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até breve?

 

Por Fernanda Real e Gabriele Koga

 

Arte: Breno Queiroz e Lucas Tôrres Dias

Como cantou o mineiro Milton Nascimento, encontros, desencontros e despedidas são inevitáveis e fazem parte da jornada humana em movimento, representada por vais e vens em plataformas de trem. “Tem gente que chega pra ficar. Tem gente que vai pra nunca mais. Tem gente que vem e quer voltar”. A certeza que resta é compreender que a vida continua de longe ou de perto e o fluxo também.

A edição do claro! encontro busca abordar a multiplicidade de situações que envolvem a palavra “encontro”. Contemplamos uma exploração pessoal e emocional das experiências humanas, proporcionadas pela ação de união. O contrário também ocorre: a desunião e os desencontros são inerentes ao cotidiano – seja pelo fim de um relacionamento, de uma fase da vida ou ainda pelo desafio de lidar com emoções da realidade do “nunca mais”.

Encontros marcam o tempo presente, nos falam sobre o passado e podem criar expectativas sobre os eventos futuros. Envolvidos na mística do destino, a tragédia cotidiana, a correria pela vida nas cidades do milênio, o luto pelos dias perdidos e a recuperação de si retratam propósitos de vida, busca por respostas e escolhas que fazemos.

Traduzir a essência humana é contar, por meio de histórias, as questões e os desafios mais profundos que moldam a nossa existência. O trem é o instrumento que separa, é ele que pode levar para um novo lugar e também trazer quem está distante. O desembarque pode não ser um adeus. Como escreveu Milton Nascimento, há dois lados da mesma viagem, já que o trem que chega é o mesmo da partida e a hora do encontro é também despedida. 

Expediente: Reitor: Carlos Gilberto Carlotti Junior. Diretora da ECA-USP: Brasilina Passarelli. Chefe do departamento: Luciano Guimarães. Professora responsável: Eun Yung Park. Capa: Beatriz Ferreira, Breno Queiroz e Fernanda Real. Editoras de conteúdo: Fernanda Real e Gabriele Koga. Editora de Arte: Beatriz Ferreira. Editor Online: Murillo César Alves. Ilustradores: Breno Queiroz e Lucas Tôrres Dias. Revisora: Dani Alvarenga. Diagramadores: Damaris Lopes, Erick Lins, Guilherme Bento, Guilherme Castro, Leonardo Vieira, Mateus Cerqueira, Mavi Faria, Rafael Canetti e Victória Pacheco. Repórteres: Ana Júlia Maciel, Ana Medeiros, Adrielly Kilryann, Diogo Leite, Fernando Cardoso, Gabriela Lima, Isabel Vernier, Letícia Naome e Rian Damasceno. Endereço: Av. Prof. Lúcio Martins Rodrigues, 443, prédio 2 – Cidade Universitária, São Paulo, SP, 05508 920. Telefone: (11) 3091- 4112. O claro! é produzido pelos alunos do sexto semestre de Jornalismo como parte da disciplina Laboratório de Jornalismo Impresso-Suplemento.

entrelaçados

 

Por Luisa Hirata

 

Arte: Breno Queiroz e Lucas Tôrres Dias

Dentre tantos encontros vividos diariamente, carregamos na memória, no coração e no corpo aqueles mais marcantes. Quando a rotina estaciona na monotonia, me pego fantasiando com esses momentos, no anseio por um cometa bom que atinja os dias com uma nova paleta.

Hoje é sexta-feira, bar de sempre. Enquanto espero um amigo chegar, noto, na mesa ao lado, duas mulheres risonhas, animação transbordando na voz e nos gestos. Não resisto e me esforço para ouvir o máximo da conversa.

“A gente se trombou na escada e na hora que eu olhei pra ele, me deu uma coisa, pensei ‘Meu Deus. Quem é esse cara’. Aí minha amiga disse ‘Tamo indo pra um barzinho’, e ele simplesmente virou pra mim e falou ‘Vai lá!’, aí eu respondi ‘Tá bom, eu vou!’. Cheguei correndo. Na hora que ele me viu, falou ‘Nossa, que bom que você veio, eu tava ansioso’. E eu: ‘Eu também!’. Nossa, rolou uma conexão muito louca ali… a gente viveu umas três semanas muito apaixonados.”

Novela na vida real? Boquiaberta, viro o rosto na direção oposta à dupla e avisto meu amigo me procurando. “Será que vamos ter um bom encontro, à la Espinosa?”, cumprimenta. Ele é vidrado em filosofia, e outro dia me contou um pouco sobre a teoria desse pensador do século 17.

Espinosa chama de encontros, ou “afecções” (termo que ele mais usa), qualquer contato que tivermos com o que nos é externo: outros corpos, vivos ou não, opiniões, ideias. Eles fazem variar o nosso “conatus”, palavra em latim que significa “esforço” e que ele define como a “potência de agir e existir”. A potência é o que nos leva a perseverar na existência, tanto na dimensão corporal quanto psíquica, e é a essência de todos os seres, vivos ou inanimados.

Um encontro é bom, então, quando aumenta nossa potência, nos favorecendo. Já o causo que um primo teve o desprazer de viver… “A salsicha com molho de um hotel de Petrópolis, ​​ela falando comigo, eu falando com ela, meu estômago subindo, subindo, subindo até a garganta. Você sente gosto de veneno.” Ficou mal por dias, coitado.

Se enquanto existirmos estaremos nos encontrando com tudo, com a potência em constante variação, nunca somos o que éramos momentos atrás – o que vale, de igual modo, ao que nos é exterior. Bons ou ruins, a única certeza sobre os encontros, nessa concepção, é a surpresa. “Ei”, meu amigo me puxa do devaneio. “Faz tanto tempo que não nos vemos. Vamos brindar?”

Colaboradores: Antônio David, Fernando Andrade e Luís Antônio Ribeiro (filósofos). Anelise Vieira, Du Quadros, Fernanda Correa, Jose Rafael Alves, Marla Rodrigues e Raphael Ferraz (personagens).

onde pertenço

 

Por Gabriela Lima

 

Arte: Breno Queiroz e Lucas Tôrres Dias

No mundo, estima-se que há 35 milhões de nômades digitais, segundo relatório da empresa de migração Fragomen. Essas pessoas abrem mão da estabilidade de uma rotina para viajarem o mundo enquanto trabalham online. 

Essa é a vida de Natália Becattini há 11 anos. Nascida em Minas Gerais, ela mora em Bogotá, mas apenas pelos próximos seis meses, porque em seguida irá para outro país – que não sabe ainda qual. Assim que se formou em Jornalismo, Natália resolveu viajar e, desde então, ela não tem residência fixa.

A ideia de trabalhar e viajar pertence a uma nova geração de jovens na faixa dos 30 anos que não querem esperar a aposentadoria para encontrar a felicidade. “Acho que a grande coisa da vida que eu escolhi é a liberdade. Eu não tenho um emprego que me prenda no exterior, e da mesma forma, eu não estou presa em BH”.

O estilo de vida não é para todos. É preciso pegar cargas horárias variadas em diferentes projetos como freelancer, além de ganhar em real e gastar em uma moeda diferente. Não há certeza de uma remuneração estável e nem uma rotina, o que faz alguns nômades digitais abrirem mão dessa vida.

A dificuldade em estabelecer uma rotina de trabalho e lazer foi um dos problemas que Andréia Manrique, jornalista de 32 anos, relatou durante seu período como nômade digital. Quando um dos seus principais trabalhos autônomos terminou em dezembro de 2022, ela retornou para o Brasil. Foi na hora certa. Pouco tempo depois, descobriu uma doença grave: “Se eu estivesse no exterior, não teria o apoio familiar que tive aqui”.

A vida como nômade digital não deu certo para Andréia. Agora, ela tem um trabalho fixo que gosta no Brasil, mas não desistiu de viajar. Em dezembro, pretende viajar de férias para Paris. A longo prazo, ela quer estudar o mestrado na Europa.

Andréia parou com o nomadismo digital depois de um ano, mas há gente como Natália que fica mais tempo na estrada. Matheus de Souza passou seis anos viajando pelo mundo. A rotina constante de mudanças e adaptações culturais em diferentes países o cansou. Ele não retornou para o Brasil, no entanto. Acabou encontrando uma vida em Paris, na França, país onde mora hoje, e segue trabalhando digitalmente. “Foi incrível pelo período que durou. Eu não me arrependo de nada e faria tudo de novo”.

Colaboradores: Renata Santos da Frota, Mestranda em Gestão Empresarial, e Natália Diniz, psicóloga e fundadora da Prô Mundo Psicologia.

carta à rede

 

Por Pedro Fagundes

 

Arte: Breno Queiroz e Lucas Tôrres Dias

Carta: meio indireto de comunicação. Somente na Bíblia cristã são 20 delas – 14,6% de seus livros. Ou seja, falar com o outro, à distância, já é moda desde que o mundo é mundo. Durante os milênios, serviram de informes de guerra, protestos políticos ou, simplesmente, boletos bancários.

Em 1936, o instituto norte-americano Student Letter Exchange prometeu renovar a prática. O Pen Pal nasceu com o propósito de relacionar estudantes de diferentes países – promovendo a troca de experiências por correspondência. O programa chegou ao Brasil 40 anos mais tarde – na década de 1980. Ainda hoje, 2023, conecta, por ano, mais de 500 mil alunos em 100 países mundo afora. 

Fernando Tadeu, 36, fala como a ideia de trocar cartas com pessoas de outros cantos do globo sempre pareceu fascinante. As ambições eram múltiplas. Desde encontrar o amor prometido em solo estrangeiro, até o aprendizado de uma nova língua. Há quem diga que a espera – de um ou dois meses – pela resposta era o que dava graça ao exercício.

Em fevereiro de 2017, foi lançado o aplicativo Slowly. A proposta era simular, na interface do smartphone, a tradicional demora da troca de correspondências. Camila Mendonça, 22, foi uma das 7 milhões de pessoas que entraram nessa onda. Seu intuito, como muitos dos antigos usuários do Pen Pal, era aprimorar um idioma estrangeiro, o inglês. Desse modo, foi em busca de destinatários internacionais. 

O apego à morosidade dos bilhetes, porém, não serve de regra para todos. “Apesar de divertido no início, sempre desistia – fosse pela demora ou pela preguiça”, conta Júlia Moraes, 21. Conectar-se, para as novas gerações, exige imediatez. Não à toa, enquanto 5 bilhões de cartas viajam pelo país, anualmente, o número de mensagens trocadas no WhatsApp supera os 100 bilhões por dia.

Assim, selos e envelopes são substituídos por jogos, comunidades on-line e redes sociais. Sem ambições planejadas, habituais ao Pen Pal, a construção de amizades virtuais flui quase despretensiosamente. O vínculo vira consequência do meio, não o contrário – são os interesses comuns quem ditam o jogo.

Rafael Lopes, 26, sempre seguiu a mesma lógica. Era tímido. Não só isso. Ainda aos 12, percebeu que não se encaixava no estrato imposto pela família, bairro ou escola. Foi, então, apartado da sufocante presencialidade, onde obteve a confiança para desabafar e se encontrar enquanto pessoa. À distância, a carta – imediata – virou refúgio.

Colaboradores: Marina Souza e Rodolfo Rangel

pela última vez

 

Por Diogo Leite e Isabel Vernier

 

Arte: Mateus Cerqueira

– Delegado, minha filha sumiu já faz cinco horas.

– Tem que esperar 24 pra fazer o B.O.

– Tudo isso?!

– Sua filha tem quantos anos?

– Tem 20.

– Ih, mãe! Fica tranquila, deve tá com um namorado. Daqui a pouco ela volta.

– Minha filha não namora, seu delegado. Não vou ficar esperando, preciso procurar por ela.

– Mãe, a gente não conhece os filhos que tem, ainda mais essas meninas de hoje. Ela faz o que da vida?

– Estuda artes plásticas, doutor. Passou na federal mesmo tendo feito escola estadual a vida inteira.

– Tá explicado. Artista é tudo doido!

– Boa tarde, dona delegada. Minha filha sumiu faz seis horas e preciso que comecem a procurar por ela!

– Mãe, são 57 desaparecimentos por dia em São Paulo. Daqui a pouco ela aparece. Se não, você vem aqui fazer o B.O. depois de 24 horas.

– Já ouvi isso hoje e não arredo o pé sem o boletim.

– Ai, tá bom, espera ali.

– Já faz dez horas que ela sumiu!

– Quando foi a última vez que você viu a menina?

– Ela saiu pra trabalhar às sete e meia. Vi na câmera que tem perto do ponto e fui na companhia de ônibus, ela nem chegou a entrar.

– Certo. Fiz o B.O. aqui. Depois é só levar na Delegacia de Desaparecidos. O resto é com eles.

– Obrigada, doutora! Agora vocês já vão procurar, né?

– Tem que ver na Desaparecidos.

– Mas o que eles vão fazer com o B.O.?

– Não sei, mãe. Desaparecimento não é crime, não tem lei dizendo como funciona pra investigar, não.

– Moça, deu entrada uma menina aqui? 20 anos, negra, cabelo preto, 1,60. É minha filha! Desapareceu semana passada!

– Deu sim, no pronto-socorro, mas tem um problema no registro, não sei pra onde ela foi. O sistema aqui não funciona muito bem, tem gente que não registra a alta direito. Transferência então…

– A gente está investigando sim! Mas não tem como o hospital saber que ela tava desaparecida: não existe um cadastro geral, não dá pra acessar os outros sistemas do governo, a coisa não conversa. O melhor é a senhora continuar indo nos IMLs, nos hospitais…

– Olha, nenhum aqui bate com a descrição, mas já faz um mês, deve ter ido pra um cemitério. Eles têm seções de corpos assim, mas é bem bagunçado. Tem que ver também em outros IMLs, mas não adianta ligar só, não vão te falar. Vai lá!

– Quando vai ao ar aquela matéria que vocês fizeram aqui em casa, sobre minha filha desaparecida?

– Oi, mãe! eu lamento, mas a pauta caiu, não vamos mais passar ela no jornal.

– Mas vocês me pediram a entrevista tão em cima da hora, isso ia ser tão importante pra mim, faz um ano que tento colocar minha filha no jornal!

– Desculpa, mãe. É que esse assunto não está em pauta.

– Vocês podem postar essa foto nova? É minha filha com 30 anos. Sabe, nem reconheço ela na foto, mas a polícia fez assim, com as técnicas deles lá…

– É, mãe. A gente sabe como é.

– E aí, mãe, faz 27 anos. Depois desse tempo todo, a senhora ainda tem esperança de encontrar sua filha?

– Se você me fizesse essa pergunta cinco anos atrás, eu encerraria a nossa conversa aqui. Mas, hoje, eu sinto que ela pode ter partido. Aceitar isso dói, é como ser cúmplice de uma morte. É como se parar de buscá-la fosse desistir da vida da minha filha. Queria poder seguir em frente, igual a irmã, o pai. Mas não dá. Eu daria tudo, tudo pra que alguém me dissesse “sua filha virou um zumbi na cracolândia”. Eu só não posso morrer sem resposta!

COLABORADORES: Ivanise Espiridião, da ONG Mães da Sé e mãe da Fabiana, Vera Paiva, membro da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos e filha de Rubens Paiva, Sandra Moreno, fundadora do Instituto ímpar e mãe da Ana Paula, e Eliana Vendramini, Coordenadora do Programa de Identificação e Localização de Desaparecidos, dados do G1

nem tudo são flores

 

Por Ana Júlia Maciel

 

Arte: Breno Queiroz e Lucas Tôrres Dias

Cercados por cerejeiras, no Japão, pais negociam silenciosamente o amor de seus filhos. Uma boa educação, um trabalho invejável e uma boa condição financeira. “No futuro, tudo isso vale muito mais que um sentimento besta que só se sente uma vez na vida”, dizem os responsáveis que pensam no melhor para o casal. De cabeça baixa e sem escolha, os noivos confirmam.

Na Índia, as calêndulas enfeitam os colares de flores que são trocados por noivos que nunca cruzaram olhares. Ele, apreensivo, coloca o véu para cima e fita os olhos que jamais havia visto. Flores caem sobre o casal e uma dança se inicia. Enquanto a música toca, ambos idealizam a vida que podem viver: um bom trabalho e uma casa bonita em que vão criar seus filhos e envelhecer juntos, assim como seus pais planejaram. 

Nem todos os casos são assim. Um arranjo de jasmim e uma carta são entregues a alguns quilômetros do deserto da Arábia Saudita. Por essa, chega a fotografia de um homem. A mãe prepara o véu e as espadas para a dança que todos irão assistir mais tarde na cerimônia. A garota sente o frio na barriga por aguardar pelo amor que sempre lhe contaram. Mas, tão jovem, treme só de olhar a roupa que sua ama separa para a noite de núpcias. Nada a protege disso. Se aprovada pelas autoridades islâmicas*, não há idade mínima para o casamento. Desprotegida, a menina pensa em como pode acabar com alguém que detesta para sempre. 

Nem tão distante assim, as flores dos cactos do árido sertão brasileiro, também desabrocham cedo demais. 

Quinze, dezesseis, dezessete… mas nem todas têm a sorte de serem arranjadas tão velhas assim. Uma em cada dez meninas brasileiras se casa com menos de quinze anos. Seus maridos costumam ser nove anos mais velhos e saem para trabalhar. Seus antigos livros, todos encaixotados, dão lugar pros lençóis dobrados e vassouras no canto do quarto. Ela não vê mais seus colegas de sala ou amigos, não tem mais “tempo para perder na escola”. Pelo menos foi isso que seu marido disse. Para sempre enclausurada em sua própria casa, ela é mais uma vítima do casamento infantil como forma de escravidão moderna.

Em algumas histórias longínquas, garotas podem ganhar uma casa, um turbante ou uma joia. Na quarta nação com mais casamentos infantis do mundo, às margens do rio Xingu, ganha-se uma bacia, um bucho e dez outras crianças para cuidar. 

*Autoridades que seguem a Sharia, conjunto de leis derivadas do Alcorão, livro sagrado dos muçulmanos

Colaboradores: Josefina Pimenta Lobato, doutora em Antropologia Social pela Universidade Nacional de Brasília (UNB); Ela vai no meu barco, pesquisa por Alice Taylor; dados da Organização das Nações Unidas (Onu), Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e Promundo; relatos de mulheres coreana e marroquina islâmica

traiçoeiro amor

 

Por João Dall'ara

 

Arte: Breno Queiroz e Lucas Tôrres Dias

Ferramentas criadas com o intuito de aproximar as pessoas e promover relações também estão sendo utilizadas como meio para a execução de golpes. O chamado Golpe do Amor, ou Golpe do Tinder – que recebe o nome do aplicativo de relacionamento mais popular do mundo –, teve seus primeiros registros em São Paulo em 2021.

O delegado Fábio Nelson Fernandes, da Divisão Antissequestro (DAS) da Polícia Civil, explica que o golpe acontece quando a vítima é atraída por meio de um aplicativo de relacionamento. Na maioria dos casos, o golpista sugere um encontro após um período de conversa e, próximo do horário marcado, pede para a vítima se dirigir a outro endereço. Com as vítimas em mãos, há a movimentação financeira, normalmente através do pagamento instantâneo brasileiro (PIX). 

Conforme o delegado, homens, de 30 a 60 anos, são os principais alvos das quadrilhas. Isso pode estar atrelado à condição machista do homem, que questiona menos se uma mulher tem interesse em sair de primeira. “A autoestima do homem hétero pode ser uma grande inimiga nesse contexto”, aponta a psicoterapeuta Louise Madeira.

O claro! entrou em contato com usuários de aplicativos de relacionamento, e um alerta que surge é quando a pessoa é “a melhor do mundo”, nas palavras de Camila*, ou o “perfil perfeito”, “que nunca que te questiona e fala que tudo o que você faz legal”, segundo Fernando*. De acordo com peritos em segurança digital, esse comportamento é um dos gatilhos de atenção.

Jeferson* conta que quando a pessoa do outro lado da tela parece perfeita, “ela quer se encontrar muito rápido”. A pressa é um fator de risco apontado pelos especialistas, que indicam videochamadas, encontros em locais públicos e cautela na utilização das plataformas. Com a alta dos golpes, a desconfiança é determinante para Christian*: “Sempre que vou marcar um encontro e fico com uma pulga atrás da orelha, mesmo que não tenha nada que incrimine a outra pessoa, prefiro desmarcar”.

Em 2022, no auge do golpe, a DAS atendeu 115 casos. Diante da situação, os aplicativos têm adotado políticas para preservar os usuários. Algumas plataformas, como o Tinder, passaram a verificar os perfis, disponibilizar chamadas de vídeo e excluir contas de mal-intencionados, seja pelo próprio sistema que identifica padrões agressivos ou pela denúncia. Para os especialistas, esses mecanismos devem aumentar a segurança dos usuários e reduzir o número de golpes. 

*Usuários de aplicativos de relacionamento que optaram por ter o nome preservado 

Colaboradores: Wanderson Castilho, perito em crimes digitais, André Sacramento, advogado, assessorias do Nubank e Tinder

à procura de mim

 

Por Adrielly Kilryann e Rian Damasceno

 

Arte: Breno Queiroz e Lucas Tôrres Dias

Em um quarto escuro, uma pergunta atormenta: “Quem sou eu?”. O questionamento é inevitável e agoniante. A frustração e a tristeza de não encontrar uma resposta se tornam companhias no dia a dia, e a solução parece ser invisível.

Quando hormônios do crescimento afloram, a situação pode ficar ainda mais confusa. Daniel, Cami, Eduarda e Emanuel, por exemplo, tiveram suas puberdades repletas de dúvidas. Perguntas paralisantes eram constantes na rotina mental: “Esta pessoa é realmente eu?”, “por que devo ser desse jeito?” e “o que quero me tornar?”. Todas eram respondidas com silêncio.

Essas indagações, nas palavras de Daniel, eram como um míssil de confusão. No impacto, tudo passou a ser questionado. Restaram, nos destroços, os sentimentos de não pertencimento e dissociação, já que é difícil se sentir parte de algo quando não se sente parte nem de si. O que sobrou foi um ser desconhecido, com roupas que não pareciam ser suas e que não se reconhecia no espelho. O desconforto era grande, mas para não enfrentar julgamentos, esse sentimento angustiante foi reprimido.

Esse pesadelo interno se tornou mais assustador com as redes sociais. Além de ter que lidar consigo mesmo, as outras pessoas podiam ser um gatilho. Bastava ver uma imagem publicada por alguém que a comparação começava: “Por que não posso ser assim?” ou “por que o meu corpo está contra mim?”.

Os anseios por um “eu” que parecesse confortável abriram espaço para medos. O medo de não ser compreendido, de ser rejeitado por aqueles que ama, do futuro incerto e da crueldade mundo afora. Eduarda, em especial, temia tanto que negava sua própria identidade.

Viver todos esses sentimentos constantemente ficava pior quando ninguém ao redor parecia entender. Emanuel conta que a solidão prevalecia antes de qualquer coisa: era como se só ele se sentisse assim. Mas não era só Emanuel. Cami também sentia essa dificuldade de ser compreendida.

Ignorar a avalanche de questionamentos parece ser a solução, mas chega o momento em que a escuridão fica insuportável. É ao olhar para dentro de si mesmo que o encontro acontece. No Brasil, ele ocorre para ao menos três milhões de pessoas. Mas esse encontro não leva o mesmo tempo para todos. Para Daniel, foi quando tinha 15 anos e se descobriu como um homem trans. Para Cami, que é uma pessoa não binária, foi aos 16. Já Emanuel identificou-se como um homem trans aos 17. Eduarda não sabe dizer ao certo quando percebeu ser travesti.

Colaboradores: Gabriella Mattos, psicóloga na Casa1; Tássia Oliveira, psicóloga na Casa1; Anna Paula Oliveira, endocrinologista; Levantamento da FMB/Unesp (2021).

semi-encaixe

 

Por Fernando Cardoso

 

Arte: Breno Queiroz e Lucas Tôrres Dias

Em novembro de 2023, mais de 41 mil brasileiros aguardavam por um órgão na lista de espera do Sistema Nacional de Transplantes, com o sonho de receber a peça que pode proporcioná-los uma nova chance na vida. Para os quase 8 mil pacientes que já fizeram a operação neste ano, outras batalhas nascem.

Os transplantados precisam ter uma vida extremamente saudável, à base de uma dieta alimentar restrita e uma série de medicamentos para que o corpo aceite de forma completa o novo órgão. As atividades que podem ou não realizar são desconhecidas, pois dependem de cada caso, e eles temem o retorno de seus problemas originais. 

“O paciente precisa se engajar muito na reabilitação e se cuidar para sempre”, conta Patrícia Almeida, hepatologista especialista em transplante de fígado.

Preocupados com a realidade após seus transplantes de fígado, Michelle e Phillyp têm buscado responder às questões que nem sempre possuem respostas certas, afinal, pode haver inúmeras variações de um caso para outro, seja em relação à aceitação do órgão ou das dificuldades na recuperação do indivíduo. 

Curiosa e receosa, Michelle passou a dedicar uma fração de seu tempo para pesquisar mais sobre sua situação. Após anos de estudo, ela decidiu compartilhar as descobertas em uma página nas redes sociais. O sucesso veio ao encontrar muitos outros jovens que, assim como ela, sentiam-se abandonados.

“Depois do transplante, eu me sentia uma alienígena. É um mundo que não vem com uma carta sobre o que se pode fazer”, conta.

Para Phillyp, o caminho havia sido traçado antes da operação, quando se deparou com o ativismo político. Em sua cidade, ele iniciou um movimento para difundir a causa da doação de órgãos, mas também conscientizar sobre o estilo de vida dos transplantados.

“Esse é o meu propósito. Hoje eu contribuo da melhor maneira possível. O transplantado tem uma qualidade de vida, mas ainda assim é um tratamento para sempre.”

Apesar da incessante busca, muitos questionamentos continuam na cabeça dos transplantados. Existem aqueles que optam por resolver o complexo dilema ao colocar suas preocupações em prática.

Após mais de 10 anos com uma doença nos rins, Priscilla finalmente fez um transplante. Quando recebeu alta do hospital, ela tinha certeza que teria uma vida debilitada. 

A realidade não podia ser mais diferente. Priscilla logo voltou a nadar, além de começar a pedalar e correr, praticando o triathlon, modalidade que a levou para os Jogos Mundiais de Transplantados de 2023, na Austrália. 

Na jornada pela excelência no esporte, ela fez uma importante descoberta: “Existem milhares de transplantados que não sabem que isso é possível”. Para muitos, é de fato possível. Em um mundo incerto, no entanto, o difícil ainda é ter coragem de tentar.

Colaboradores: Ministério da Saúde e Hospital Israelita Albert Einstein

querido ex-amor,

 

Por Ana Medeiros

 

Arte: Breno Queiroz e Lucas Tôrres Dias

Espero que esteja tudo bem aí na Itália e que esteja curtindo o intercâmbio. 

Já faz uns dias desde que terminamos, eu sei. Mas não queria que nossos cinco anos de história se encerrassem apenas por uma dolorosa ligação.

Lembra de quando perdi minha avó para a covid e, devido ao distanciamento, não consegui dizer minhas últimas palavras? Minha psicóloga falou que alguns rituais, como o velório, são importantes para a gente conseguir se despedir de quem se foi. A forma que encontrei para me despedir de você, e de quem nós fomos, foi por meio desta carta.

Desde que você se foi do Brasil, minha vida tem sido agridoce. Estou muito feliz por você e por tudo o que está conquistando do outro lado do Atlântico, mas também sinto muito a sua falta. Queria saber sobre o seu dia sem me preocupar com o fuso horário, comemorar seu aniversário com você, assim como o Dia dos Namorados, e viver tudo o que você está vivendo também, de perto. 

Mas, para mim, é muito difícil aguentar essa distância. Prolonguei por meses a decisão de terminar nosso namoro pela nossa história, nossas lembranças e por todo o amor que sinto. Quando estávamos perto, éramos inseparáveis. Mas, de longe, as coisas mudaram. Achei que não fazia mais sentido continuar assim.

Fui à casa dos seus pais buscar minhas coisas que estavam no seu quarto. Foi difícil tirar de lá uma parte de mim e lidar com todas as memórias que revisitei. Lembro do dia em que resgatamos seu cachorrinho, o Pipoca, e demos esse nome porque ele não parava de pular de alegria por ter uma nova casa. Eu entendo ele. Sentia que sua casa era a minha segunda casa, e sua família, a minha segunda família. Por isso, também, relutei tanto em dar tchau. Sabia que seria doloroso.

Mas tomei a minha decisão. Você vai viver experiências grandiosas, conhecer novas pessoas e talvez novos amores. E eu não quero parar a minha vida aqui. 

Mesmo que tudo tenha acabado bem entre a gente, acho que naturalmente vamos acabar perdendo contato. Pelo menos, assim, não preciso encarar esse sofrimento todos os dias e acabar voltando atrás na minha decisão. Talvez esse afastamento não seja para sempre e você volte para o Brasil um dia, mas também não quero criar expectativas de que, se isso acontecer, vamos voltar a namorar. Não quero lidar com a dor das expectativas quebradas caso não se torne realidade. Apesar de tudo, vou sempre guardar nossas lembranças.

E você sabe o quanto eu acredito no destino. Vamos deixar nosso futuro nas mãos dele. Quem sabe a gente não se encontra de novo em algum outro lugar do mundo? 

Com carinho, Ana Medeiros

Colaboradores: Lidia Levy de Alvarenga, professora aposentada do Departamento de Psicologia da PUC-Rio e coautora do artigo “Relações amorosas: rupturas e elaborações”, Maria Julia Kovács, professora sênior do Instituto de Psicologia da USP e membro-fundador do Laboratório de Estudos sobre a Morte, Thais Faccio, intercambista nos Estados Unidos, Rafaela Nonato, Emanuele Fernandes, Gustavo Thomaz e Maria Clara Matos, pessoas enlutadas.

O claro! é produzido pelos alunos do 3º ano de graduação em Jornalismo, como parte da disciplina Laboratório de Jornalismo - Suplemento.

Tiragem impressa: 5.000 exemplares

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