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Tinha um caminho no meio da rotina

 

Por Giovana Feix

 

No meu caminho, além do trânsito e de alguns ônibus quebra­dos, há também cavalos, bois e gado. Isso porque há sítios na região que deslocam seus animais para pastar às margens da represa Billings, que acabam atravessando a estrada, principal­mente depois das 10h. Dos trajetos, guardo as boas leituras, as músicas que escutei e conversas com amigos e desconhecidos. Lembro também do gesto de uma senhora, quando ti­nha 13, 14 anos. Vendo-me dormir, ela deixou que minha cabeça recostasse em seu ombro. Acordei com um susto, eu ri, ambas riram.

Gabriely Araujo – Balneário São Francisco

 

“E quando a porta abrir na próxima es­tação? Será que vou cair?” Andava em passos curtos pensando que se acontecesse uma emergência eu seria pisoteada fácil, fácil. Finalmente, em 2015, tive coragem de di­rigir na Marginal. Nas primeiras vezes eu ia tensa. Os motoqueiros, as buzinas, a di­ficuldade para mudar de faixa, meu corpo doía de tão tensa que eu ficava.

Yria Freitas Tandel – Interlagos

 

 

Uma vez eu tava estressada com provas, botei os fo­nes e fui andar pela cidade à noite, passei pelas agui­nhas do parque Ibirapuera, passei por uns grafites, foi muito gostoso.

Bárbara Villela – Higienópolis

 

De ônibus até o metrô e de metrô para ao mundo real.

Thiago Alves Custódio Jorge – Vila Nova Cachoeirinha

 

Dizem que o metrô vai chegar, até as estações já têm nome e local certo, mas a licitação foi suspensa por polêmicas de preço e nem sei se tem mais previsão.

Thaís Vallim – São Bernardo do Campo

 

Foi no ônibus o lugar onde eu comecei a perceber como existiam pessoas diferentes no mundo.

Rebeca Yoshisato – Jardim Bonfiglioli

 

Todo mundo que eu vejo de bike pela cidade está sempre com um sor­risinho no rosto e isso deixa a cidade mais leve.

Jeanine Padilha – Jardins

 

No início da faculdade, antes da linha ama­rela, eu levava cerca de 2h30 para chegar até a USP. Totalizando 5 horas diárias e 25 horas semanais. Era como se a cada sema­na passasse um dia inteiro no transporte público para ir e voltar da faculdade.

Thatiana Martins – Vila Nova Cachoeirinha

Editorial: Vias de fato

 

Por Gabriel Carvalho e Nina Turin

 

2Como você tem usado a rua? É comum ouvirmos as pessoas dizerem que estão vivendo “mais na rua do que em casa”, por causa da tal “correria do dia a dia”. Será, porém, que o principal uso das vias públicas deve ser a locomoção de um ponto a outro, ida e volta?

 

Aliás, o que significa, de fato, a via ser pública? Durante séculos, as ruas foram usadas para exercer a liberdade de expressão, para encontros de diversas culturas, para o comércio, para o lazer e para a própria locomoção… Mas uma cidade que tem mais de 8 milhões de veículos, vai ter espaço para brincadeiras de rua?

 

Nesta edição trataremos de maneira geral sobre as ruas de São Paulo, mas qualquer cidadão das metrópoles brasileiras poderá se identificar com a realidade que retratamos.

 

Foram feitas comparações entre o passado e o presente. Mesmo as pautas mais leves, trazem uma incerteza. Mudança, não necessariamente de volta ao passado, mas de um uso mais democrático de um local que é da população. Por que deixamos de ocupar (ocupar de fato, não só transitar) um espaço que é nosso?

 

Mostramos tanto os motivos para que isso tenha acontecido, abordando o medo de andar nas ruas e a falta de qualidade delas. O que é e o que deveria ser feito para mudar essa realidade? Você vai se surpreender com algumas respostas.

 

Em formatos variados, queremos dar voz aos diferentes personagens que têm essa vivência das ruas e que querem que ela seja um lugar acolhedor, democrático e, de fato, ocupado.

 

E aí, vai perder esse Claro!?

A beleza está nas ruas

 

Por Pâmela Carvalho e Vinícius Crevilari

 

 
colagem manifestações
 
Muitos podem afirmar que as ruas não são um fim, mas meio para se atingir outro tipo de sociedade. Mas qual é o papel das ruas em movimentos político-sociais? Para Lincoln Secco, professor do Departamento de História Contemporânea da FFLCH, as ruas “se enchem por razões combinadas: quando o sistema político perde representatividade, onde há um ‘contágio’ que unifica diferentes demandas locais em manifestações de sentido nacional ou internacional, em que algum evento funciona como estopim”; ou algo “menor”, mas que corrói as condições de vida da população, “como o aumento do preço do pão ou da tarifa de ônibus”.
 
Para o professor, os movimentos de dimensão histórica sempre são fomentados pela circulação de ideias e a comunicação sempre funciona como importante fator de aglutinação do povo em um só espaço. A década de 1960 é um exemplo que demonstra a importância da circulação de ideias para a tomada das ruas. O período foi marcado por contestações em todos os aspectos, o que resultou em protestos da juventude, da classe trabalhadora e de movimentos sociais por todo o mundo. As ocupações das universidades, das fábricas e das ruas se espalharam como uma epidemia — como a que aconteceu no Quartier Latin, quadrilátero de ruas de Paris que serviu de palco para as manifestações da época — e uma nova relação da sociedade com o espaço urbano foi se formando. Essa efervescência da juventude, aliada às contestações sobre o papel da universidade na sociedade, trouxerem à tona a luta pela igualdade de direitos, a contra-cultura, a contestação dos modelos de ensino e a negação do Capitalismo.
 
Mas essa relação entre o “maio de 68” e a tomada das ruas, não foi singular na História. A ocupação política da cidade sempre foi um mecanismo de ação direta para a expressão de descontentamentos e, dependendo da resposta que as autoridades dão a elas, novos caminhos se abrem. Foi o que aconteceu na Rússia, em 1905. Milhares de operários marcharam rumo ao palácio imperial, com o intuito de entregar um abaixo-assinado, no qual reivindicavam, entre outras coisas, a participação de representantes do povo no poder. Em represália, a Guarda do Czar abriu fogo contra a multidão. A resposta à repressão foi rápida: greves e manifestações por todo o país, sob a palavra de ordem “Abaixo o Czar! Todo o poder ao povo russo!”. Um movimento de rua que foi a faísca para um levante popular que se iniciou em 1905 e abriu espaço para a insurreição proletária que viria ocorrer com a Revolução de Outubro, em 1917.
 
Desde 1905 muita coisa mudou, mas a tomada das ruas não perdeu sua importância. Em um mundo no qual as mídias sociais possuem papel determinante na expressão de pensamentos e de ideologias, tomar as ruas ainda é fundamental: “Os meios digitais potencializam e até alteram a conduta das pessoas nas ruas, facilitando a organização, difundindo mais rapidamente informações. Mas a forma de existência política continua concreta. Ainda que todos saiam às ruas para aparecer, é preciso ir às ruas”, aponta Secco.

Agirofobia

 

Por Marcela Campos

 

 
ilustração rua com olhos
 
Por que tão escorregadia, droga? Que tipo de gente comprava maçaneta redonda, dessas que se aperta pra abrir, machucando as articulações?
 
As palmas eram já líquidas do suor e sal e a boca era já seca porque vinha da porta aberta um vento infernal de rua. Os pés eram dois que quase se trançavam em queda. O tênis era branco leite e a sola lambia o concreto ainda com todas as ranhuras de confecção.
 
O que sujava seu corpo era o barulho constante de gente. Era gente preta, gente branca, gente de pele descascada do sol que fazia ferver o asfalto. E as gentes gritavam ao telefone que chegariam em cinco minutos e engoliam a pipoca doce que deixava os dedos tingidos de vermelho-sangue, como se pulsassem vida.
 
Olhos na trilha dos pés. E o ruído das vozes era tão horrível que chegava a parecer a sua própria voz multiplicada por mil, como reflexo no espelho.
 
É um burburinho que não existe dentro da lata, no banco de couro, dezoito graus celsius a soprar na cara, o pé viciado no pedal e nova brasil éfe eme às oito da manhã. Às dez, à uma, às quatro e às sete.
 
Mas naquele dia era pé no tênis branco que pisa o concreto e o asfalto e até o buraco e também a raiz das copas que sombreiam as calçadas.
 
“Dá um trocado?”, “Você sabe onde fica a Brigadeiro? Poxa, eu não sou daqui e não consigo achar a rua. Tô procurando emprego. Me indica a direção?”, “Não quer ver nosso cardápio? Fazemos grelhados e”, “E aí! Quanto tempo? Opa, te confundi… Desculpa”, “Chip da TIM, só dez reais, olha o chip da TIM!”.
 
Transpirava uma coisa grudenta. Sentia que suava o suficiente pra pele umedecer doce, e a primeira marcha das latas do engarrafamento salgavam o ar com a fumaça preta.
 
Olhos na trilha dos pés. E porque é que alguém haveria de gostar disso não sabia. Se expor assim ao incerto sem paredes.
 
O asco vinha pelas narinas. Como é que pode o azedo invadir assim? Como é que pode essa gente cheirar assim? Essa gente que não se recolhe, essa que olha pra frente, nos olhos dos outros e ousa gastar muitas horas da vinte e quatro sob o sol, cheirando azedo.
 
E os disfarces? Cada baunilha que entope narizes nos pescoços azedos. O óleo de gergelim na panela quente cheira a graxa e envolve o fio e o brócoli e a cenoura praquela gente cortar entre os dentes. E depois cospem borrachento no chão ou nos buracos que exalam merda.
 
Olhos na trilha dos pés. A nuca doía, o abdômen tensionado sob a camiseta e os ombros presos às orelhas. Só que os braços são sempre livres.
 
O corpo exige essa relação estranha com os objetos do mundo. É lei da física que dois corpos não ocupam o mesmo espaço, mas os braços são pueris e, por muitas vezes, insistem em desafiar a lei. Batem forte e dolorido no que cerca o mundo.
 
Olha pra frente, imbecil! E mirou.
 
Olhos nos olhos de Alex. E Mariana, e Otávio, Marcos, Raquel, Clara, Roberto, Ana e dessa gente que não se recolhe, essa que olha pra frente e ousa gastar muitas horas das vinte e quatro sob o sol.
 
Mirou o concreto derretendo, mirou a gente caminhando, mirou a chuva condensada, a barriga grande do homem, o prédio onde morava, a boca ao celular, a gente matando tempo. E se viu.
 
E ali todos os objetos ocuparam o mesmo espaço, que era o espaço de si, que era o espaço de tudo.
 

Pula buracos

 

Por Ana Paula Machado

 

 
foto matéria Ana
 
Você já deve ter se perguntado se não era melhor seguir caminho pela rua ao invés de andar pela calçada. De árvores, postes, lixeiras e guaritas a buracos, desníveis e degraus, as calçadas de São Paulo parecem oferecer uma prova de obstáculos para desafiar ainda mais o dia a dia do paulistano. Curioso é pensar que, em muitos casos, somos nós mesmos os desafiantes. Com exceção daquelas em vias estruturais e rotas estratégicas denominadas pela Prefeitura, as calçadas são de responsabilidade dos proprietários dos imóveis ou de seus usuários. Isso significa que deveríamos mantê-las adequadas e estáveis, e, para isso, seguir algumas normas, como manter livre uma largura minima de 1,20 m para a circulação de pedestres e admitir inclinação transversal máxima de 3% em relação à rua. Métricas à parte, o bom senso na escolha do piso – que seja antiderrapante, por exemplo – e a priorização de um trajeto reto no lugar de uma rampa que facilite o acesso do carro à garagem já seriam meio caminho andado.
 
Para quem escolhe a rua como rota, é a vez da Prefeitura desafiar os paulistanos com buracos, desníveis, ondulações, tampas de bueiros afundadas e sinalização precária. Para quem passa motorizado, o prejuízo é para o veículo e consequentemente para o bolso, com gastos na manutenção de pneus e amortecedores. Pode levar-se em conta a quantidade de carros circulando, as altas temperaturas e a grande quantidade de chuvas, mas a má qualidade do cimento – que é mais barato – é peça chave para que o pavimento se deteriore e que a rua necessite de recapeamento constante. Em 2013 (último dado atualizado no portal da Prefeitura), o governo diz ter investido R$ 36,6 milhões no recapeamento de cerca de 550 mil metros quadrados de vias, o que corresponde a mais de 1% da receita do município naquele ano e mais de 6% do montante arrecadado com o IPVA do estado paulista. No entanto, esse valor é referente apenas à primeira etapa do plano de 2013, que recapeou um total de 2.342.120,50 metros quadrados de vias na cidade. Isso sem falar nas operações “tapa buraco”, que a Prefeitura diz serem complementares aos serviços de recapeamento. Só em 2015, a média mensal foi de mais de 27 mil buracos tapados. Investimento, material e serviço não faltam. Mas a população segue pulando buracos.
 

Os nômades das metrópoles

 

Por Fernando Magarian e Luís Viviani

 

 
página 9
 

Os artistas de rua têm muitas histórias. Não seria presunção considerar que cada um traz consigo um universo de experiências, recheado de angústias, alegrias e liberda­des. Lucas é apenas um desses contadores de histórias. Trata-se de um moreno, alto e que usa dreads. Lucas conta que estudou em Minas Gerais, trabalhou por 6 anos numa empresa de caldeiraria, até que se “libertou disso” e foi viver como artesão de rua.

 

“Quando perdi meu emprego, fui pra rua”, conta, sorrindo um misto de astúcia e mo­déstia. Lucas tem 51 anos e há quase 25 anos trabalha com artesanato. Produz sua própria arte. Diz que são nômades. “Volta­mos ontem do Rio. Vida boa lá, ninguém tra­balha”, diz, gargalhando.

 

Lucas relata que a vida de artista de rua pode ser muito boa. “A gente vai pro meio do mato de vez em quando, ter um contato com a natureza”. Para dormir, procura os lugares mais baratos, mas caso não consi­ga encontrar, dorme na barraca. “Gosto de filé, mas como ovo de boa”.

 

Quando questionado sobre por que es­colheu o artesanato, Lucas responde que “quando você é criança, fica impressiona­do, quer fazer mil coisas”. “E meu pai era jardineiro, sempre andava com ferramen­tas. Aí comecei a fazer artesanato”.

 

Porém, a vida de um artista de rua pode en­durecer, principalmente no que diz respei­to como os outros os vêem. “A nossa tribo é a que mais sofre preconceito. Mas isso é pobreza espiritual, né”. Lucas conta que po­demos aprender muito com moradores de rua. “Às vezes vemos alguém todo sujo, mas essa pessoa pode ter um problema mental, ou teve uma grande decepção na vida. Mas se trocar uma ideia, aprende muito. É mais sábio que a gente”, afirma.

 

Lucas demonstra que não é alienado, nem mesmo com relação à nossa legislação. “A polícia era um problema grande, cara. Mas agora está de boa, pois aprenderam a respei­tar a gente. Há uma lei federal que protege a gente, desde 2011”. Trata-se do Decreto nº 14.589, de 27 de setembro de 2011, que re­conhece os direitos constitucionais de livre­-expressão artística em espaços públicos.

 

O artesão conta que também foi parte de um movimento grande. “Um líder pra gen­te, o Rafael [Lage, fotógrafo e artesão que estuda a reconfiguração do movimento hi­ppie no Brasil], filmou certa vez a polícia pegando as nossas coisas.

“Aí o padre da Igreja São José, catedral de BH, viu e arrumou duas freiras advogadas que defenderam a gente. Com o filme, cor­remos atrás de vereadores, agora tá libe­rado no RJ, MG, ES… Mas antes tomavam todos os nossos bagulhos, perdi os docu­mentos umas 16 vezes.”

 

“Mas é a vida, cara, temos que nos defender. E vamos continuar ocupando o espaço pu­blico do mesmo jeito, hoje e sempre”.

Propósitos esquecidos

 

Por João Cezar Diaz

 

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Um Farol para Nenhum Porto

 

Próxima ao encontro do rio Pinheiros e do Tietê, uma torre de 23 metros, conhecida como o “relógio do Jaguaré” esconde histórias e boatos em sua arquitetura. Com uma silhueta igual a de um farol que encontramos no litoral, o verdadeiro propósito da construção de Henrique Dumont, sobrinho de Santos Dumont, foi, alegadamente, o de criar uma estrutura que sinalizasse às embarcações a localização de um porto fluvial que nunca existiu. Em algumas plantas antigas que tratam do loteamento do bairro onde se encontra o “relógio”, existe uma área reservada a um porto, mas as pistas concretas sobre a torre se esgotam por aí.

 

Mais Torres

 

Ligando o Bom Retiro a Santana, se situa a Ponte das Bandeiras, antiga “Ponte Grande”, que abriga vestígios quase arqueológicos do tempo em que o rio Tietê não era simplesmente um prolongamento do sistema de saneamento. Duas torres precárias marcam o local, com 25 metros de altura e uma irônica bandeira da cidade de São Paulo tremulando em cada. Com o desígnio de serem plataformas para a observação e monitoramento das freqüentes provas de esportes aquáticos que tomavam lugar por aquele trecho de rio, hoje servem de moradia a duas famílias que não encontraram outro lugar para viver.

 

O Solo não Movido

 

Poucos sabem que o Parque do “Ibirapuera” do tupi-guarani “árvore podre”, já abrigou em seus 1,5 milhões de m² aldeias indígenas, favelas e até um cemitério para animais. Durante a implantação do parque tudo foi retirado ou destruído para dar lugar ao projeto, mas um detalhe se salvou. Ao lado da pista de cooper, escondida pela sombra da copa de uma falsa seringueira, uma única lápide do cemitério desativado ainda marca o local onde o cachorro Pingüim foi enterrado. “Ao nosso fiel amigo Pinguim (5/3/1937 – 5/6/1946) eternas saudades dos seus donos Nina e Nice”.

 

Catacumbas da Paulista


A avenida mais icônica da cidade, a Avenida Paulista, tem em seu subterrâneo, 22 galerias de variados tamanhos. Somando, são 13 mil metros quadrados. As áreas seladas desde 1967, pelo “projeto Nova Paulista” (que nunca foi concluído), são hoje áreas oficialmente públicas. A única forma de conseguir acesso é através de bueiros que ainda tem ligação com o antigo sistema. Explorar esses locais talvez não seja uma boa ideia, uma vez que, segundo a “Associação Paulista Viva” há escassez de oxigênio nas galerias.

As crianças e a rua

 

Por Quefren de Moura

 

 

ilustração brincadeira de rua3

Cinco e meia da manhã. Levanta num pulo e, depois de um banho, começa a se aprontar. Amarra a tira da sandália, ainda sonolenta. Por qualquer razão isso lembra sua infância, quando amarrar o tênis era requisito para brincar na rua — garantia de que não tropeçaria ao correr, empinar pipa, jogar taco ou “pular carniça”. Só uma criança desavisada faria isso de cadarços frouxos ou desamarrados! Balança a cabeça e ri sozinha. Não está de saída para brincar, mas para trabalhar.

 

Diante do espelho, contorna os lábios com um batom discreto e fita seu rosto adulto.  O tempo passou! Enquanto termina de se arrumar, divide com o marido sua nostalgia: “Estava aqui pensando… como era bom brincar na rua, né?” Ele sorri. “Não tinha tanto carro como hoje.” Gargalham ao lembrar das brincadeiras que faziam, como o pique-esconde. No último segundo, sempre tinha alguém que “salvava o mundo” e fazia a mesma criança bater cara outra vez! Costumavam brincar por horas, até cansar, até a camiseta molhar de suor e a pele gelar com o vento! E isso não era problema algum. Que tempo bom! Ela borrifa um perfume doce.

 

Da cozinha, apressa os dorminhocos: “Tá na hora, meninos!” Logo, dois pequenos zumbis descem as escadas se arrastando. Como conseguem caminhar, sentar e até comer de olhos fechados? “Tô com sono, mãe!” Depois do café, todos se despedem e ela voa até o carro. Já sentados no banco de trás, com o cinto afivelado, os pequenos parecem bem mais acordados. “Ei, espertinhos! Nada de celular a essa hora! Quero saber se andam estudando para as provas do fim do mês.” “A gente tá estudando, mãe!” Eles não desgrudam  o olhar do joguinho. “Desliguem!” Mais resmungos e reclamações, até que eles se rendem: “Tá bom, mãe…”  

 

Ultimamente os filhos dela têm se divertido quase só com a TV, o computador, os smartphones e o video game. No prédio onde moram há tudo o que as crianças poderiam querer: piscina, playground, quadra poliesportiva e até brinquedoteca. Só que, como a maioria, eles quase não descem para brincar. Os pais não têm muito tempo para levá-los, mesmo sabendo o importante que é fazer amigos, ser criança e se divertir. Mas hoje os tempos são outros…

 

 

Chegam à porta da escola. Os meninos descem do carro e ela continua seu caminho (não sem antes ganhar beijos, abraços e até mais tarde, mamãe). O dia será longo.

 

Seu celular vibra. Cinco da tarde! Ela nem viu o tempo passar! Solta os cabelos e suspira.

 

Na volta, o tráfego é de chorar. Distraída, olha para o lado e percebe crianças, de pés descalços e rosto sujo, vendendo balas no farol. Ela vê a feição doída de meninas e meninos obrigados a crescer. Pensa na sua infância. A rua, antes tão convidativa, hoje machuca a infância. Uma melancolia invade seu coração. Acelera, mas a tempo de ver um dos garotos chutando sozinho uma garrafa “pet” amassada, driblando uma “zaga” invisível e fazendo um gol de placa entre as árvores da calçada. Luzes piscam na avenida barulhenta. Os carros se movem enquanto a noite vem.  

 

Estaciona o carro e entra em casa. Joga a bolsa de canto e vai para a cozinha. Como de costume, a essa hora ela sabatinaria os filhos se fizeram a lição de casa, como foi no karatê, se aprenderam algo novo no inglês, e a aula de guitarra? No entanto, ela faz diferente. Larga tudo e corre até a sala. Agarra os meninos pela barriga, arrancando-os da televisão, e os joga no sofá. Mudança de planos: hoje, depois do jantar, vão brincar de cabra-cega! “Não vale roubar!” O marido se junta ao trio. Entre cócegas, risadas e gritos, os meninos recordam: “Mas, mãe! Nós já tomamos banho! E se ficarmos suados para dormir?” Ela olha para os filhos. São crianças! Então responde com um sorriso matreiro: “Suados? O que tem de mais?”

 

 

O claro! é produzido pelos alunos do 3º ano de graduação em Jornalismo, como parte da disciplina Laboratório de Jornalismo - Suplemento.

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