Quando a maçaneta da porta girava, Cirilo sumia. Assim que os pais da garota saíam do quarto, como num passe de mágica, o amigo voltava à brincadeira. Não é que não pudessem saber o que os pequenos faziam. Eles sabiam. Mas, todas as vezes em que viam a interação, diziam que, em algum momento, a filha teria que substituir o companheiro por outras pessoas, talvez pelos vizinhos. Alguém que pudesse ser visto.
Aos 6 anos, pela miopia, foi encaminhada para a primeira fileira da sala e encontrou uma amiga para todas as horas. Nesse dia, sem nenhum adeus, Cirilo foi embora. Darah não chorou.
Sua história, tão pessoal, é compartilhada por outras tantas pessoas: cerca de 65% das crianças de até 7 anos têm um amigo imaginário, segundo dados da Universidade de Oregon de 2008. A figuração começa por volta dos 3 anos, quando a capacidade de contar histórias, criar vínculos afetivos e crer em seres mágicos se inicia. O término, por outro lado, ocorre quando há o amadurecimento cognitivo e a diferenciação entre subjetividade e realidade, explica o psicólogo especializado em desenvolvimento infantil Mateus Amaral.
A amizade invisível de Darah aconteceu no final dos anos 1990. Com o passar do tempo, as portas da imaginação ganharam maçanetas automáticas, e os amigos invisíveis acompanharam esse processo.
Laís* (5) e Mariana* (7) acordam e correm para encontrar o celular de sua mãe. Selecionam o melhor enquadramento e apoiam o aparelho na pia: seus amigos não podem perder o ritual de escovar os dentes enquanto relatam detalhadamente seus sonhos. Imaginando o público que as vê, a câmera segue as irmãs das aulas de natação à hora de dormir.
Os meios mudaram, mas a razões para personificar um público inexistente, não: as crianças buscam ter companhia, expressar emoções ou experimentar identidades distintas. A diferença está no acesso precoce à internet. A geração Alpha, altamente conectada às redes sociais, tem, desde bebês, estímulos tecnológicos presentes em suas vidas, o que se reflete na forma como imaginam o mundo ao seu redor. Também, na naturalidade em estarem sempre sendo vistos.
As garotas desenvolveram vista cansada e o tempo de tela é supervisionado pela mãe Thalita*. O monitoramento dos aparelhos funciona como prevenção do vício, que, ao se estabelecer, deve ser tratado por um psicólogo, alerta Mateus. Mas há outro medo, que se manteve nos últimos 30 anos: o isolamento das filhas.
A confusão entre realidade, imaginação e mundo virtual é quase inerente à nova infância, e o papel dos adultos é dar suporte na compreensão do mundo, sem julgamentos, enquanto estabelecem limites para segurança dos pequenos e os apresentam novas possibilidades sociais. É ver o que eles não conseguem e direcioná-los quanto ao invisível, girando maçanetas em direção ao visível.
*Nome fictício
Colaboradores: Natália Veludo, doutora em psicologia comportamental infantil especializado em amigos imaginários; Lívia, educadora e mãe de Darah; Priscila, mãe de crianças com amigos imaginários