxa. Adaptada ao ambiente hostil, a flor popularmente chamada de “Cabelo-de-índio” germina apenas na presença do fogo. Embora natural do Cerrado, ela pode ser encontrada em regiões mais secas do Pantanal, bioma que está tomado pelas chamas desde julho de 2020.
Em uma escalada na intensidade das agressões de origem humana, nem mesmo as adaptações naturais são suficientes para que o ambiente resista às queimadas. Há mais de 35 anos como morador de Cáceres, a 220 km da capital Cuiabá, o biólogo e professor da Universidade Estadual de Mato Grosso Claumir Muniz não se recorda de presenciar algo dessa dimensão.
A temporada de queimadas deste ano no Pantanal já é a pior da história desde o início dos registros, em 1998. O Inpe reportou 19.140 focos de calor em 2020, até 5 de outubro. O número supera os 17.489 focos acumulados nos três anos anteriores: 2019 (10.025), 2018 (1.691) e 2017 (5.773).
O também biólogo e professor da Universidade Federal da Integração Latino-Americana Cleto Peres destaca as perdas de fauna e flora. Dentro desse “capital de biodiversidade” destruído pelo fogo, estão muitos organismos desconhecidos que poderiam ter um potencial a ser explorado, por exemplo, pela medicina.
A morte de biodiversidade impacta os habitantes do Pantanal, em especial, os indígenas. Em meio a cardumes intoxicados e a mananciais acinzentados, os Guató, povo nativo da região, perderam fonte de alimento e água, denuncia a líder indígena Alessandra Guató.
Ao lamentar o fato de 87% dos 19 mil hectares de terra do seu povo terem sido consumidos pelas queimadas, ela conta que sua comunidade recolheu mudas nativas para reflorestar o território em uma tentativa de remediar a situação.
Para avaliar o estrago, o Senado criou uma comissão, cujo presidente, Wellington Fagundes (PL-MT), prioriza a criação de um estatuto para regulamentar o uso do solo e a conservação do bioma. Sem data para aprovação, ele complementará o Código Florestal, “que cita o Pantanal apenas em uma linha”, alfineta o senador.
Além das ações humanas, há uma resiliência natural do bioma que pode reestruturá-lo em cerca de 40 anos, estima Peres. O tempo de resposta é prolongado pelo impacto das queimadas nas sementes locais e na fauna, morta ou expulsa de seu habitat pelas chamas.
Mesmo que a estrutura pantanosa seja retomada, ela não será mais a mesma, complementa o biólogo. Espécies adaptadas à região alagada do Pantanal podem não resistir ao fogo, restando só as que conseguem sobreviver às chamas. A “cabelo-de-índio” ainda florescerá, mas cercada de menos vida e em um ambiente mais inflamável.
Esse embate entre natureza e destruição foi captado pelo fotógrafo Araquém Alcântara durante a sua estadia de duas semanas no bioma, em setembro. Enquanto permeava o Mato Grosso, Araquém se deparou com uma onça sobrevivente do fogo, “deitada na postura da Esfinge de Gizé sobre uma área totalmente queimada”. A cena lhe expôs que “apesar de toda a morte, a natureza resiste e se recompõe”.