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A bela e recatada desarmonia do lar

 

Por Pedro Ezequiel

 

Tudo mudou de lugar. Quem pôde, levou o trabalho para o ‘home office’. Quem não, perdeu o seu. E teve quem já estava trabalhando em casa. Se antes tinha tempo para o lazer, hoje nem isso ela tem entre as tarefas.

Acordar e ir direto para a panela. Café na mesa. Ligar o fogão é bater o ponto. O marido vê o telejornal. Tenta escutar, mas tem pressa: pega o transporte e demora para chegar na empresa. Ela continua em casa.

Antes de desligar deu tempo dela ver parte da matéria falando da pesquisa em que mulheres notaram o aumento nas tarefas em casa. E, assim, cerca de 56% delas conseguem fazer exercícios físicos — número menor que o de homens, com 66%. 

O filho quer assistir série. É hora de limpar a casa. Ele tem aula EAD e reclama. Direito dele de ver TV? Ela já perdeu o dela. O que sobra são os deveres do lar.

A faxina começa para não atrasar o almoço, mais uma responsabilidade. A cabeça é ocupada demais em equilibrar tudo. Algo comum para muitas outras mulheres.

Até tenta um momento mais tranquilo ouvindo música. É a distração dentro dos cômodos. Ela também não viu, mas entrou para os 91% dos paulistanos que escutam música como forma de lazer — saberia se tivesse visto o resto da reportagem do telejornal.

Mas o seu lazer não gera descanso, só casa limpa. 

Ela escuta música no celular que ganhou do filho. Achou curioso ele comprar em meio a crise. Se houvesse uma divisão dos afazeres e tivesse tempo de ler notícias, veria que ele é um dos jovens de 16 a 24 anos que compõem os 55% que compraram pela internet. 

Só reparou que chegaram mais encomendas pelo correio. Para ele, claro. Ela viu da janela de casa. Mas logo voltou ao serviço.

Não perde seu tempo nos pensamentos. O relógio da casa não para. Ainda tem de lavar as roupas do filho, que jogou futebol no final de semana. Lembra de como queria fazer uma caminhada. Tentou organizar por aplicativo de rotina e viu gente que gerenciava o tempo. Mas nenhum deixou sua vida mais leve. Venceu o raro cochilo da tarde. Continuou em casa.

Resta ver as redes sociais. O marido chega, reclama do trânsito. Ela pensa como seria gastar tempo olhando pela janela do ônibus. Sem afazeres. 

Hora de dormir. Eles levantam cedo para ir trabalhar e estudar. Ela continua em casa, equilibrando tudo para eles. Ela, a dona de casa.

 

Fontes: 

“Pesquisa: “Percepção sobre marcas e consumo na pandemia” do Instituto Datafolha em  julho de 2020

“Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua Anual – 5ª Visita” do IBGE, em 2019

“Pesquisa Painel TIC COVID-19: Usuários de Internet que Compraram Produtos e Serviços pela Internet nos Últimos 3 meses” do Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação em agosto de 2020

Colaboração:

Geraldo Ramos, vendedor autônomo;

Leandro Passos, palestrante e coach de planejamento pessoal;

Mateus Orio, sociólogo e professor na Universidade Estadual de Goiás;

Marta Rocha e Tânia Regina Maschio, donas de casa.

 

Lar agridoce

 

Por Bruna Martins

 

Hoje foi um dia daqueles.

Professor passou várias atividades, não parei um minuto no estágio. To chegando em casa agora e ainda tenho que fazer minha janta. Se é que dá pra chamar miojo de “janta”.

Meu pensamento de repente vai lá pra casa da minha mãe – que até outro dia ainda era minha casa também. Consigo sentir o cheiro do estrogonofe que só ela sabe fazer. Meu estômago ronca. À essa hora eu estaria encontrando a comida quentinha na panela, meu cachorro já teria vindo pulando nas minhas pernas para eu brincar com ele.

Mas eu tô aqui, sozinha no meu apê, me perguntando quando eu vou ter tempo de limpar a poeira que já tá se acumulando na escrivaninha.

“Tudo bem, Bruna, porque o que importa é que amanhã a galera vai vir em casa e a noite vai ser louca”, eu penso.

Com meus 15 anos eu sonhava com o dia em que ia poder dar uma festa na minha própria casa. Para mim, aquele seria meu ponto máximo de liberdade.

E eu acho que é quase isso.

Hoje eu faço meus horários, moldo minha rotina, não dependo mais de permissões.

Mas liberdade é uma coisa esquisita, né.

A mesma liberdade que te solta para uma rotina que é só tua também pode te prender num emaranhado de inseguranças. Às vezes dar um primeiro passo não é tão fácil quando não se tem um apoio por trás.

Eu olho pro cesto de roupas sujas e lembro que ia lavá-las hoje, aproveitar que está calor. Mas acabou o sabão em pó, esqueci de comprar mais, e agora?

Preciso resolver isso no mercado amanhã. Aproveito e já passo no banco e pago as contas. Aproveito e já procuro mais coisas que eu tô precisando – estabilidade emocional, sono regulado, saúde física e mental. Quem sabe.

A vida às vezes nos tira essas coisas e a gente nem se dá conta.

Mas acho que ser adulta é isso. É ter que morar – e me virar – sozinha, sair da bolha de proteção afetiva, me jogar em experiências nas quais só eu posso cuidar de mim. Crescer.

É viver essa constante busca de equilíbrio entre meus desejos e minhas necessidades. Colocar um pouco de mim em cada coisa que eu faço.

Agora o relógio já tá marcando dez horas, o tempo corre e eu nem percebo mais. É melhor eu fazer comida logo e terminar o trabalho para a próxima aula. Amanhã o dia vai ser longo.

 

O claro! é produzido pelos alunos do 3º ano de graduação em Jornalismo, como parte da disciplina Laboratório de Jornalismo - Suplemento.

Tiragem impressa: 5.000 exemplares

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