Lobisomem – ou licantropo -, é uma lenda nascida na mitologia grega, segundo a qual um homem pode se transformar em lobo em noites de lua cheia, só voltando à forma humana ao amanhecer.
Sentada no sofá de casa, via meu irmão na parede oposta da sala. Concentrado em uma revista, ele se mantinha estático, com a respiração desacelerada. Antes, inquieto, parecia um bicho buscando incessantemente uma maneira de se instalar. Era uma daquelas noites claras, não sei se de lua cheia, mas o silêncio era absolutamente harmônico.
Sabia que minha irmã me observava, quase que adimirada. Dali, daquela poltrona desconfortável, compartilhava com ela a tranquilidade do ócio. A medida que passava meus olhos pelas letras das páginas, notei que, aos poucos, minha visão se tornava turva, como se estivesse dentro d’água. Fechei os olhos, quando os abri, percebi que estava no corpo de um enorme cachorro.
Em psiquiatria, licantropia é um distúrbio no qual indivíduo pensa – por alguns instantes – ter se transformado em um cão ou lobo. É tratada pela medicina como uma psicose presente em uma parcela mínima da população mundial. Quando em uma experiêcia licantrópica, o indivíduo se comporta de forma desconexa, imitanto um animal. Segundo relatos, o paciente consegue se perceber, de forma detalhada, no corpo de um cão ou lobo. Há ainda aqueles que narram experiências com outras expécies de seres vivos. Para tal fenômeno, dá-se o nome de zooantropia .
Num susto, meu irmão começou a se contorcer na poltrona. Subitamente, estava encharcado em suor, urrando. Parecia que dentro dele havia algo que quisesse sair. Fiquei com medo de me aproximar. Aos murros contra si mesmo, gritando sons guturais impossíveis de serem compreendidos, eu não sabia como interceder na dolorosa agonia de meu irmão. Tentei detê-lo, mas fui recebida como um cachorro recebe quem tenta tocar em seus filhotes: com uivos e violência.
Quando abri os olhos, notei que era um quadrípede. Meu corpo era protegido por pelos que me privavam do frio daquela noite clara, sem cores. Via a lua, sentia cheiros ao meu redor. De repente, fui tomado por uma dor em todo o corpo. Ante o meu desespero, notei que uma mulher me agredia, ininterruptamente. Sem desistir, lati e uivei, tentava chamar minha matilha, inutilmente. Aos poucos, me acalmei, com minhas patas machucadas, caminhei até o canto onde permaneci, alerta, imóvel, preparado para qualquer nova investida do meu predador. Eu era um bicho selvagem, solitário, indefeso em uma noite na qual não havia onde se esconder. Ao ameaçar um novo ataque, fugi.
Acredita-se que as contribuições culturais influenciam fortemente o conteúdo das psicoses e de experiências licantrópicas. A interação entre a natureza humana e a cultura na qual o indivíduo é imerso é inevitável.
Depois da violência, ele se instalou em um canto, acuado, assustado. Resolvi não abandoná-lo, e fiquei observando sob a perspectiva de quem tenta capturar um animal. Ele, que se sustentava sobre joelhos e mãos, não me olhava nos olhos, buscava uma rota de fuga. Tentei mais uma vez me aproximar. Meu irmão, atacado, fugiu lentamente, movimentando o corpo de homem como se fosse um cão. Até que desmaiou.
Ao acordar, percebi que estava banhado em suor. Ao voltar à realidade, notei que fui por alguns instantes um cão. Com patas, pelos e medos, uivei e lati pela minha matilha, que não conseguiu me acudir ante os ataques de uma mulher, que até se parecia com o minha irmã. Ela, por um acaso, não conseguiu acreditar na minha experiência: exerci a licantropia.