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O triunfo do ciclista

 

Por Hugo Vaz

 

Ninguém contou, mas você sabia. Pedalar sobre duas rodas era o salto para um novo plano de existência. Chega de ser criança, esse estágio intermediário onde só enxergamos o que ainda não somos. Abaixo a ditadura das rodinhas de apoio! Ninguém contou, mas você sabia. De algum modo, crescer estava relacionado a encontrar seu equilíbrio em cima de uma bicicleta. 

E assim você começou — balançando como uma minhoca desnorteada. 

Mas foi melhorando. Enquanto os amigos mais experientes diziam que pedalar rápido era o segredo, alguns palpiteiros diziam para ir o mais devagar possível. Os cientistas diziam que a chave estava no posicionamento estratégico da roda dianteira em relação ao eixo de direção inclinado. E sua mãe dizia para ter cuidado.

Quem encontrou a resposta para esse impasse foi seu corpo. Equilíbrio, ele decidiu, nada mais é que a média perfeita entre cair e não cair. E ciclismo nada mais é que fazer incontáveis pequenas correções na sua trajetória sem precisar pensar. Tão natural quanto sentir. Tão prazeroso quanto ser. Tão fácil quanto… andar de bicicleta. 

É na infância e no início da adolescência, entretanto, que um tombo pode significar muita coisa. Muito mais do que se pode antever. Alguns de seus amigos caíram sem que houvesse alguém ao lado para ajudá-los a se reerguer. Entre os adultos que deviam ensinar, tantos não puderam, porque também haviam caído. Tiveram medo e nunca mais montaram. Você teve sorte.

Você cresceu e ganhou o chão. A percepção aguçada das nuances e dos desafios do asfalto. Ganhou a cidade: as praças, os monumentos, as pichações, as pessoas. A capacidade de viajar sozinho quando quiser, ou quando ninguém mais quer. Uma atividade física para os momentos de alegria, tristeza, ou nada em particular. 

Ganhou algo em comum com os outros ciclistas. O garoto que aprendeu a pedalar na rua de paralelepípedos e adorava como eles faziam sua cabeça balançar. O executivo que antes de largar o carro só tinha partida e destino, mas descobriu o percurso. A entregadora de aplicativo na sua primeira semana de trabalho, que agora corre atrás de uma nova independência. 

E não é incrível? Tudo porque um dia você conquistou o equilíbrio de uma bicicleta.

 

Colaboraram:

Claudia Franco, instrutora de pilotagem de bicicleta na empresa Ciclofemini;

Emerson Pereira, André Balbino e Yasmin Reis, ciclistas amadores.

 

Patas, pés e bicicleta

 

Por Amanda Oliveira e Isadora Vitti

 
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Foto: Arquivo pessoal
 

Leandro sente o vento descabelando seu cabelo curto. Pedala mais rápido, pedala mais forte. O som da corrente da bike mescla-se com os versos tristes de Aguapé, de Belchior. Nada nada nada nada. Absolutamente nada, diz o refrão. No cestinho da bicicleta preta com banco vermelho está Odara. Cachorra viajante tamanho médio pêlo comprido, um pouco aflita de não encontrar seu companheiro logo atrás. Mas logo El Loco chega, cheio de energia e excitação. Correndo louco com a língua pra fora atrás da bicicleta. Leandro lembra que deixou as lágrimas rolarem livremente, logo quando toca a terceira estrofe da canção. Como eles tinham parado nas estradas do Uruguai, a mais de 1.300 km de distância do solo brasileiro? Foi preciso um acidente de moto em 2009, uma bicicleta e uma primeira viagem que mudou a vida do jovem.

 

 

Em uma ultrapassagem mal sucedida, ele, de moto, colidiu com um cara no caminho de São Paulo a Ubatuba. Dia seguinte ao Natal, muita gente comendo a ceia da noite anterior, mas Leandro estava no hospital. Tudo estava quebrado: sua mão, bacia, um quadro bem sério. Trabalhando como bartender na capital, o jovem viu sua vida mudar totalmente. Imobilizado por três meses, decidiu que ao sair dali, seria uma nova pessoa, um novo Leandro. Ideias começaram a pipocar em sua mente. Por que não aproveitamos a saúde que temos para a explorar o mundo? “O corpo é a nossa máquina, a gente não precisa de nada”.

 

 

O jovem resolveu comprar uma bicicleta e começou a fazer longos percursos entre um bairro paulistano e outro. Um ano mais tarde chegou a Odara e a vontade de percorrer um destino maior. Não deu muita bola a seus familiares e amigos que insistiam para que ele não fosse, com medo da sua bacia ainda estar ruim. Era meio aquariano ao quadrado, sabe? Juntou poucas roupas, pediu férias no emprego, pegou a bicicleta… e Odara. A border collie não podia faltar, é claro. Tratou de colocá-la numa cestinha improvisada atrás da bike – caixa de plástico sem luxo daquelas de supermercado – e foi. Apenas mais um rapaz latino-americano sem dinheiro no bolso seguindo um impulso porque deu na telha. Ele, ciclista de primeira viagem, escolheu a rota da Estrada Real, de Ubatuba a Ouro Preto.

 

 

Foram 18 dias até chegar ao destino. Em pleno ritmo do carnaval de 2012, os viajantes alcançaram a cidade de Ouro Preto. Odara costumava ficar na sua cestinha, quietinha, sem saracotear ou pular para fora, só nas subidas íngremes tinha que caminhar. No segundo dia veio uma das partes mais difíceis da viagem. “Eu tive que subir 1600 metros em uma estrada de terra que só fusquinha conseguia passar”. A travessia da fronteira física virou seu mote pra continuar a viagem, quebrou esse paradigma de que ele não era capaz.

 

 

Mas, para [in]felicidade dos ciclistas que fazem o percurso, a Estrada Real não tem só uma subida. Nas outras várias pelo caminho, os três tinham que decidir se iam andando, pedalando ou se paravam e voltavam atrás. Ou melhor, os três não, um. Eles se entendiam através de olhares e gestos sutis, era como se fossem um só: um cachorro-humano-bicicleta. Leandrodarabike. “Eu comecei a ter uma maior telepatia com a Odara, se ela levantava a orelhinha eu já sabia que tinha acontecido alguma coisa”.

 

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Foto: Arquivo pessoal

 

 

Depois da sua primeira viagem, não dava pra ficar parado em São Paulo, sua vida não era mais a mesma, mesmo se quisesse. Em plena Copa de 2014, resolveu se aventurar em uma nova viagem. Dessa vez suas pedaladas atravessariam o Uruguai e, em meio ao litoral da cidade de José Ignacio, no dia 17 de junho, surge um novo personagem na história. Grandão, pêlos curtinhos e lisos, um tantinho branco e o resto corzinha marrom clara, cor de cachorro mesmo. Ele não abandonou os novos amigos, lutou até contra o vento que acelerava a bicicleta a 35 km/h. “Parecia um tourão correndo”.

 

 

Leandro teria que atravessar uma balsa e pensou que seria um adeus para o companheiro. Mas a situação foi outra:  “A balsa saiu da margem e o cachorro pulou para dentro. Agora eu seria responsável por ele”. O cachorro entrou para família e foi batizado de El Loco, já que seu comportamento tinha uma boa pitada de loucura.

 

 

Pedalar por aí permitiu que Leandro desconstruísse a ideia de que a bagagem da vida tem que ser repleta de recursos para se alcançar a felicidade. “Eu me senti muito como um cachorro selvagem sem frescura. Tava comendo lavagem de galinha… e era mó delicia”.

 

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Foto: Arquivo pessoal

 

 

Chegar em São Paulo não foi uma adaptação fácil. “Na volta, eu não consegui me adaptar muito aqui, não tinha motivação aqui”.  

 

 

Formado em audiovisual, hoje Leandro trabalha dando algumas oficinas. Agora um viajante de carteirinha, o jovem já marcou seu próximo destino no mapa: Logo estará deixando os seus rastros por outros países da América Latina em uma motorhome, sua nova casinha a 4 rodas.

 

 

 

O claro! é produzido pelos alunos do 3º ano de graduação em Jornalismo, como parte da disciplina Laboratório de Jornalismo - Suplemento.

Tiragem impressa: 5.000 exemplares

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