A rotina na Riviera começa cedo. Os alunos chegam pela manhã carregando sua mochila e as refeições do dia. Chegam animados, cheios de energia, e não demoram a começar as atividades recreativas interagindo com seus amigos e colegas. A creche com nome de praia tem rotina de escola, mas os hóspedes são… cachorros. Comportados, o único som que se ouve no local é o da respiração ofegante, que anuncia as caudas balançando agitadas e pulos quando alguém se aproxima. Com frisbee na boca como quem dá boas vindas, os cães da Riviera são alunos simpáticos.
Depois do primeiro exercício, almoçam ao meio dia e fazem uma sessão de spa com luzes coloridas, música e massagem. O que não soa muito natural para cães torna-se hábito, e os desacostumados logo pegam o jeito. “Aos poucos eles vão acalmando, e eles mesmos vão procurando um lugarzinho para ficarem deitados e receberem a massagem”, conta Claudia, dona do local. Mesmo quando a tarde cai, as crianças da creche ainda têm energia para gastar, e por demanda dos seus corpos: ao terminar o dia, mais atividades.
Embora esteja longe do litoral, ancorada na zona oeste da capital paulista, a Riviera dos Cães tem cara de cenário litorâneo, com paredes pintadas e o chão gramado. Divide com a famosa praia a paisagem -com o mar, areia, palmeiras e guarda-sol desenhados na entrada e na área de recreação- e o luxo da vida de férias que levam os que passam seus dias ali. Só falta mesmo a maresia, substituída pelo cheirinho de cachorro recém-saído do banho.
“Aqui é como uma escolinha para crianças, é a mesma relação”, Claudia explica sorridente. Assumindo o papel do humano, esses cachorros, que são filhos, irmãos e netos, saem da categoria de animais: ganham maior importância e se livram da posição, imposta por nós, de mão de obra, produto ou de comida.
O tratamento que a creche oferece só existe porque a demanda por ele existe. Um reflexo de como esses animais, mais gente que muita gente, são percebidos dentro de casa.
- Foto: Arquivo pessoal
Leandro sente o vento descabelando seu cabelo curto. Pedala mais rápido, pedala mais forte. O som da corrente da bike mescla-se com os versos tristes de Aguapé, de Belchior. Nada nada nada nada. Absolutamente nada, diz o refrão. No cestinho da bicicleta preta com banco vermelho está Odara. Cachorra viajante tamanho médio pêlo comprido, um pouco aflita de não encontrar seu companheiro logo atrás. Mas logo El Loco chega, cheio de energia e excitação. Correndo louco com a língua pra fora atrás da bicicleta. Leandro lembra que deixou as lágrimas rolarem livremente, logo quando toca a terceira estrofe da canção. Como eles tinham parado nas estradas do Uruguai, a mais de 1.300 km de distância do solo brasileiro? Foi preciso um acidente de moto em 2009, uma bicicleta e uma primeira viagem que mudou a vida do jovem.
Em uma ultrapassagem mal sucedida, ele, de moto, colidiu com um cara no caminho de São Paulo a Ubatuba. Dia seguinte ao Natal, muita gente comendo a ceia da noite anterior, mas Leandro estava no hospital. Tudo estava quebrado: sua mão, bacia, um quadro bem sério. Trabalhando como bartender na capital, o jovem viu sua vida mudar totalmente. Imobilizado por três meses, decidiu que ao sair dali, seria uma nova pessoa, um novo Leandro. Ideias começaram a pipocar em sua mente. Por que não aproveitamos a saúde que temos para a explorar o mundo? “O corpo é a nossa máquina, a gente não precisa de nada”.
O jovem resolveu comprar uma bicicleta e começou a fazer longos percursos entre um bairro paulistano e outro. Um ano mais tarde chegou a Odara e a vontade de percorrer um destino maior. Não deu muita bola a seus familiares e amigos que insistiam para que ele não fosse, com medo da sua bacia ainda estar ruim. Era meio aquariano ao quadrado, sabe? Juntou poucas roupas, pediu férias no emprego, pegou a bicicleta… e Odara. A border collie não podia faltar, é claro. Tratou de colocá-la numa cestinha improvisada atrás da bike – caixa de plástico sem luxo daquelas de supermercado – e foi. Apenas mais um rapaz latino-americano sem dinheiro no bolso seguindo um impulso porque deu na telha. Ele, ciclista de primeira viagem, escolheu a rota da Estrada Real, de Ubatuba a Ouro Preto.
Foram 18 dias até chegar ao destino. Em pleno ritmo do carnaval de 2012, os viajantes alcançaram a cidade de Ouro Preto. Odara costumava ficar na sua cestinha, quietinha, sem saracotear ou pular para fora, só nas subidas íngremes tinha que caminhar. No segundo dia veio uma das partes mais difíceis da viagem. “Eu tive que subir 1600 metros em uma estrada de terra que só fusquinha conseguia passar”. A travessia da fronteira física virou seu mote pra continuar a viagem, quebrou esse paradigma de que ele não era capaz.
Mas, para [in]felicidade dos ciclistas que fazem o percurso, a Estrada Real não tem só uma subida. Nas outras várias pelo caminho, os três tinham que decidir se iam andando, pedalando ou se paravam e voltavam atrás. Ou melhor, os três não, um. Eles se entendiam através de olhares e gestos sutis, era como se fossem um só: um cachorro-humano-bicicleta. Leandrodarabike. “Eu comecei a ter uma maior telepatia com a Odara, se ela levantava a orelhinha eu já sabia que tinha acontecido alguma coisa”.
- Foto: Arquivo pessoal
Depois da sua primeira viagem, não dava pra ficar parado em São Paulo, sua vida não era mais a mesma, mesmo se quisesse. Em plena Copa de 2014, resolveu se aventurar em uma nova viagem. Dessa vez suas pedaladas atravessariam o Uruguai e, em meio ao litoral da cidade de José Ignacio, no dia 17 de junho, surge um novo personagem na história. Grandão, pêlos curtinhos e lisos, um tantinho branco e o resto corzinha marrom clara, cor de cachorro mesmo. Ele não abandonou os novos amigos, lutou até contra o vento que acelerava a bicicleta a 35 km/h. “Parecia um tourão correndo”.
Leandro teria que atravessar uma balsa e pensou que seria um adeus para o companheiro. Mas a situação foi outra: “A balsa saiu da margem e o cachorro pulou para dentro. Agora eu seria responsável por ele”. O cachorro entrou para família e foi batizado de El Loco, já que seu comportamento tinha uma boa pitada de loucura.
Pedalar por aí permitiu que Leandro desconstruísse a ideia de que a bagagem da vida tem que ser repleta de recursos para se alcançar a felicidade. “Eu me senti muito como um cachorro selvagem sem frescura. Tava comendo lavagem de galinha… e era mó delicia”.
- Foto: Arquivo pessoal
Chegar em São Paulo não foi uma adaptação fácil. “Na volta, eu não consegui me adaptar muito aqui, não tinha motivação aqui”.
Formado em audiovisual, hoje Leandro trabalha dando algumas oficinas. Agora um viajante de carteirinha, o jovem já marcou seu próximo destino no mapa: Logo estará deixando os seus rastros por outros países da América Latina em uma motorhome, sua nova casinha a 4 rodas.