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Não se vê, mas existe

 

Por Isabella Oliveira e Rosiane Lopes

 
Arte: Lívia Magalhães

Quem dera a capa da invisibilidade não fosse só ficção. Todos se esconderiam e existir talvez fosse mais fácil. Só que na vida real as coisas não se resolvem como nos filmes. Aqui, a magia não está em artefatos encantados, mas sim no que enxergamos e no que não vemos. 

Crenças, histórias, sensações e sentimentos passam tão despercebidos pelo olhar humano que parecem não estar lá. Nesse contexto, o claro! Invisível questiona a ideia do ‘se eu não vejo, não existe’. Afinal, muito do que é caracterizado como imperceptível apenas escapou de nossa visão.

Nas próximas páginas descobriremos, por exemplo, que acreditar na força do universo talvez seja o elemento que faltava para realizar um grande desejo, mas cuidado, isso é um segredo. Além de mergulhar no movimentado mercado de trabalho dos fantasmas e perceber que a companhia perfeita pode ser fruto da imaginação.

Nesta edição, convidamos os leitores a romperem a barreira entre o visível e o invisível ao se concentrarem em histórias que, intencionalmente ou não, deixamos de enxergar. Abra a mente. Há muito o que encontrar por baixo da capa.

Expediente – Reitor: Carlos Gilberto Carlotti Junior. Diretora da ECA-USP: Brasilina Passarelli. Chefe do departamento: Luciano Guimarães. Professora responsável: Eun Yung Park. Capa: Carolina Borin e Lívia Magalhães. Editoras de conteúdo: Isabella Oliveira e Rosiane Lopes. Editora de Arte: Carolina Borin. Editora Online: Júlia Castanha. Ilustradoras: Caroline Kellen e Lívia Magalhães. Diagramadores: Amanda Marangoni, Antônio Misquey, Beatriz Sardinha, Bianca Camatta, Gabriel Gama, Lara Paiva, Maria Carolina Milaré, Mariana Carneiro e Rodrigo Tammaro. Repórteres: Diogo Bachega, Duda Ventura, Gustavo Assef, João Francisco Aguiar, João Pedro Barreto, Julia Custódio, Junior Vieira, Karolina Monte, Larissa Leal, Laura Guedes, Lorraine Moreira, Matheus Nistal, Natalia Nora, Rebeca Fonseca, Renato Brocchi, Thiago Campolina e Victoria Borges. Revisores de texto: Emilly Gondim e Valentina Moreira, Endereço: Av. Prof. Lúcio Martins Rodrigues, 443, prédio 2 – Cidade Universitária, São Paulo, SP, 05508 920. Telefone: (11) 3091- 4112. O claro! é produzido pelos alunos do quinto semestre de Jornalismo como parte da disciplina Laboratório de Jornalismo Impresso-Suplemento.

Quem escreveu isso?

 

Por Julia Custódio e Matheus Nistal

 
Arte: Lívia Magalhães

Um livro está prestes a virar best-seller, mas na capa não há o nome de quem o escreveu, e sim o de outra pessoa, a quem a história pertence. Isso não é um caso para as Cortes, um contrato de confidencialidade foi assinado e o escritor aceita porque a especialidade de um fantasma é a invisibilidade. No entanto, trabalhar nas sombras pode mexer com o ego.

Saber ouvir, investigar e escrever. Essas são as habilidades principais dos escritores fantasmas, aqueles que estão por trás da escrita de muitos livros que você nem desconfia. Até mesmo Clarice Lispector já foi ghost. Não existem dados sobre o mercado no Brasil, segundo a União Brasileira de Escritores (UBE), por causa do sigilo requerido na profissão. E os fantasmas são irredutíveis: são meses ou anos de trabalho que não podem ser mencionados em portfólio.

Alguns clientes ficam desconfiados na hora de contratar alguém que não pode provar que já fez algum trabalho do tipo. Por isso, a quarta habilidade principal deles  é a modéstia — ou guardar o ego para si — mesmo quando bate orgulho de um trabalho e dá vontade de dizer “Fui eu que escrevi!”.

A rotina é pesada, já que é necessário produzir vários livros simultaneamente para ter um fluxo financeiro estável. É tudo ao mesmo tempo: pesquisa para um projeto; entrevista personagens para uma segunda obra; negocia uma terceira proposta; e, de fato, escreve uma quarta publicação.

Será que dá tempo de sentir frustração por não ter o nome vinculado a todo esse esforço? Andrew Crofts, celebrado fantasma, tem uma resposta interessante: “Quem se importaria que eu escrevi algo famoso?”. Ele argumenta que é difícil imaginar muitos autores — fantasmas ou não — sendo parados na rua para dar um autógrafo, da mesma forma que a equipe por trás de livros autorais não é reconhecida.

A falta de crédito não precisa ser um problema. Claudia Lemes até se sentiu aliviada ao sair do ambiente de escritores autorais — que considera ter muitos egos inflados, publicidades e divulgações em redes sociais — para fazer o trabalho longe dos holofotes. Ela conta que às vezes os clientes oferecem colocar seu nome na capa, mas a escritora nega: “Prefiro ser invisível”.

E é por causa da invisibilidade que as histórias dos clientes — principalmente as de não-ficção — ganham forma e são eternizadas, essas que não seriam escritas por falta de tempo, habilidade ou insegurança. Os fantasmas, além de tudo, devem saber dar um passo para trás e deixar que as memórias e o conhecimento dos clientes possam se destacar, em um processo inverso ao das obras autorais.

Colaboradores: André Roca, ghostwriter; Cinthia Valle, ghostwriter; Jociandre Barbosa, presidente da Editora UNISV; Ricardo Ramos, presidente da UBE.

Sem identidade

 

Por João Pedro Barreto e Laura Guedes

 
Arte: Caroline Kellen

“Eu sou uma pessoa que não existe”. Este é o relato de uma cidadã que passou sua vida inteira invisível para o Estado. Invisível pois não possuía registro civil  – certidão de nascimento ou qualquer outro documento de identificação, como RG, CNH ou Carteira de Trabalho. Esta problemática, que afeta 2,7 milhões de brasileiros, segundo o Censo de 2022 do IBGE, priva os indivíduos de direitos básicos.

A frase acima é de Maria dos Santos*, uma senhora que viveu indocumentada desde que nasceu, até receber um diagnóstico de câncer e ser impedida de realizar um tratamento pela falta de registro. Diante da urgência, conseguiu emitir seus documentos e passou a ajudar outras pessoas na mesma situação. Após falecer em decorrência da doença, foi enterrada em uma cova com seu nome, como desejava. É o que conta a jornalista Fernanda da Escóssia em seu livro “Invisíveis: uma etnografia sobre brasileiros sem documento”.

Quem vive como Maria – sem documentos – não tem acesso a uma série de direitos básicos, como educação, vacinação, voto, sistema de benefícios sociais e aposentadoria. Além disso, não pode ter emprego formal, viajar ou possuir qualquer bem ou conta de banco em seu nome. Os impactos deste vácuo não se fazem presentes só durante a vida, mas também na morte: quando este cidadão morre, é enterrado sem nome.

Enquanto existem pessoas que nunca foram identificadas, outras já tiveram registros algum dia, mas os perderam por circunstâncias da vida. Igor, em situação de rua, conta que precisou “deixar os documentos para trás” quando saiu de sua cidade natal, em Minas Gerais, e se mudou para São Paulo, após ser expulso por sua família. Dependente químico, ele se viu fora da casa e cidade que morava e sem a identidade que um dia teve.

Igor emitiu todos os seus documentos novamente por meio do projeto “Registre-se!”. A ação, promovida pela Corregedoria Nacional de Justiça, no início de maio, tinha a missão de levar cidadania a pessoas em vulnerabilidade. Um dos locais que recebeu  a iniciativa foi o Chá do Padre, na Sé, em São Paulo. Daliléia Lobo, coordenadora do núcleo de assistência social, revela que a expectativa era de receber 50 pessoas diariamente, mas logo no segundo dia foram mais de 200.

*Nome fictício

Colaboração: Tribunal de Justiça de São Paulo

Entre céu e concreto

 

Por João Francisco Motta e Thiago Campolina

 
Arte: Caroline Kellen

Da República ao Largo da Batata, da Paulista ao CEAGESP, da Mooca à Sé. A capital paulista tem cada vez mais seus espaços públicos preenchidos por pessoas em situação de rua. Em 2022, o Ipea estimou 281 mil pessoas vivendo assim no Brasil. São Paulo abriga quase um quinto desse total, segundo o CadÚnico. O Censo Municipal da População em Situação de Rua de 2021 aponta o centro como o maior polo, especialmente Santa Cecília, onde essa população chega a 5.006, e a República, com 2.656. 

Gustavo Brito, 35, começa mais um dia pedindo um salgado na Consolação. Quando começa a conversar, pede um cigarro, que queima em sua mão enquanto conta sua vida. O pó o levou à rua, o crack o deixou lá. Morador há quatro anos, ele fala que o centro é atraente pela maior oferta de comida, empregos, políticas públicas e apoios – até só tomar um banho. A urbanista Jussara Martins explica como pequenas ajudas são um possível paliativo, já que as políticas de assistência não atendem à crescente demanda. 

Perto dali, Juliano Soares está deitado em seu colchão em uma esquina na Oscar Freire, falando no telefone enquanto faz sua sesta. Nascido na rua e conhecido pelos vizinhos, arranjou um “bico” em uma loja e quer comprar uma barraca para ficar na segurança da rede de apoio que achou no bairro e em seus moradores. 

Entretanto, a sorte de Juliano não é a de todos. Arranjar um emprego sem endereço e sem a higiene hoje em dia é impossível, conta Gustavo, que anda com um saco plástico caso encontre latinhas para reciclar. Para muitos dos que vivem na rua, a falta de um suporte como o de Juliano os debilita mais ainda. 

Gustavo relata como enfrentar a cidade sem essa rede é um inferno diário. Passar por bancos feitos para impossibilitar seu descanso, seguranças para mantê-lo longe de áreas “nobres”, elementos visíveis a todos mas feitos para hostilizar o mundo para alguns. Enquanto a cidade de São Paulo tem notificados milhares de imóveis vazios e segue com seus paliativos, Gustavo, Juliano e outros 48 mil continuarão dormindo sob o mesmo céu exposto.

Japão-Liberdade

 

Por Diogo Bachega e Victória Borges

 
Arte: Caroline Kellen e Lívia Magalhães

Quem visita o bairro da Liberdade pode jurar que o lugar nasceu com a imigração asiática no Brasil. Até mesmo a estação de metrô — cujo nome ganhou o prefixo “Japão” em 2018 — reafirma a influência nipônica na região, que recebeu um número expressivo de imigrantes japoneses entre os anos de 1912 e 1932. Ao decorrer dos anos, a região passou a ser ocupada também por chineses e coreanos.

O que nem todos sabem, é que antes de se tornar um pedaço da Ásia em São Paulo, a Liberdade foi o primeiro bairro habitado por pessoas negras na cidade. O passado se ocultou diante das luminárias japonesas e dos letreiros em ideogramas e pouco da memória do local restou.

Mas, no coração da Liberdade, um beco escondido entre os karaokês da rua da Glória e o comércio da Galvão Bueno, acaba em uma pequena igreja, que ainda guarda marcas do passado. O local parece ter parado no tempo e quase passa despercebido entre a agitação do turismo. Ali, segue em pé uma das construções mais antigas do bairro: a Capela de Nossa Senhora dos Aflitos.

Curiosos e visitantes são recebidos com simpatia pelas voluntárias da União dos Amigos da Capela dos Aflitos (Uamca), coletivo que mantém o local em funcionamento. Num breve passeio, Renata, uma das voluntárias, explica que a capela foi o que restou do Cemitério dos Aflitos, primeiro cemitério público da cidade e principal destino dos excluídos: pessoas negras e indígenas escravizadas, pobres e indigentes condenados à forca entre os séculos 18 e 19.

Na praça que carrega o nome do bairro, onde acontecem as tradicionais feirinhas aos finais de semana, ficava o Largo da Forca, palco das execuções até 1870. Foi lá que, sob gritos de “Liberdade!”, Francisco José das Chagas, o Chaguinhas, soldado negro condenado à morte por liderar a Revolta Nativista de Santos em 1821, que exigia o pagamento de salários atrasados aos militares, foi morto a pauladas, após duas tentativas falhas de enforcamento. Pouco contada, a história deu origem ao nome do bairro.

Chaguinhas não foi canonizado, mas virou Santo Popular e a Capela dos Aflitos, seu templo. No espaço do velário, zelado por Dona Alda, além das preces católicas, são deixadas oferendas de religiões de matriz africana. Celebrações muçulmanas, evangélicas, xamânicas, kardecistas e indígenas também são realizadas. “Aqui era um cemitério. São crenças diferentes, mas a gente deixa que façam”, explica a voluntária, que frequenta o local há 50 anos e já ouviu inúmeros milagres, segundo ela, realizados pelo Santo.

Ainda que a capela seja quase invisível na Liberdade, quem cuida do local não mede esforços para manter a memória histórica do local viva. Neste ano, o espaço passará por obras de revitalização, junto à construção do Memorial dos Aflitos, um espaço museológico que tem previsão para ser entregue em 2025.

Transparência em cena

 

Por Jose Vieira e Rebeca Fonseca

 
Arte: Caroline Kellen e Lívia Magalhães

Durante a infância, o cotidiano de Anne Mota era limitado pela expectativa de como ela deveria agir. A atriz não era livre para brincar com o que queria ou vestir as roupas que achava bonitas. Aos 12 anos, a artista assistiu a um documentário no YouTube e conseguiu dar nome à forma como se sentia: ela é uma mulher trans. 

Apesar de 4 milhões de brasileiros se identificarem como transgêneros ou não-binários, eles são invisibilizados em obras audiovisuais. De 2017 a 2019, nenhum personagem trans foi incluído em filmes lançados pelos principais estúdios de Hollywood.

A discriminação ainda se estende para a seleção do elenco. Produtoras praticam o transfake, quando artistas cisgênero interpretam personagens trans. A violência dessa técnica se assemelha a do blackface, na qual atores brancos escurecem a pele para encenarem pessoas pretas. 

Nas ocasiões em que intérpretes trans são contratados, é comum que se exija deles falar exclusivamente sobre a transgeneridade. Tenca Silva, atriz de 30 anos, acredita que os papéis destinados a esse grupo não devem se limitar ao gênero. 

O problema também está por trás das câmeras, já que os sets de filmagens não são receptivos. Nos bastidores, intérpretes trans realizam um tipo de jornada dupla. Além de atuar, Tenca conta que já teve que preparar o ambiente de trabalho para a diversidade: “Ensinar as pessoas a lidarem com a gente”.

A organização binária da sociedade e a heteronormatividade explicam o apagamento. Para Mario Camelo, pesquisador de Comunicação da Universidade Federal de Goiás, o audiovisual reforça o padrão social de excluir o que diverge dos gêneros masculino e feminino e da heterossexualidade.

Hoje, há tentativas de reverter padrões de invisibilidade. Em 2016, o projeto teatral Julieta Capuleto adaptou a peça Romeu e Julieta, de William Shakespeare, com protagonismo trans. A iniciativa realizada por alunos da Universidade Anhembi Morumbi foi dirigida por Vicente Gosciola, docente acadêmico desde 1989.

Até então, narrativas de gênero não faziam parte de sua linha de pesquisa. O emergir de discussões relacionadas ao tema fez Gosciola se debruçar sobre a literatura LGBTQ+.

O debate encontra eco no cinema independente, para o qual os artistas recorrem pela ausência de representatividade na esfera audiovisual hegemônica. Anne teve sua estreia artística em Alice Júnior (2020), aos 22 anos. Apesar de ter ganhado prêmios por sua atuação no longa, a atriz se sente abandonada pelo audiovisual com a falta de oportunidades.

Anne e Tenca defendem que espaços para além da atuação também devem ser ocupados, como a direção e a produção de elenco. “Valorizar o nosso trabalho, nossa vida, nossa existência. Assim, conseguimos pensar sobre o que vivemos em comum”, diz Tenca.

Dados: Levantamento da Faculdade de Medicina de Botucatu da Unesp (2021); Relatório do Glaad (2019)

Longe de todos os olhares

 

Por Gustavo Assef e Renato Brocchi

 
Arte: Caroline Kellen

“Eu não tenho nem memórias, porque eu não vivi uma parte da minha vida”.

O relato é de Cleber Ramos, hoje terapeuta em Bauru, interior de São Paulo. Ele conta que, durante boa parte de sua juventude, se recusava a tirar fotos ou a ser filmado —o ideal era desaparecer, ser invisível. Olhar para trás é vislumbrar um período apagado de sua história.

Cleber já tinha 30 anos quando finalmente entendeu que aquilo de que padecia tinha nome e sobrenome: era a fobia social, ou, em jargão mais técnico, transtorno de ansiedade social (TAS). Esse distúrbio provoca sintomas como taquicardia, dor de barriga, tremor, suor e sensação de humilhação. De acordo com dados levantados no Congresso Brasileiro de Psiquiatria em 2017, ela acomete cerca de 13% da população —em torno de 26 milhões de pessoas.

A fobia social não é timidez ou só ansiedade. O neuropsicólogo Stanley Huang explica que esse mal é mais propriamente descrito como uma forma de ansiedade intensa que faz o indivíduo evitar os contatos sociais a ponto de ver impactadas sua vida profissional e pessoal. O medo em ser o centro das atenções é listada pela CID-10 (Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde) como um dos principais critérios para o diagnóstico de fobia social. 

A psicóloga Cristiane Maluhy Gebara chama de “prejuízo de vida” episódios como o de Cleber, em que o paciente evita ao máximo a exposição e acaba perdendo momentos importantes de interação. Luiza Umann, que também sofreu com a fobia social por grande parte da vida, hoje é psicóloga. Ela conta que deixou de participar de inúmeros eventos, e que “a solidão era uma forma de proteção”. Isso porque quem sofre de fobia social acredita que todos os olhares estão voltados para si e, por isso, sente-se julgado e se retrai.

Acontecimentos específicos podem servir de gatilho para o TAS. Cleber lembra também de quando, na escola, a professora passava atividades para a turma copiar, mas ele, sempre cioso de sua caligrafia, não conseguia escrever em seu caderno no mesmo ritmo dos colegas. “Cleber, posso apagar a lousa para continuar a aula, ou você vai atrasar todo mundo?”.

Sobre as situações que podem ser causas desse tipo de transtorno, Luiza relatou que sofreu bullying de colegas de escola e que, quando seus pais se divorciaram, a estrutura na qual podia contar havia sido quebrada, deixando-a ainda mais insegura: “Eu me sentia um ‘nada’”.  A partir daí, o paciente fica cada vez mais receoso de participar de eventos em grupos.

O retorno a uma socialização pode se dar aos poucos. Cristiane explica que esse é o “método da exposição”, em que o paciente é levado a, pouco a pouco, enfrentar as situações que lhe causam fobia. Ela é idealizadora de um aplicativo que, com a ajuda de um computador e um óculos de realidade virtual, cria simulações que causariam desconforto a quem sofre de TAS. “A gente vai graduando essas situações hierarquicamente, da que menos dá desconforto para a que mais dá”, explica a psicóloga. 

A recomendação dos especialistas é a busca por ajuda especializada. Hoje, Luiza diz ter superado a fobia social com ajuda da psicoterapia. Ainda na faculdade de psicologia, ela conta que começou a se interessar pelo assunto e a exercitar o autoconhecimento, processos que começaram sua recuperação. 

Já Cleber relata que, ao tomar pequenos passos para se acostumar às interações sociais cotidianas —comer em público, falar com desconhecidos, fazer amigos—, conseguiu, já na casa dos 30, construir uma sociabilidade que nunca havia tido.

Sua vontade era tornar-se “a versão adulta da criança que era”, antes dos sintomas da fobia social se agravarem e tomarem conta de sua vida. Já não é difícil encontrar pelas redes sociais fotos do bem-articulado Cleber. O período de isolamento e de invisibilidade pode ter tomado quinze anos de sua vida, mas já não mais o atinge. 

Hoje, Cleber cria suas memórias, e já não quer ser invisível.

Colaborador: psicólogo Marcelo Parazzi.

Vibrações ordenadas rumo à imaginação

 

Por Karolina Monte e Natalia Nora

 
Arte: Lívia Magalhães

Ganhar na loteria é tarefa árdua. Talvez mentalizar e emanar energias para o Universo sobre esse desejo seja “O Segredo”. Acrescentar alguns post-its afirmativos na receita de sucesso também não seria nada mal…

Escrever planos como se eles já estivessem concretizados ou afirmar que um dia é da forma que se espera antes de levantar da cama são formas de praticar a Lei da Atração. O exercício é baseado na Lei da Vibração, que considera que tudo emana energia, incluindo os pensamentos.

Segundo essa lógica, é preciso programar a mente para a frequência energética correta sobre o que deseja, e o propósito será alcançado. 

Mas talvez o Universo e a Física não estejam tão em sincronia com nossos desejos. Romário Fernandes, professor de astronomia, esclarece que energia é, para a Física, a capacidade que uma partícula tem de influenciar seu meio. Mas que nosso pensamento não possui carga energética ou ligação vibracional com fenômenos físicos verificados.

A suposta energia emanada, então, pode ter mais a ver com nosso universo mental. Saulo Veríssimo, doutor em Psicanálise e especialista em neurociência e comportamento humano explica que, segundo estudos, “a mente não consegue diferenciar a imaginação ativa [a auto-construção de imagens mentais] do real”. Ou seja, as mesmas áreas cerebrais são acionadas tanto para cenários imaginários quanto reais.

Essas ideações da mente são a base do trabalho de pessoas que ensinam a Lei da Atração. Com mais de 100 mil seguidores no Instagram, Sandra D’Addona se declara ativista quântica e compartilha conteúdos que prometem ensinar qualquer pessoa a atingir metas.

Porém, apesar dessa capacidade cerebral de entender e agir como se um desejo do indivíduo correspondesse à realidade, não existem provas científicas de que a simples crença seja capaz de atrair a realização de objetivos.

D’Addona conta que as pessoas que a procuram estão em busca de melhores condições financeiras ou de relacionamentos, que dependem de fatores externos ao cérebro para se concretizarem.

Para Veríssimo, a frustração por não conseguir realizar o desejo pode ser o maior prejuízo para o público, que tende a não se considerar merecedor da conquista, e se culpar pela falha da prática. Bola pra frente, ainda existem as raspadinhas de dois reais.

À primeira vida

 

Por Larissa Leal

 
Arte: Caroline Kellen

Nossos olhares se encontraram e tudo começou de novo: coração acelerado, estômago revirado e frio na barriga. A sensação de tentar esquecer e só conseguir lembrar. Aquele alguém que desperta um sentimento de quatro letras, e consome tudo que há pela frente. Como explicar de forma lógica que bastou um “oi” para o caos começar? Essa situação me custou dias pensando. Um sentimento desses não surge sem aviso, e eu não sou do tipo que acredita em “à primeira vista”. 

A dúvida veio para incomodar. Tudo que ouvia parecia ser sobre isso, até uma das muitas conversas que escutei disfarçadamente no metrô. Enquanto uma moça contava para a amiga que se sentia presa a uma outra pessoa, esperei ansiosa pelo conselho. A resposta não era bem o que imaginava. “Talvez você esteja de fato presa, só não consegue ver”.

O ponto de interrogação apenas ficou maior. A resposta veio ao assistir um filme sobre dois jovens que, presos ao destino, precisavam ultrapassar a lógica do tempo para se encontrar. Era como me sentia – presa e sem saber porquê. De clique em clique, cheguei à possível solução: regressão. Sim, dessas que voltamos para outros momentos, até outras vidas, a fim de entender o inexplicável.

Deixei o ceticismo de lado e fui em busca de uma explicação. A regressão funciona como uma hipnose, e o terapeuta ajuda a entender sentimentos que podem ter se originado há muito tempo. Aí tudo se esclareceu. De fato, não foi algo que surgiu de repente, foi um sentimento carregado por anos, mesmo que a memória não me permitisse lembrar. A faísca estava ali e o tempo foi a gasolina.

O que pensei que seria um alívio descobrir, me deixou ainda mais inquieta. Saber que esse alguém – e o sentimento atrelado a ele – estavam presentes, não só comigo, mas em outras versões de mim, explicava muita coisa, porém era desesperador. Mesmo assim, precisava aceitar, estávamos presos um ao outro até estarmos prontos para desatar esse nó.

Nós dois precisávamos estar dispostos a resolver e mesmo que carregar esse sentimento não seja fácil, enfrentá-lo parecia pior. Resolvi deixá-lo ali. Talvez o tempo, assim como o ajudou a crescer, ajudaria a esquecer essas quatro letras. Ah, sim, essas quatro letras. Ó-D-I-O. Com todas as minhas forças, te odeio. Quem sabe em outra vida?

Colaboradores: Uma fonte preferiu não ser identificada; Bruno Sabino – Hipnoterapeuta; Rodrigo Prado  – Dirigente da Tenda Umbandista e Espiritualistica Pai Onofre

Ver e ser visto

 

Por Duda Ventura e Lorraine Moreira

 
Arte: Caroline Kellen e Lívia Magalhães

Quando a maçaneta da porta girava, Cirilo sumia. Assim que os pais da garota saíam do quarto, como num passe de mágica, o amigo voltava à brincadeira. Não é que não pudessem saber o que os pequenos faziam. Eles sabiam. Mas, todas as vezes em que viam a interação, diziam que, em algum momento, a filha teria que substituir o companheiro por outras pessoas, talvez pelos vizinhos. Alguém que pudesse ser visto.

Aos 6 anos, pela miopia, foi encaminhada para a primeira fileira da sala e encontrou uma amiga para todas as horas. Nesse dia, sem nenhum adeus, Cirilo foi embora. Darah não chorou. 

Sua história, tão pessoal, é compartilhada por outras tantas pessoas: cerca de 65% das crianças de até 7 anos têm um amigo imaginário, segundo dados da Universidade de Oregon de 2008. A figuração começa por volta dos 3 anos, quando a capacidade de contar histórias, criar vínculos afetivos e crer em seres mágicos se inicia. O término, por outro lado, ocorre quando há o amadurecimento cognitivo e a diferenciação entre subjetividade e realidade, explica o psicólogo especializado em desenvolvimento infantil Mateus Amaral. 

A amizade invisível de Darah aconteceu no final dos anos 1990. Com o passar do tempo, as portas da imaginação ganharam maçanetas automáticas, e os amigos invisíveis acompanharam esse processo.

Laís* (5) e Mariana* (7) acordam e correm para encontrar o celular de sua mãe. Selecionam o melhor enquadramento e apoiam o aparelho na pia: seus amigos não podem perder o ritual de escovar os dentes enquanto relatam detalhadamente seus sonhos. Imaginando o público que as vê, a câmera segue as irmãs das aulas de natação à hora de dormir. 

Os meios mudaram, mas a razões para personificar um público inexistente, não: as crianças buscam ter companhia, expressar emoções ou experimentar identidades distintas. A diferença está no acesso precoce à internet. A geração Alpha, altamente conectada às redes sociais, tem, desde bebês, estímulos tecnológicos presentes em suas vidas, o que se reflete na forma como imaginam o mundo ao seu redor. Também, na naturalidade em estarem sempre sendo vistos.

As garotas desenvolveram vista cansada e o tempo de tela é supervisionado pela mãe Thalita*. O monitoramento dos aparelhos funciona como prevenção do vício, que, ao se estabelecer, deve ser tratado por um psicólogo, alerta Mateus. Mas há outro medo, que se manteve nos últimos 30 anos: o isolamento das filhas. 

A confusão entre realidade, imaginação e mundo virtual é quase inerente à nova infância, e o papel dos adultos é dar suporte na compreensão do mundo, sem julgamentos, enquanto estabelecem limites para segurança dos pequenos e os apresentam novas possibilidades sociais. É ver o que eles não conseguem e direcioná-los quanto ao invisível, girando maçanetas em direção ao visível.

*Nome fictício

Colaboradores: Natália Veludo, doutora em psicologia comportamental infantil especializado em amigos imaginários; Lívia, educadora e mãe de Darah; Priscila, mãe de crianças com amigos imaginários

O claro! é produzido pelos alunos do 3º ano de graduação em Jornalismo, como parte da disciplina Laboratório de Jornalismo - Suplemento.

Tiragem impressa: 5.000 exemplares

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