Por que tão escorregadia, droga? Que tipo de gente comprava maçaneta redonda, dessas que se aperta pra abrir, machucando as articulações?
As palmas eram já líquidas do suor e sal e a boca era já seca porque vinha da porta aberta um vento infernal de rua. Os pés eram dois que quase se trançavam em queda. O tênis era branco leite e a sola lambia o concreto ainda com todas as ranhuras de confecção.
O que sujava seu corpo era o barulho constante de gente. Era gente preta, gente branca, gente de pele descascada do sol que fazia ferver o asfalto. E as gentes gritavam ao telefone que chegariam em cinco minutos e engoliam a pipoca doce que deixava os dedos tingidos de vermelho-sangue, como se pulsassem vida.
Olhos na trilha dos pés. E o ruído das vozes era tão horrível que chegava a parecer a sua própria voz multiplicada por mil, como reflexo no espelho.
É um burburinho que não existe dentro da lata, no banco de couro, dezoito graus celsius a soprar na cara, o pé viciado no pedal e nova brasil éfe eme às oito da manhã. Às dez, à uma, às quatro e às sete.
Mas naquele dia era pé no tênis branco que pisa o concreto e o asfalto e até o buraco e também a raiz das copas que sombreiam as calçadas.
“Dá um trocado?”, “Você sabe onde fica a Brigadeiro? Poxa, eu não sou daqui e não consigo achar a rua. Tô procurando emprego. Me indica a direção?”, “Não quer ver nosso cardápio? Fazemos grelhados e”, “E aí! Quanto tempo? Opa, te confundi… Desculpa”, “Chip da TIM, só dez reais, olha o chip da TIM!”.
Transpirava uma coisa grudenta. Sentia que suava o suficiente pra pele umedecer doce, e a primeira marcha das latas do engarrafamento salgavam o ar com a fumaça preta.
Olhos na trilha dos pés. E porque é que alguém haveria de gostar disso não sabia. Se expor assim ao incerto sem paredes.
O asco vinha pelas narinas. Como é que pode o azedo invadir assim? Como é que pode essa gente cheirar assim? Essa gente que não se recolhe, essa que olha pra frente, nos olhos dos outros e ousa gastar muitas horas da vinte e quatro sob o sol, cheirando azedo.
E os disfarces? Cada baunilha que entope narizes nos pescoços azedos. O óleo de gergelim na panela quente cheira a graxa e envolve o fio e o brócoli e a cenoura praquela gente cortar entre os dentes. E depois cospem borrachento no chão ou nos buracos que exalam merda.
Olhos na trilha dos pés. A nuca doía, o abdômen tensionado sob a camiseta e os ombros presos às orelhas. Só que os braços são sempre livres.
O corpo exige essa relação estranha com os objetos do mundo. É lei da física que dois corpos não ocupam o mesmo espaço, mas os braços são pueris e, por muitas vezes, insistem em desafiar a lei. Batem forte e dolorido no que cerca o mundo.
Olha pra frente, imbecil! E mirou.
Olhos nos olhos de Alex. E Mariana, e Otávio, Marcos, Raquel, Clara, Roberto, Ana e dessa gente que não se recolhe, essa que olha pra frente e ousa gastar muitas horas das vinte e quatro sob o sol.
Mirou o concreto derretendo, mirou a gente caminhando, mirou a chuva condensada, a barriga grande do homem, o prédio onde morava, a boca ao celular, a gente matando tempo. E se viu.
E ali todos os objetos ocuparam o mesmo espaço, que era o espaço de si, que era o espaço de tudo.
Agirofobia
   O claro! é produzido pelos alunos do 3º ano de graduação em Jornalismo, como parte da disciplina Laboratório de Jornalismo - Suplemento.
Tiragem impressa: 5.000 exemplares
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