Ah, merda. Borges já estava atrasado pro aniversário da filha quando se deu conta. Salvou metade do relatório, espiou por cima das divisórias de sua sala e percorreu o corredor de escritórios até a sala do chefe. Direita, esquerda e esquerda. Tomou sermão, mas conseguiu a tarde de folga. Pegou a filha na escola e foi para o zoológico.
Logo que chegou, viu que o lugar estava falido, tinha poucas pessoas. Por isso enfiam a faca nos ingressos. Mas a filha, que sonhava em ser uma bióloga quando crescesse, estava maravilhada. Assim que pôde, saiu correndo para a monitoria especial. Borges seguiu para a loja do zoológico. Comprou uns peixes Betta, achou que seriam uma boa ideia de presente. Pouco espaço e pouco trabalho, só comida.
Um dos tratadores viu a cena e o alertou. “Muita gente acredita no mito de que eles têm memória fraca e por isso acham que não precisam comprar aquários grandes. Mas eles lembram muito bem onde estão as paredes.”
Borges disse que compraria o aquário na saída, só iria dar uma volta antes. Mas durante o percurso, algo o incomodou. Via poucos animais e muitas grades. Para Borges, tanto os jalecos brancos calculando o ph da água dos jacarés, quanto os suplementos alimentares lançados às aves pareciam parte de um enclausuramento forçado. Afinal, se a ideia era mantê-los em um habitat parecido ao original, por que diabos havia rinocerontes na Zona Sul de São Paulo??
Pouco adiantaria que o biólogo explicasse que as medições e os suplementos eram para garantir o bem-estar e para prevenir doenças. Muito menos que havia um rodízio de animais para exposição, e que parte do valor do ingresso era aplicada em conscientizar a população sobre espécies em extinção. Borges prestava pouca atenção. Tinha que terminar o relatório.
Quando a filha saiu do passeio, ele nem notou o sorriso em seu rosto. Ligou o carro e acelerou. Quem sabe não tivesse corrido tanto conseguisse ler a frase de Jan Gehl, um famoso urbanista dinamarquês, gravada no portão: “Primeiro a vida, depois os espaços, e por fim os edifícios — o inverso nunca funciona.”
Em casa, percebeu que se esquecera de comprar o aquário. Decidiu deixar os peixes em uma bacia pela noite. Não faria mal… Amanhã compraria o aquário, assim que terminasse a outra metade do relatório. Amanhã, após virar à direita pelos currais, à esquerda pela área de alimentação e finalmente à esquerda, rumo às celas… digo, escritórios.
Ainda bem que peixes Betta têm memória curta.
Fontes: Vinícius Silva de Oliveira (Tratador de água e animais aquáticos), Niedja Maria (Tratadora de aves), Bruno Padovano (Coordenador Científico do NUTAU/USP – Núcleo de Pesquisa em Tecnologia da Arquitetura e Urbanismo).