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Por que você abriu?

 

Por Beatriz Haddad e Sarah Kelly

 
Arte: Bárbara de Aguiar

Ha! Que flagra! O que te levou a abrir um claro! Impróprio para ler uma hora dessas? Se você ainda escolhe clicar no botão de “estou ciente e quero continuar”, talvez esteja cedendo àquela tendência antiga de navegar contra a maré. Desde crianças, todos são naturalmente atraídos para a desobediência. Que atire a primeira pedra quem nunca colocou o dedo na tomada, dormiu depois do horário permitido ou comeu um doce escondido.    

A vida adulta exige que esses hábitos sejam deixados para trás, num policiamento constante: estude, chegue no horário, não fale palavrão e nem ouse vestir essa mini saia. Pelo menos é isso que a sociedade espera. Na tentativa de se encaixar, você precisa ocultar seus gostos e dançar a balada do falso eu.

Os primeiros rascunhos desta edição falavam desse não pertencimento inevitável de quem se julga inadequado ao seu tempo ou daqueles que guardam um prazer secreto. Percebemos que nenhuma dessas experiências é de fato individual – o impróprio está por toda parte. 

Há momentos em que o inadequado se torna aceitável e outros nos quais o controverso é silenciado. As páginas seguintes buscam explorar essas situações do cotidiano, seja na cidade inabitável, mas vendida como ideal ou nos limites ultrapassados no trabalho. 

O objetivo do claro! Impróprio é chegar no limite, desafiar a retórica e concluir que, no final das contas, todos somos impróprios em algum lugar, ainda que não sejamos capazes de admitir. 

Expediente - Reitor: Carlos Gilberto Carlotti Junior. Diretora da ECA-USP: Maria Clotilde Perez Rodrigues. Chefe do departamento: Wagner Souza e Silva. Professora responsável: Eun Yung Park. Capa: Renan Affonso. Editoras de conteúdo: Beatriz Haddad e Sarah Kelly. Editor de Arte: Renan Affonso. Editora Online: Mirela Costa. Ilustradores: Bárbara Aguiar e Ester Nascimento. Diagramadores: Beatriz Garcia, Diego Facundini, Diogo Silva, Fernanda Zibordi, Jônatas Fuentes, Lara Soares, Lucas Lignon, Marina Giannini, Miriã Gama, Nicolle Martins e Samuel Cerri. Redação: Alícia Matsuda, Artur Abramo, Davi Madorra, Gabriel Carvalho, Isabella Gargano, João Chahad, Júlia Alencar, Lívia Uchoa, Marcelo Teixeira, Nicolas Dalmolim, Paloma Lazzaro, Pedro Morani e Sofia Zizza. Endereço: Av. Prof. Lúcio Martins Rodrigues, 443, prédio 2 - Cidade Universitária, São Paulo, SP, 05508 920. Telefone: (11) 3091- 4112. O Claro! é produzido pelos alunos do quinto semestre de Jornalismo como parte da disciplina Laboratório de Jornalismo Impresso-Suplemento.

Palavrões, Palavrinhas e Palavronas

 

Por Sofia Zizza

 
Arte: Bárbara de Aguiar

Crianças gritando, conversas entre amigos, apresentações de música, batalhas de rima, ligações corporativas: todas essas formas de expressão compõem  uma infinidade de tipos de palavras, palavrões, palavrinhas e palavronas, que se misturam formando o todo que é a cidade de São Paulo. 

De acordo com um levantamento do Globo Gente de 2021, a capital paulista une mais de 70 nacionalidades distintas. Além dos gringos, 28% dos moradores da metrópole nasceram em outro estado do Brasil. Sem contar ainda os interioranos, os litorâneos, e os diferentes paulistanos da própria capital que formam a confluência entre “senhor” e “sinhô”, o “você” e o “cê”, o “tu”, o “meu”, o “mano” e o “meno”.

As diversas variações linguísticas, podem se distinguir de acordo com a região, estrato social e níveis de formalidade do falante, explica José Carlos Marques, professor de Língua Portuguesa na Universidade Estadual Paulista (Unesp). Todas essas condições, juntamente com o vocabulário e sotaque da família, formam o jeito que o indivíduo fala e se expressa, afirma a fonoaudióloga Stella Welker. 

Mesmo antes da primeira palavra, a linguagem reflete de onde veio e como vive a pessoa que fala. Luana Sverzut conta que só quando foi estudar em São Paulo percebeu seu sotaque do R puxado do interiorrrrrrr paulista. Mas mesmo com suas raízes de São Carlos, se pega falando “mortandela”, “berinjeila” e “apartameintu” igual as “mina de sampa”, como dizia Rita Lee.

Além de individualmente, uma pessoa, quando fala, também expressa vontades, anseios e vivências do grupo em que está inserida. O juridiquês dos advogados, por exemplo, repleto de jargões e de termos pouco difundidos, é uma forma de manutenção do poder, de mostrar que tal grupo possui mais conhecimento que outro. Nem todo mundo entra em uma audiência jurídica sabendo o que significa “Habeas Corpus” ou entendendo perfeitamente o que significa quando seu “processo foi despachado.

Já no rap, nas batalhas de rima e nos slams, o dialeto periférico vem carregado de história e de resistência, na maioria das vezes menosprezado, negativado e até mesmo considerado impróprio. “Os palavrões são liberdade de expressão, são uma forma de desabafo de todo o sentimento carregado”, explica MC Ray, campeã da última edição da Batalha de Rima da USP.

A língua é viva e só tem sentido quando é utilizada, quando a voz de um toca o outro e esse outro entende, assimila, remodela e interage. A língua é um sopro que vai e vem, que agrega de tudo um pouco, o que é impróprio para uns e próprio para outros.

Colaboradores: Vinícius Silvério (Vs Marabá) e Gabriela Leão.

Prazeres secretos

 

Por Julia Alencar Nicolas Dalmolin

 
Arte: Bárbara de Aguiar

Você tem um hábito que gostaria que ninguém descobrisse? Se sim, ele pode ser considerado um prazer culposo (guilty pleasure, em inglês). A expressão dá nome àquelas ações agradáveis que causam uma sensação de vergonha quando realizadas. Por isso, as pessoas que têm esses costumes não gostam de revelá-los, por mais inocentes que sejam.

Daniel* é professor em um colégio particular de São Paulo e tem prazer em fingir que está fora do país para encontrar estrangeiros em um aplicativo de namoro. Ele paga por uma versão mais avançada do programa para poder mudar a própria localização e dar matches ao redor do globo. “É tipo um jogo para mim. Se tem um match, é como se passasse de fase”, diz.

O professor garante que esconde o que faz pelo medo de ser considerado uma pessoa superficial. “Com esse hábito você tem uma validação externa, o que cai no estereótipo da pessoa solitária e carente. Mas, para mim, é só uma curiosidade de saber como são os homens de outros lugares”. 

Um prazer culposo, porém, não precisa ser algo muito elaborado. Evandro*, por exemplo, gosta de fingir que está jogando bola enquanto ouve uma narração de futebol sozinho em casa – algo que define como “ridículo e infantil, mas estranhamente divertido”. Já o nutrólogo Arthur* gosta de contrair os músculos do peitoral no ritmo das músicas que ouve no transporte público, sempre discreto para não ser descoberto. “Se me vissem, iriam pensar que estou me achando”, afirma.

A psicanalista Maria Erica Aquino explica que o receio de expor alguns hábitos pode ter origem nas percepções que o sujeito tem de reconhecimento social e aprovação. “[Esses elementos] são fundamentais na formação da identidade, e a falta deles pode resultar em um forte sentimento de desconforto, como a vergonha”, explica.

A vergonha é uma emoção complexa. Ela é gerada quando uma pessoa sente que falhou de alguma forma em atender às próprias expectativas do que a sociedade espera dela ou as das normas sociais que ela aceita. Para se libertar desse sentimento, existem duas opções: abandonar o hábito que causa vergonha ou mudar a percepção do que seria correto ou socialmente aceito.

O publicitário Leandro Batista afirma que, no mundo da propaganda, por exemplo, produtos com estigma social – como os aplicativos de namoro utilizados por Daniel – são representados em cenários de felicidade para minimizar a vergonha que poderia estar associada a seu consumo. 

A construção de imagem das pessoas segue a mesma lógica: cada indivíduo busca ser consistente nos comportamentos ao se apegar a uma série de ideias, pessoas e hábitos. “Você passa a pertencer a um grupo, e qualquer comportamento que desvie do esperado causa vergonha e, quando revelado, muitas vezes reprovação”, completa.

*Os nomes das fontes foram alterados para preservar suas identidades

O que não mata, engorda

 

Por Alícia Matsuda

 
Arte: Ester Nascimento

“Ultraprocessados” são produtos alimentícios mais do que industrializados, com ingredientes feitos em laboratório. Hiperpalatáveis, têm texturas e sabores sempre idênticos, nunca menos adocicados do que o último pacote. O excesso dos realçadores de sabor açúcar, gordura e glutamato monossódico define o “gostinho de infância” pelo menos desde os anos 1980, quando os salgadinhos e sucos de pozinho entraram nas lancheiras, e os primeiros McDonald’s chegaram ao Brasil.

Hoje, o Ministério da Saúde considera os ultraprocessados impróprios até os dois anos de vida. Desde o leite materno, o paladar humano recebe melhor os sabores adocicados e gordurosos, e logo molda essa preferência mostrando resistência ao amargor dos vegetais. Na primeira lambida de um doce, os sensores na língua ativam o sistema de recompensa do cérebro, liberando a dopamina – ou “hormônio da felicidade”. Esse prazer bioquímico se prolonga na digestão do alimento, quando a glicose entra no sangue e chega ao cérebro.

“Mas ninguém come gordura e nutriente, a gente come comida”, diz a psicóloga Andressa Cardoso, especialista em transtornos alimentares. Ignorando o contexto cultural de estar à mesa, as refeições se reduzem ao consumo de componentes isolados, algo que se popularizou na alimentação ocidental desde os anos 2000. No rótulo, ultraprocessados destacam os nutrientes adicionados e subtraídos, como um cereal matinal pode afirmar ser “baixo em sódio e fortificado em vitamina B12”, sem revelar o excesso de açúcar e a carência de outros minerais.

Por mais nutritivo que ele prometa ser, apelar pela praticidade de um empacotado no caminho do trabalho, ao invés de comer um lanche in natura, pode levar à deficiência de nutrientes básicos. Sem tempo na rotina para cozinhar, 4 em cada 10 brasileiros já começam o dia com ultraprocessados no prato, em cafés da manhã apressados com achocolatados e bebidas lácteas. O consumo desses alimentos é inversamente associado, por exemplo, ao nível de vitamina B12 no organismo.

Essa vitamina é ao menos 4 vezes menos abundante em ultraprocessados do que em alimentos naturais e minimamente processados, como queijos e iogurtes. “A B12 nutre a mitocôndria, célula mãe do corpo, e manda energia para todas as funções cognitivas. A carência desta vitamina acomete as emoções com sintomas de ansiedade, estresse e depressão”, explica a nutricionista Juliana Chiquito. Segundo ela, essa deficiência nutricional pode ser mascarada com remédios psiquiátricos, mas resolvida com uma dieta balanceada, desembalando menos e descascando mais.

Colaboradores: Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde (NUPENS-FSP-USP), Fundação Oswaldo Cruz

Era a vista!

 

Por João Chahad

 
Arte: Bárbara de Aguiar

Paulo Revuelta é um Viking da idade contemporânea. Mora em uma vila em Juquitiba, a 74 km a sudoeste da capital paulista. Vive entre cabras, machados e fogueiras. Por meio de áudios no WhatsApp, diz não concordar com os valores atuais: “Estar fora desse mundo estressante e poluído me motivou a largar a vida de escritório há  7 anos”. A falta do contato “olho no olho, da conversa de bar” e o sentimento de efemeridade fizeram Paulo adotar esse estilo de vida, e assim como muitos, fugir do seu próprio tempo.

Claro, a vida viking não é para qualquer um. A geração Z –  nascidos entre 1995 e 2010 – adotou a sua própria época de desejo, os anos entre 1980 e 2000. “A memória passa pelas gerações, seja de pai pra filho ou a partir de produtos culturais”, diz Luiz Alberto, pesquisador de publicidade para a Universidade Federal do Mato Grosso. Com o aumento do consumo de filmes e séries da segunda metade do século 20, junto com a adesão de tecnologias típicas dessa época pelas classes mais privilegiadas, as empresas viram a oportunidade de lucrar com produtos que lembram e idealizam o passado: “O ponto chave é a midiatização da memória cultural”.

O antigo toma o lugar do novo. O cenário contemporâneo é marcado pela inundação de “repetecos”, como os numerosos remakes de filmes, a volta do rock ao cenário musical ou mesmo trends nas redes sociais, como a #Y2K, que glamourizam a moda e a tecnologia dos anos 2000. “Produtos nostálgicos estão em todo lugar”, completa o publicitário. A ascensão de hábitos analógicos também rememora as épocas pré-internet, como crochê, pintura a óleo, cerâmica, marcenaria ou jardinagem caseira. Para Thiago Trindade, pesquisador do Detox Digital pela Universidade Federal de Santa Maria, as narrativas nostálgicas estão “associadas com a vontade de desconexão”.

Larissa é moradora de Campinas e tem a sua própria coleção de vinil. A estudante de 25 anos diz que “ouvir os discos traz uma memória do tempo com o pai” e os usa para descansar a mente e sair um pouco das redes. Ela contribuiu para que as vendas de vinis em 2023 superassem pela primeira vez em 35 anos a de CDs, segundo relatório da Associação Americana da Indústria de Gravação. De acordo com dados do Google Trends, no final de 2024, as câmeras digitais bombaram, o que fez a pesquisa por “Cybershot” atingir o seu pico desde 2009.

Paradoxalmente, produtos que fazem com que o usuário se desconecte – mesmo que parcialmente – são incentivados pelos algoritmos digitais: “o não ser digital depende do digital”, afirma Thiago. O pesquisador vai além ao dizer que a volta ao passado e a desconexão ainda são restritas a poucos grupos econômicos: “Coisas analógicas não tendem a ser baratas”, completa.

Saia justa

 

Por Gabriel Carvalho e Isabella Gargano

 
Arte: Bárbara de Aguiar

O escritório está, como sempre, tomado de camisas abotoadas e golas polo, que conversam em meio ao barulho dos teclados. Sapatos andam entre as mesas. Com voz firme, vestida de calças e blazer ajustado, inicia sua apresentação de forma impositiva: é Camila Souit, engenheira mecânica em uma multinacional, técnica especialista, mãe, e de acordo com um americano branco de meia idade do meio corporativo, gentil demais para chegar em algum lugar. Ela já está acostumada a lidar com questionamentos que seus colegas homens não receberiam.

Apesar das mulheres representarem 43% do total da população empregada, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) de 2023, elas ocupam somente 35% dos cargos de alta liderança, enquanto são 70% nas funções ocupacionais, como limpeza e recepção.  Camila conta que a camaradagem que sentia na universidade continuou só para os homens, “as mulheres parecem ter que tentar duas vezes mais para se provarem capazes e serem ouvidas”. Ela observa que mulheres na liderança se vestem com roupas que praticamente imitam as masculinas. “Uma vez, tomei coragem de ir de vestido ao trabalho, e tiveram tantas piadinhas. Piadas que fingiam ser elogios, mas no fundo não eram.” A engenheira relata que não quer ser reconhecida por qualquer coisa senão seu trabalho.

O mercado de trabalho é feito para o homem, assim desvaloriza os códigos relacionados ao feminino, e quando se tenta  reproduzir o masculino através da vestimenta, além de ser mais bem aceito, se agrega valor, explica Mayra Cotta, coautora do livro Mulher, Roupa, Trabalho (2021).

Reclamações sobre vestimentas no mundo corporativo são comuns, a maioria direcionadas a mulheres, é o que relata Mariana Corrêa, consultora de Recursos Humanos há 20 anos. “Para não dizer que foram todas, teve um único caso com homem, e foi porque ele começou a ir para o trabalho de papete,  o que, além de não ser adequado para o ambiente corporativo, tinha a questão do mau cheiro”, conta. “O homem nunca é sexualizado, já com as mulheres a maioria das vezes é uma questão o tamanho do decote, da altura da saia.”

A consultora observa que o homem tem um padrão feito para ele, enquanto para mulher, isso não existe, “ele vai estar de calça, camiseta, polo ou camisa”. O apontamento é sustentado por Mayra: “Toda vez que [nós mulheres] temos essa angústia de como se vestir para o trabalho, é uma forma de evidenciar o nosso não pertencimento àquele espaço”.

No escurinho do cinema

 

Por Paloma Lazzaro

 
Arte: Diego Facundini e Lara Soares

Corpos entrelaçados, respiração pesada e closes estratégicos. Uma cena de sexo pronta deve ser imersiva ao espectador. Apesar disso, “a sensualidade cênica é toda coreografada. Ao contrário de outros tipos de cena, onde o improviso é comum, se você faz uma coisa fora do previsto, pode ficar falso, não vender para a câmera ou ultrapassar os limites dos seus colegas”, conta Guilherme Senna, ator e coordenador de intimidade.

“Consentimento” é a palavra imperativa da intimidade cênica. “A gente costuma ser bem recebido pelos atores. Às vezes alguns até mesmo percebem durante a nossa conversa inicial que passaram por situações que não deveriam”, conta Ariela Goldmann, também diretora e coordenadora de intimidade. Para Senna, “o exercício para o ator é entender o personagem, quem é aquela pessoa. Nós montamos a coreografia em conjunto, tudo combinado e conversado. Atuando, é melhor já ter essa parte física bem resolvida e poder concentrar em outros aspectos da verdade cênica”.

A coordenação de intimidade recebeu reconhecimento há aproximadamente dez anos com o movimento MeToo, conforme Ariela, que está na função desde 2000. “Diretores me pediam para organizar essas cenas. Então eu fui fazendo, achando um jeito próprio. Nós dirigimos e organizamos as cenas para que sirva à narrativa e o tom e a estética da obra, sempre garantindo a segurança dos atores.” Atualmente, já existem cursos e manuais de como se faz esse trabalho, mas Guilherme também teve que aprender com a mão na massa e revela que conhece pouquíssimos profissionais no Brasil.

Mesmo com crescente profissionalismo e cuidado por trás da produção do sexo nas telas, a reação cultural é menos receptiva. Na internet brasileira, um mero tweet de 2022 pedindo por um “botão de pular cenas de sexo” foi responsável pela popularização do debate e sua discussão na grande imprensa. O caso americano é mais acentuado, com um declínio de 40% da nudez e sexo em filmes produzidos em Hollywood. Desde então, é um tópico dentro do roda a roda de pautas recorrentes na mídia.

Goldmann considera o momento cultural neo-conservador “uma pena, mas acho que isso vai se agudizar. Também tem outro elemento muito rápido e muito forte, que é a rede social e a perda do corpo. Ou seja, a ideia do corpo e do rosto como uma imagem. Isso é o anti-erotismo total. E eu percebi até em alguns atores, que existe menor costume com o toque”. Essa tendência cria um obstáculo não apenas à possibilidade de haver cenas de sexo na tela, mas também à segurança e conforto no set. Senna diz que “quando é tudo pelo não dito é muito mais perigoso, pode trazer constrangimento”.

O fenômeno é, aliás, atípico no Brasil, que tem obras eróticas desde o início de sua história audiovisual. “Desde os anos 1920, a nudez feminina e o sexo são considerados um ‘valor de mercado’. Os filmes eróticos lotavam salas com o público masculino”,  diz Carlos Augusto Calil, cineasta e atual Secretário Municipal de Cultura de São Paulo. 

Porém, “os tempos mudaram, os jovens são muito menos interessados em conteúdo erótico do que a minha geração, por exemplo. O pornô é facilmente acessível, banalizou o erotismo. Ele não é mais um valor de mercado, nem na grande indústria nem no contexto brasileiro”, complementa Calil.

O Extraviado Limite

 

Por Livia Uchoa e Pedro Morani

 
Arte: Diego Facundini e Lara Soares

Roupas chamativas, beleza, horários flexíveis, e propagandas atrativas, são alguns dos elementos que envolvem a profissão escolhida por Deusa e Fabiana. Diurna, Deusa sempre trabalha juntamente com a luz do sol, o que lhe garante mais segurança e flexibilidade. Sua rotina matinal começa com a confirmação de seus atendimentos, marcados por meio de seu contato profissional. 

Antes mesmo de ouvir o que os clientes desejam, ela já estabelece rigorosamente seus limites, o que faz ou não – e todos eles são respeitados. Com uma lista preestabelecida, ela sintetiza seus serviços: trabalha apenas com dominação e nunca como dominada. A violência não faz parte do seu dia a dia, até mesmo suas amarrações são frouxas. Ela não beija ninguém, e, principalmente, não faz nada com o ânus.

A relação com os limites é diferente para Fabiana, apelidada de “a Beata” por escutar louvor entre os atendimentos. Trabalhando por conta própria nas ruas de uma região abastada da cidade, ela fica dependente do movimento da noite. Sem programas marcados ou clientes fixos, ela não consegue prever o que vai acontecer e nem quanto vai receber no final da madrugada, o que abre brechas para situações desconfortáveis e até mesmo perigosas. 

Não beijar, não ter um vínculo amoroso com os clientes ou usar sempre preservativo são regras comuns a ela e suas colegas de ponto. Seu ambiente de trabalho, descrito por ela como hostil, também impacta no seu dia a dia. A Beata tem contato direto com ladrões, mendigos, drogados e todos aqueles que se aproximam em suas armaduras de aço sobre rodas.

Completando duas décadas de profissão, ela se lamenta em meio a lágrimas sobre como sente aversão a tudo aquilo. Sua filha, com recém completados 12 anos, é o que ainda a mantém firme. 

Apesar dos diferentes estilos, horários de trabalho e motivações, Deusa e Fabiana sofrem com o mesmo julgamento. Destruidoras de lares, vagabundas, pecadoras. Esses e outros xingamentos são dirigidos às profissionais do sexo diariamente, mas, claro, em proporções diferentes. A tela do celular protege Deusa, que nem responde pedidos diferentes de sua lista ou feitos com grosseria e arrogância. 

A brutalidade do concreto e das buzinas, porém, expõem Fabiana aos estereótipos da sociedade. Como uma porta-voz de suas colegas, ela conta experiências que revelam a falta de segurança nas esquinas e entre quatro paredes. Uma miserável que levou o golpe de um cliente após ter sido violentamente desrespeitada quanto ao uso do preservativo. Ou também a vítima de agressão física, que não conseguiu denunciar o crime as autoridades. 

Na face da tela ou no abafado cara a cara, os homens casados, que as procuram, conseguem, mais uma vez, estabelecerem seus limites. Contidos pelo receio da segurança digital, ou bem mais atrevidos por causa da fragilidade das leis das ruas para com essas mulheres, eles conseguem se deleitar todas as vezes, enquanto elas precisam diariamente reafirmar seus espaços nas esquinas físicas ou digitais. 

Colaboradoras: Cintia Sonale Rebonatto, autora da pesquisa “Moralidade e sentido do trabalho para profissionais do sexo”; Daiane; Deusa Artemis; Fabiana; e Sara Müller. 

Balada do Falso Eu

 

Por Davi Madorra

 
Arte: Ester Nascimento

Um bebê chora de fome, seu cérebro é pequeno e incapaz da palavra, mas aposto que ele pensa, “eu tenho tanta fome que vou morrer”. E sempre que chora, a mãe ignora seus prantos: quer educá-lo para não ser assim, mimado e chorão. É somente no cessar das lágrimas que ela lhe traz a recompensa, veja só, uma mamadeira cheia de mingau para o bebê que já começa a entender a indecência de seus primeiros desejos. “Na infância, somos atravessados pelo mundo, pelos gestos de nossos pais que contrariam instintos’’, afirma a psicanalista Thânis Kristine. Depois disso, não há jeito! Sufocamos versões-de-nós com o travesseiro do recalque, desovamos o cadáver no inconsciente, e esperamos as neuroses. 

Mas não é de todo mal e talvez haja certo charme nisso de não ser o que se é. A pessoa mais charmosa que já conheci, conheci enquanto não era. Uma academia de boxe e esse homem gritava com os alunos. A voz grossa, eu queria ser como ele, masculino e maligno, mas ao fim da aula, descobri, era mentira: “Escondemos versões, mas matá-las é impossível”, explica Kristine. E ele agora era o fofinho rapaz que veio me cumprimentar, tão educado e risonho. Anos depois, perguntei o motivo da mudança, e ele respondeu que é pra ser levado a sério. “Sem pulso firme, ninguém obedece.”

Lembrei da história do lutador Jean Silva, que quebrou os pulsos durante uma luta, e continuou brigando. Engraçado, lembrei disso também ao ler As Cinco Lições da Psicanálise, no qual Freud diz que reprimir pulsões é como expulsar de uma aula alguém que cochichava – quebrando-lhe os pulsos? – e de repente o excluso começa a bater na porta pelo lado de fora, brigando para que o deixem voltar – com pulsos quebrados? – atrapalhando bem mais. Parece certo. Ainda que o bebê pare de chorar, sente vontade de chorar; ainda que o boxeador fale tão sério, sente vontade de sorrir. 

“Imagina fingir o tempo todo?”, foi o que me disse Clarisse Borges, estudante e ex-bailarina. Ainda jovem, com cérebro de tamanho médio, começou a dançar, e interpretou um personagem agradável às exigências do Balé. “Rivalidade, dietas, disciplina. Eu fingia gostar disso pois não queria admitir que ‘meu sonho’ não tinha nada a ver comigo”. Em 2022, admitiu, e voltou ao Brasil. Há mesmo de haver um tempo em que admitimos, uma hora em que quebramos. Em que, com cérebros incapazes do inconsciente, pensamos, “eu tenho tanta fome que vou morrer”.

O claro! é produzido pelos alunos do 3º ano de graduação em Jornalismo, como parte da disciplina Laboratório de Jornalismo - Suplemento.

Tiragem impressa: 5.000 exemplares

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