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Minha flor do gravatá

 

Por Rafael Sampaio

 

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Arte por Gabriella Sales e Mariana Catacci

 

O velho Renato só contava piadas sujas. Parecia não levar nada a sério.

 

– Faz uma pergunta séria ?

 

– Qual o sentido da vida ? – perguntei por perguntar.

 

Pensou…

 

– Liga pro Chico.

 

Liguei.

 

“A vida é sobreviver.” Com a morte do pai, Chico precisou ajudar os oito irmãos. Em 1970, com 22 anos, saiu de Teresina e foi até Altamira no Pará “abrir a rodovia Transamazônica”. De lá, foi vender relógios no Maranhão, viu um colega ser carbonizado enquanto ambos reparavam uma rede de alta tensão, perdeu um dedo em uma fábrica paulista. Aos 73 anos, ainda sobrevive, limpando banheiros públicos. Valeu a pena ? “Se eu não desisti… mas cê devia falar com a Mazé.”

 

Falei.

 

“A vida pra mim é o cheiro da flor do gravatá”. Explica, Mazé. “Vim da Bahia, conquistei muito em São Paulo, só me falta o gravatá.” Há 50 anos, Mazé saiu de casa “em busca de uma vida melhor”. Insisti no gravatá. “Perto do rio que lavava roupa com minha mãe, no quintal que brincava com meus irmãos, enfeitando a praça nas festas; a flor do gravatá sempre tava lá.” 

 

Queria saber o cheiro da flor do gravatá… 

 

Conhece, Lenira ? “No Recife não tem dessa flor.” Dona de uma floricultura, Lenira tem 70 anos. Casou mocinha, vivia para os quatro filhos e o marido. Então, ficou viúva. “Era feliz e acabou.” Acabou ? “Comecei outra vida, abri a floricultura.” Igual a 40,5% dos lares brasileiros, Lenira virou a chefe da casa. Nada é permanente ? “Minha amiga Cândida diz isso, liga pra ela”

 

Liguei.

 

Aos 20 anos, em 1971, Cândida já lecionava no ensino fundamental. Teve milhares de alunos, “precisei entender que nada é pra sempre”. Sobre voltar no tempo. “Pra quê ? Besteira… pra ver tudo acabar de novo.” Sobre a velhice ? “Tem que aceitar, ficando bem velhinha, com minhas próprias pernas, vou pra um asilo.”

– Descobriu o sentido da vida ? – perguntou o velho Renato ao me encontrar.

 

– Nem devia ter procurado…

 

– Olha… entrei na GM em 1978. Sabe aonde todos os negros feito eu ficavam? Na fundição. O pior lugar. Trabalho pesado, calor infernal. Sabe porque isso ? Porque negro foi feito pra fazer serviço pesado. Conheci três chefes negros em 35 anos de empresa. Ainda hoje, no Brasil, os negros mal ocupam 30% dos cargos gerenciais. Indignado, virei sindicalista. Lutei por mudanças. Claro que perdi também, nunca fui promovido. Mas isso fez e faz sentido pra mim.

 

Acho que Renato encontrou a flor do gravatá dele… só espero não pisar na minha quando ela aparecer.

 

Colaboraram: 

Cândida Campos (70)

Francisco Costa (73)

Lenira Gonçalves (72)

Maria José “Mazé” Jesus (70)

Renato Bento Luiz (74)

Fontes:

Retratos das desigualdades de gênero e raça, IPEA, 2015

Desigualdades sociais por cor ou raça no Brasil, IBGE, 2019

 

O claro! é produzido pelos alunos do 3º ano de graduação em Jornalismo, como parte da disciplina Laboratório de Jornalismo - Suplemento.

Tiragem impressa: 5.000 exemplares

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