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Era a vista!

 

Por João Chahad

 
Arte: Bárbara de Aguiar

Paulo Revuelta é um Viking da idade contemporânea. Mora em uma vila em Juquitiba, a 74 km a sudoeste da capital paulista. Vive entre cabras, machados e fogueiras. Por meio de áudios no WhatsApp, diz não concordar com os valores atuais: “Estar fora desse mundo estressante e poluído me motivou a largar a vida de escritório há  7 anos”. A falta do contato “olho no olho, da conversa de bar” e o sentimento de efemeridade fizeram Paulo adotar esse estilo de vida, e assim como muitos, fugir do seu próprio tempo.

Claro, a vida viking não é para qualquer um. A geração Z –  nascidos entre 1995 e 2010 – adotou a sua própria época de desejo, os anos entre 1980 e 2000. “A memória passa pelas gerações, seja de pai pra filho ou a partir de produtos culturais”, diz Luiz Alberto, pesquisador de publicidade para a Universidade Federal do Mato Grosso. Com o aumento do consumo de filmes e séries da segunda metade do século 20, junto com a adesão de tecnologias típicas dessa época pelas classes mais privilegiadas, as empresas viram a oportunidade de lucrar com produtos que lembram e idealizam o passado: “O ponto chave é a midiatização da memória cultural”.

O antigo toma o lugar do novo. O cenário contemporâneo é marcado pela inundação de “repetecos”, como os numerosos remakes de filmes, a volta do rock ao cenário musical ou mesmo trends nas redes sociais, como a #Y2K, que glamourizam a moda e a tecnologia dos anos 2000. “Produtos nostálgicos estão em todo lugar”, completa o publicitário. A ascensão de hábitos analógicos também rememora as épocas pré-internet, como crochê, pintura a óleo, cerâmica, marcenaria ou jardinagem caseira. Para Thiago Trindade, pesquisador do Detox Digital pela Universidade Federal de Santa Maria, as narrativas nostálgicas estão “associadas com a vontade de desconexão”.

Larissa é moradora de Campinas e tem a sua própria coleção de vinil. A estudante de 25 anos diz que “ouvir os discos traz uma memória do tempo com o pai” e os usa para descansar a mente e sair um pouco das redes. Ela contribuiu para que as vendas de vinis em 2023 superassem pela primeira vez em 35 anos a de CDs, segundo relatório da Associação Americana da Indústria de Gravação. De acordo com dados do Google Trends, no final de 2024, as câmeras digitais bombaram, o que fez a pesquisa por “Cybershot” atingir o seu pico desde 2009.

Paradoxalmente, produtos que fazem com que o usuário se desconecte – mesmo que parcialmente – são incentivados pelos algoritmos digitais: “o não ser digital depende do digital”, afirma Thiago. O pesquisador vai além ao dizer que a volta ao passado e a desconexão ainda são restritas a poucos grupos econômicos: “Coisas analógicas não tendem a ser baratas”, completa.

Balada do Falso Eu

 

Por Davi Madorra

 
Arte: Ester Nascimento

Um bebê chora de fome, seu cérebro é pequeno e incapaz da palavra, mas aposto que ele pensa, “eu tenho tanta fome que vou morrer”. E sempre que chora, a mãe ignora seus prantos: quer educá-lo para não ser assim, mimado e chorão. É somente no cessar das lágrimas que ela lhe traz a recompensa, veja só, uma mamadeira cheia de mingau para o bebê que já começa a entender a indecência de seus primeiros desejos. “Na infância, somos atravessados pelo mundo, pelos gestos de nossos pais que contrariam instintos’’, afirma a psicanalista Thânis Kristine. Depois disso, não há jeito! Sufocamos versões-de-nós com o travesseiro do recalque, desovamos o cadáver no inconsciente, e esperamos as neuroses. 

Mas não é de todo mal e talvez haja certo charme nisso de não ser o que se é. A pessoa mais charmosa que já conheci, conheci enquanto não era. Uma academia de boxe e esse homem gritava com os alunos. A voz grossa, eu queria ser como ele, masculino e maligno, mas ao fim da aula, descobri, era mentira: “Escondemos versões, mas matá-las é impossível”, explica Kristine. E ele agora era o fofinho rapaz que veio me cumprimentar, tão educado e risonho. Anos depois, perguntei o motivo da mudança, e ele respondeu que é pra ser levado a sério. “Sem pulso firme, ninguém obedece.”

Lembrei da história do lutador Jean Silva, que quebrou os pulsos durante uma luta, e continuou brigando. Engraçado, lembrei disso também ao ler As Cinco Lições da Psicanálise, no qual Freud diz que reprimir pulsões é como expulsar de uma aula alguém que cochichava – quebrando-lhe os pulsos? – e de repente o excluso começa a bater na porta pelo lado de fora, brigando para que o deixem voltar – com pulsos quebrados? – atrapalhando bem mais. Parece certo. Ainda que o bebê pare de chorar, sente vontade de chorar; ainda que o boxeador fale tão sério, sente vontade de sorrir. 

“Imagina fingir o tempo todo?”, foi o que me disse Clarisse Borges, estudante e ex-bailarina. Ainda jovem, com cérebro de tamanho médio, começou a dançar, e interpretou um personagem agradável às exigências do Balé. “Rivalidade, dietas, disciplina. Eu fingia gostar disso pois não queria admitir que ‘meu sonho’ não tinha nada a ver comigo”. Em 2022, admitiu, e voltou ao Brasil. Há mesmo de haver um tempo em que admitimos, uma hora em que quebramos. Em que, com cérebros incapazes do inconsciente, pensamos, “eu tenho tanta fome que vou morrer”.

Germinar

 

Por Vanessa Evelyn

 

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Arte por Gabriella Sales e Mariana Catacci

 

Um jovem, recém entrado no ensino médio, via sua imagem refletida no espelho, mas não se envergava naquele corpo. Não entendia quem era e porque passava por tudo isso. Assim foi a adolescência de Pedro Pinheiro, até que, aos 18 anos, teve contato com a questão da identidade de gênero e descobriu o T da sigla LGBT.  Homem trans, Pedro sabe que se reconhecer como tal é parte essencial de sua identidade, que para ele é aquilo pelo qual é lembrado e apresentado. Aquilo que o define como único.

 

Para completar essa definição de identidade, a cientista social, Karen Florindo, explica que podemos entendê-la como características sociais e culturais que são atribuídas a nós. Ela está diretamente ligada ao ambiente ao qual pertencemos e ao lugar que ocupamos na sociedade:  “[diz respeito] sobre outros indivíduos com quem me relaciono, sobre o espaço, a cultura, a história…”.

 

Mas como encontrar a sua identidade quando o ambiente ao seu redor não te representa? Larissa Barbosa viveu isso durante a infância. Estudando com bolsa de estudos em escolas particulares, nunca se sentiu parte do universo das crianças brancas que a rodeavam. Foi no ensino médio, quando passou a fazer parte de um coletivo negro, que entendeu o motivo de não se sentir parte daquele ambiente. Só a partir disso que Larissa percebeu que ser negra era um fator definitivo para a formação da sua identidade. Para além de defini-la, encontrar parte de sua identidade foi essencial para que se sentisse pertencente a um grupo.

 

Essa busca por pertencimento é natural para Karen Florindo, e está ligada ao fato de sermos seres sociais. “A gente está constantemente  buscando espaços de acolhimento onde a gente possa, de fato, ser.”. Esse processo não aconteceu apenas com Larissa. Pedro iniciou sua transição hormonal enquanto fazia faculdade longe da família e durante alguns meses escondeu esse processo de seu núcleo familiar. Ele viu nos amigos LGBT o suporte que precisava e se apoiou nisso. “Você tem certeza que não é o único… Você tem sempre alguém que te entende para estar com você, para te ouvir, para te aconselhar.”

 

Para Larissa e Pedro, a construção e a aceitação de suas identidades foram processos ligados a outras pessoas e vivências. Foi necessário ter ajuda do exterior para compreender o interior.  Karen resume bem esse processo: “todas as trocas sociais deixam ‘marcas’ em nós e incorporamos – consciente e inconscientemente – algumas delas, as descrevendo como identidade. O meio é a estrutura fundamental nessa construção.”.

 

Colaboraram:

Larissa Barbosa — Estudante e parte do coletivo negro Opá Negra

Pedro Pinheiro — Gestor de Eventos

Karen Florindo — Cientista Social e curadora do blog “Lute como uma gorda”

 

O claro! é produzido pelos alunos do 3º ano de graduação em Jornalismo, como parte da disciplina Laboratório de Jornalismo - Suplemento.

Tiragem impressa: 5.000 exemplares

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