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Uma volta pelos traços de um Brasil negro

 

Por Guilherme Weffort e Larissa Silva

 

É consenso que tivemos mais de 300 anos de escravidão e essa afirmação, em teoria, faz parte da “memória coletiva” do país. Acontece que nem sempre a ideia de “coletivo” se refere ao conjunto da população. E essa “memória” não é produzida apenas pelas nossas lembranças.

 

Quem percebeu a falta da presença da população negra na memória coletiva de São Paulo foi o coletivo Cartografia Negra, fundado em 2017 por jovens negros que compartilhavam dessa mesma inquietação. A partir disso, os integrantes Raissa Albano, Carolina Piai e Pedro Alves passaram a realizar a caminhada Volta Negra em determinados pontos de São Paulo, para despertar as memórias que existem ali. Para o coletivo, “ao ignorar a existência das memórias dos povos negros, ignora-se também o passado colonial da cidade”.

 

A Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, localizada no centro de São Paulo, foi construída por trabalhadores negros no início do século XX. Esse ponto faz parte da rota do Volta Negra. Foto: Gabriel Cordeiro/Unsplash

A Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, localizada no centro de São Paulo, foi construída por trabalhadores negros no início do século XX. Esse ponto faz parte da rota do Volta Negra. Foto: Gabriel Cordeiro/Unsplash

 

Isso porque a história mais definida, mais documentada e, por consequência, hegemônica, é da população branca. Isso é ressaltado por Túlio Pereira, doutor em História e pesquisador acerca das Identidades Étnicas e Afro-brasileiras; as histórias da origem das populações de índios e africanos escravizados no Brasil “não foram protagonizadas por elas, sequer foram contadas com a mesma importância com a qual contamos as histórias do colonizador”. 

 

O Brasil é como um quebra-cabeça de narrativas; cada peça foi colocada por um grupo social diferente, mas muitas foram postas e outras retiradas pelos grupos dominantes. Túlio deu os exemplos da ausência de negros na temática da Academia de Belas Artes e Escola Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro no século XIX, e os livros didáticos da década de 1942 até 1971, que valorizavam a Europa. Essas atitudes, para ele, ajudaram no processo de esquecimento de parte da história de povos negros da memória coletiva dos brasileiros.

 

Na contramão desta situação, são muitas as iniciativas da comunidade acadêmica, da cultura e dos movimentos sociais para dar força a esta história não contada. O historiador Júlio Vellozo cita como uma das vitórias a aprovação do Feriado da Consciência negra, que celebra Zumbi dos Palmares. Para ele, “trata-se de um exemplo que demonstra que, mesmo com meios infinitamente menores, é possível que os de baixo consigam fazer justiça através da disputa pela memória”.

 

Mesmo assim, Júlio é pessimista quanto ao presente e futuro. Diz que vivemos uma crise da verdade que “atingiu em cheio as interpretações da história, sempre com vistas a disputar politicamente a memória”, e que corremos o risco de termos uma construção de memória coletiva que  “justifique as violências contra grupos determinados”. Assim, a interpretação equivocada das memórias, o valor delas e o esquecimento de outras podem contribuir para legitimar a inferiorização de parcela da população.

 

Para a memória coletiva, principalmente a de São Paulo, ser mais inclusiva, o Volta Negra chama a população para participar dos encontros em que são compartilhados relatos e documentos dos espaços escolhidos. Alguns dos locais são o Largo da Memória, o Beco dos Aflitos, o Largo da Misericórdia, a Praça Antonio Prado e o Largo do Paissandú. Isso porque esses pontos eram espaços de tortura ou de resistência dos povos africanos e afrodescendentes.

 

As memórias são laços que conectam as pessoas e por isso a Volta Negra é uma importante iniciativa para a memória da cidade. De acordo com a psicóloga social Luciene Naiff, “temos memórias sociais compartilhadas em nossa família, no grupo étnico e político, e em nosso país”. Porém, este processo não é fruto apenas da troca de experiências. Para Júlio, “Existem operações conscientes de construção da memória que se fazem, principalmente, através da escolha daquilo que deve ser lembrado”.

 

Não se pode dizer ao certo quais serão as próximas peças que vão entrar ou sair do quebra-cabeça do Brasil, mas se pode compreender que ele não é imutável, e que tem muita gente brigando por seus espaços.

 

Colaboram com este texto:

Coletivo Cartografia Negra – idealizador da caminhada Volta Negra

Júlio Vellozo – Historiador e professor da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie e da FADISP.

Luciene Naiff – Psicóloga Social e professora da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro

Túlio Pereira – Doutor em História e pesquisador acerca das Memórias, Identidades Étnicas e Afro-brasileiras; História da Pele e do Corpo Negro no Brasil; Escravidão negra no Brasil Imperial, Pós-Colonialismo e Primeira República.

 

O claro! é produzido pelos alunos do 3º ano de graduação em Jornalismo, como parte da disciplina Laboratório de Jornalismo - Suplemento.

Tiragem impressa: 5.000 exemplares

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