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De ponto em ponto: o abuso que não para

 

Por Isabela Schreen

 

Ônibus lotado. Se tem uma coisa que eu considero um desafio diário, é enfrentá-lo, mas às vezes não dá. É aperto, gente junta, muita respiração compartilhada contra a vontade dos que estão presentes. Sufoca. Queria estar livre nesse momento, livre da rotina. Na verdade, livre de muitas coisas.

Já a Fernanda*, coitada, está presa em algo pior: um relacionamento abusivo. Ainda bem que eu nunca passei por algo assim. Aquele cara prende, anula, tira a personalidade dela. Anos se passaram e a violência psicológica perdura. Como alguém pode dizer que ama uma pessoa e ao mesmo tempo fazer ela se sentir infeliz, deprimida e fraca perante a tantos insultos? Até que ponto uma atitude possessiva é um sintoma de amor sem freio e doentio, e não uma busca por satisfação própria?

Muitas vezes eu e ela estávamos vendo um filme e ele ligava chamando-a de coisas horríveis, simplesmente por estar com uma amiga. Deturpar a imagem que a pessoa tem de seus companheiros de vida – sejam amigos, ex namorados, e até mesmo família – para se autopromover, faz parte de todo um processo de abuso. Isso parece algo impensável, desumano, e me arrisco à dizer que seria o ápice do egoísmo. Mas é tão comum… como meu ônibus lotado.

A cada ponto que chegamos, entra e sai gente, num vai e vem ritmado. Está chovendo lá fora, e nem toda a andança dentro dessa lataria diminui esse calor humano, que chega a embaçar os vidros. E ainda estou bem encolhida, quase prendendo o ar.

Estar aqui presa me fez lembrar de Carolina*. Essa passou pelos males mais profundos de um relacionamento abusivo. Eu imagino a dor que deve ser se relacionar com uma pessoa e descobrir aos poucos quem ela realmente é, e isso se tornar um monstro em sua vida. E é tudo uma questão de ciclo. Começaram bem e se mudaram para Copenhague*. Mas, longe de família, amigos, ou qualquer pessoa que pudesse ajudar, a armadilha estava formada.

Eram atrocidades o que ele fazia com ela. Bater o carro enquanto nevava foi um pretexto para deixá-la sob seus “cuidados” num país estranho. Ele a deixava sem comida, sem contato com ninguém, e sem nem mesmo poder tomar banho. Era uma espécie de cativeiro físico, e principalmente, psicológico. E além de tudo isso, a agressão física. Eram meses assim, e enfim, uma separação. Depois disso, as palavras doces, e um recomeço com data de validade, pois a agressão poderia até tardar um pouco a chegar, mas estava ali, à espreita, como um cobra prestes a dar o bote.

Hoje, ela tem uma filha com esse homem e o inferno ainda não saiu de sua vida. São ameaças que perduram, e cicatrizes que ainda não se fecharam por completo. E o pior de tudo é a culpa. O questionamento de porquês inexplicáveis, e o sentimento de que aquilo pode ter sido sua culpa. Mas não é.

Bom, cheguei ao meu ponto. Eu até estaria aliviada, se não soubesse que daqui umas 8 horas estarei de volta ao meu ciclo. Eu, e todos aqueles que pretendem algum dia chegar a algum lugar, mesmo que para isso precisem dar voltas e voltas, para se livrarem delas.

 

O claro! é produzido pelos alunos do 3º ano de graduação em Jornalismo, como parte da disciplina Laboratório de Jornalismo - Suplemento.

Tiragem impressa: 5.000 exemplares

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