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Memórias eternas do inesquecível

 

Por Guilherme Roque e Isabella Velleda

 

No início, não havia nada. De repente, porém, surgiu tudo. E se a evolução é a lei da vida, é a memória que torna isso possível.

 

Para sabermos o quão longe chegamos, precisamos nos recordar de onde viemos. Isso é verdade nas mais diversas proporções: de indivíduos a sociedades inteiras. Embora, no dia-a-dia, optemos por deixar os traumas na escuridão, a lição que tiramos dos principais eventos que marcaram a humanidade é clara: não devemos esquecer.

 

Afinal, mais do que apenas a sensação de evolução, a memória nos proporciona o sentimento de pertencimento. Não é à toa que existe um grande valor atribuído às obras de arte que resistiram ao passar dos séculos e milênios. A memória é a base para a construção de uma identidade; e, assim, ela é também um importante instrumento de poder.

 

Esquecemos, porém. Em alguns, a memória se desvanece, como uma estrela perdendo aos poucos seu brilho no céu ao toque suave da melodia do amanhecer. Todos os dias, contudo, informações entram por um de nossos ouvidos e saem pelo outro. E, apesar de esse processo ser muitas vezes visto negativamente, ele é tão natural quanto essencial. Imagine que tortura seria lembrar de absolutamente tudo?

 

Seja como for, sempre poderemos retornar aos acontecimentos e pensamentos insignificantes através de nossos diários e escritos pessoais. Talvez um dia, quem sabe, eles nem sejam mais tão insignificantes assim.

De cor e salteado

 

Por Tamara Nassif

 

Desde a primeira vez que contou como passou no vestibular do Largo São Francisco, Ataíde, de 86 anos, nunca deixou de lado o detalhe de que não sabia nada de contabilidade. Há três anos, no entanto, passou a esquecer a matemática da história e até improvisar em narrações, que, de tantas vezes contadas, já foram decoradas pelos netos.

 

A Doença de Alzheimer foi a responsável pelas pequenas alterações nos relatos. Também o fez inventar idas à Itália, numa mistura do sonho de conhecer a descendência mediterrânea com o minucioso roteiro de viagem que nunca vingou (— Claro que viajamos, você não lembra daquela ruazinha assim-assado?).

 

Se perderam nomes e vocábulos, mas nunca o hábito de contar suas histórias – assim como Celso, de 85 anos, que, de pavio curto pelos anos no Exército e ótimo jogador de xadrez, revive as vésperas de seu casamento, comovido: como presente ao casal, o sogro construiu uma casa no Belenzinho, perto do Largo São José do Belém. 

 

Celso vira-e-mexe volta sessenta anos no tempo para paquerar a esposa, se emociona ao pensar na casa presenteada como se fosse ontem e até arruma as malas para se mudar. Algumas voltas de carro já são o bastante para que a casa fique no passado. Quem dirige não é ele, mas gostava de conduzir até que se perdeu ao ir ao banco e nunca mais dirigiu.

 

Vicentina, de 95 anos, tem um caso parecido. Fazia as unhas em um salão perto de casa e, em duas semanas, esqueceu como voltar. Desde então, não foi mais sozinha.

 

Mas a doença, como nos casos de Ataíde e Celso, não apagou algumas histórias. Vicentina ainda fala da “pinta azul que ganhou de um marinheiro em uma ida ao porto”, como se refere a tatuagem feita na juventude; a irmã tem o par, mas verde. E pergunta: “Ele vai chegar?”, na expectativa de que o marido Rosário, falecido há 21 anos, a busque ou lhe faça companhia – coisa que, carinhosa, gosta e muito. 

 

A família de Vicentina diz que “Alzheimer não esquece amor”. A de Celso, que “é melhor rir do que chorar” com as lacunas do enxadrista. A de Ataíde, que a doença foi uma oportunidade para o conhecer de novo e ouvir, todos os dias, uma aventura diferente.

 

A verdade é esta: o afeto perdura. E não se esquece.

 

Colaboraram:

Larissa Udiloff, Luana Ferrari, Giulia Zanetti, Beatriz Carvalho, Natasha Castro, Leticia Nobre e Dra. Nathália Villa. 

Uma volta pelos traços de um Brasil negro

 

Por Guilherme Weffort e Larissa Silva

 

É consenso que tivemos mais de 300 anos de escravidão e essa afirmação, em teoria, faz parte da “memória coletiva” do país. Acontece que nem sempre a ideia de “coletivo” se refere ao conjunto da população. E essa “memória” não é produzida apenas pelas nossas lembranças.

 

Quem percebeu a falta da presença da população negra na memória coletiva de São Paulo foi o coletivo Cartografia Negra, fundado em 2017 por jovens negros que compartilhavam dessa mesma inquietação. A partir disso, os integrantes Raissa Albano, Carolina Piai e Pedro Alves passaram a realizar a caminhada Volta Negra em determinados pontos de São Paulo, para despertar as memórias que existem ali. Para o coletivo, “ao ignorar a existência das memórias dos povos negros, ignora-se também o passado colonial da cidade”.

 

A Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, localizada no centro de São Paulo, foi construída por trabalhadores negros no início do século XX. Esse ponto faz parte da rota do Volta Negra. Foto: Gabriel Cordeiro/Unsplash

A Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, localizada no centro de São Paulo, foi construída por trabalhadores negros no início do século XX. Esse ponto faz parte da rota do Volta Negra. Foto: Gabriel Cordeiro/Unsplash

 

Isso porque a história mais definida, mais documentada e, por consequência, hegemônica, é da população branca. Isso é ressaltado por Túlio Pereira, doutor em História e pesquisador acerca das Identidades Étnicas e Afro-brasileiras; as histórias da origem das populações de índios e africanos escravizados no Brasil “não foram protagonizadas por elas, sequer foram contadas com a mesma importância com a qual contamos as histórias do colonizador”. 

 

O Brasil é como um quebra-cabeça de narrativas; cada peça foi colocada por um grupo social diferente, mas muitas foram postas e outras retiradas pelos grupos dominantes. Túlio deu os exemplos da ausência de negros na temática da Academia de Belas Artes e Escola Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro no século XIX, e os livros didáticos da década de 1942 até 1971, que valorizavam a Europa. Essas atitudes, para ele, ajudaram no processo de esquecimento de parte da história de povos negros da memória coletiva dos brasileiros.

 

Na contramão desta situação, são muitas as iniciativas da comunidade acadêmica, da cultura e dos movimentos sociais para dar força a esta história não contada. O historiador Júlio Vellozo cita como uma das vitórias a aprovação do Feriado da Consciência negra, que celebra Zumbi dos Palmares. Para ele, “trata-se de um exemplo que demonstra que, mesmo com meios infinitamente menores, é possível que os de baixo consigam fazer justiça através da disputa pela memória”.

 

Mesmo assim, Júlio é pessimista quanto ao presente e futuro. Diz que vivemos uma crise da verdade que “atingiu em cheio as interpretações da história, sempre com vistas a disputar politicamente a memória”, e que corremos o risco de termos uma construção de memória coletiva que  “justifique as violências contra grupos determinados”. Assim, a interpretação equivocada das memórias, o valor delas e o esquecimento de outras podem contribuir para legitimar a inferiorização de parcela da população.

 

Para a memória coletiva, principalmente a de São Paulo, ser mais inclusiva, o Volta Negra chama a população para participar dos encontros em que são compartilhados relatos e documentos dos espaços escolhidos. Alguns dos locais são o Largo da Memória, o Beco dos Aflitos, o Largo da Misericórdia, a Praça Antonio Prado e o Largo do Paissandú. Isso porque esses pontos eram espaços de tortura ou de resistência dos povos africanos e afrodescendentes.

 

As memórias são laços que conectam as pessoas e por isso a Volta Negra é uma importante iniciativa para a memória da cidade. De acordo com a psicóloga social Luciene Naiff, “temos memórias sociais compartilhadas em nossa família, no grupo étnico e político, e em nosso país”. Porém, este processo não é fruto apenas da troca de experiências. Para Júlio, “Existem operações conscientes de construção da memória que se fazem, principalmente, através da escolha daquilo que deve ser lembrado”.

 

Não se pode dizer ao certo quais serão as próximas peças que vão entrar ou sair do quebra-cabeça do Brasil, mas se pode compreender que ele não é imutável, e que tem muita gente brigando por seus espaços.

 

Colaboram com este texto:

Coletivo Cartografia Negra – idealizador da caminhada Volta Negra

Júlio Vellozo – Historiador e professor da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie e da FADISP.

Luciene Naiff – Psicóloga Social e professora da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro

Túlio Pereira – Doutor em História e pesquisador acerca das Memórias, Identidades Étnicas e Afro-brasileiras; História da Pele e do Corpo Negro no Brasil; Escravidão negra no Brasil Imperial, Pós-Colonialismo e Primeira República.

 

Um pilar frágil: testemunhos criminais

 

Por João Pedro Malar

 

Para além de guardar momentos importantes, a memória é utilizada muitas vezes como peça central em processos criminais. É a partir dos testemunhos que surgem acusações, defesas e, em especial, sentenças.

 

William Cecconello, que estuda o processo cognitivo de testemunhas no ambiente judicial, observa que a memória está mais associada ao processo do que à investigação. É dado muito valor para o que é dito por uma testemunha para um juiz, mas muitas vezes os testemunhos não são trabalhados como fontes de pistas que, se investigadas, podem corroborar relatos ou mudar o rumo de um  julgamento.

 

Se nos processos a memória é vista como algo sólido, na prática ela pode ser repleta de furos. Primeiro, há a questão temporal: o tempo naturalmente leva as pessoas a esquecerem informações. “Apesar disso, no processo é exigido que lembremos de tudo com detalhes”, pontua o pesquisador.

 

Essa exigência está ligada à existência das chamadas falsas memórias. Gustavo Noronha de Ávila, que realiza pesquisa sobre as distorções na memória em processos penais, explica que elas são formadas quando as pessoas precisam lembrar de algo que ocorreu há algum tempo, e preenchem detalhes esquecidos por “elementos que lhes parecem coerentes”. 

 

A pessoa que relata uma falsa memória acredita que está falando a verdade, e não tem a intenção de mentir, fatores que a diferencia de um falso testemunho. Ávila ressalta que a possibilidade de existência de falsas memórias torna a corroboração de testemunhos com outros registros essencial para o processo.

 

Outro ponto é que a influência de entrevistadores pode levar a erros de condenações. Foi o caso de André Biazucci, condenado por estupro após ser identificado por vítimas quando foi levado à delegacia por ter um carro e placa semelhantes aos relatados. Um exame de DNA posterior à condenação comprovou que ele não era o estuprador. 

 

Para evitar essa influência foi criada a entrevista cognitiva. Segundo Catarina Gordiano, que estuda a questão da verdade em processos, é uma técnica que busca “o maior nível de informação com o menor número de alterações”. Nela a testemunha fornece um relato livre, com poucas interrupções ou falas sugestivas dos entrevistadores, e que é revisado pela própria testemunha. 

 

Mesmo com todas essas questões, os entrevistados destacam que a memória é um elemento crucial para o processo penal. Mas deve ser vista como passível de falhas, e que, portanto, demanda comprovação, para evitar erros e corroborar sentenças que podem afetar para toda a vida os envolvidos em um processo.

 

O Universo também tem lembranças

 

Por Laura Scofield e Mariah Lollato

 

Imagine que você é um jovem alien curioso que chegou à Terra e quer descrever as fases da vida humana. A melhor maneira de fazer isso é ver um bebê nascer e crescer, mas sua viagem tem apenas um dia. Marcelo Rubinho, astrônomo dos Planetários de São Paulo, usa a analogia para explicar seu trabalho.


A solução seria observar a maior quantidade possível de seres humanos crianças, adolescentes, adultos e idosos e criar uma teoria evolutiva. Na Astronomia é parecido: “Temos uma ‘foto estática’ do céu e a consciência de que nunca veremos uma estrela desde o dia em que nasceu, mas buscamos cobrir as lacunas do conhecimento”.
O estudo de estrelas e galáxias é exemplo deste método, elas são analisadas pelo que já foram e o conhecimento é usado para entender o todo. A astronomia é uma ciência histórica, porque usa elementos existentes em diferentes fases da própria evolução para constituir a memória do Universo.

 

Estrelas, galáxias e histórias

Algumas estrelas variam o brilho periodicamente. Em alguns casos, como conta Eduardo Cypriano, pesquisador de aglomerados de galáxias do IAG-USP, elas estão cercadas por nuvens de gás e poeira: as nebulosas. 

 

Um fenômeno causado pela luz emitida por esses astros evidencia a importância do passado no estudo do espaço: numa mesma imagem, podem ser vistos resquícios de diferentes fases da vida da estrela. Como a luz demora para viajar, na nebulosa, “as regiões mais próximas do astro refletem luz emitida há pouco tempo, enquanto nas regiões mais distantes, vê-se refletida a luz que a estrela produziu antes”, diz Eduardo. 

 

O fenômeno aí representado se chama “Eco de Luz”. No gif, a luz emitida no ponto 1 é mais recente, por estar mais perto da estrela. No ponto 2, a luz é mais antiga já que, pela distância, levou mais tempo para chegar ali. Isso acontece em função da velocidade da luz e é acentuado por se tratar de uma estrela variável.

O fenômeno aí representado se chama “Eco de Luz”. No gif, a luz emitida no ponto 1 é mais recente, por estar mais perto da estrela. No ponto 2, a luz é mais antiga já que, pela distância, levou mais tempo para chegar ali. Isso acontece em função da velocidade da luz e é acentuado por se tratar de uma estrela variável.

 

Outra forma de entender mais sobre a vida e história desses astros é por meio de seu lugar nas galáxias. Como no espaço as distâncias são muito grandes, a galáxia continua evoluindo enquanto a luz que emana dela se desloca, como explica Mírian Castejon, pesquisadora de aglomerados de galáxias, também astrônoma dos Planetários de São Paulo. Quando chega, vem com muito atraso. Um exemplo que torna isso bem claro pode ser visto na Alfa Centauri, a estrela mais próxima de nós, depois do Sol. Sua luz demora quatro anos para nos atingir, ou seja, o que vemos é a imagem de como a estrela era quatro anos atrás. 

 

Por meio de suas cores, as galáxias espirais e elípticas são ótimas contadoras de histórias. O centro das espirais é avermelhado, com estrelas mais frias, de menor massa e vida razoavelmente longa. Já em suas extremidades estão estrelas azuis brilhantes de muita massa, jovens e de vida mais curta. 

 

GalaxiaAzulVermelha

 

 

Em uma galáxia elíptica, a pouca quantidade de gases impossibilita o surgimento de novas estrelas, azuis. É uma galáxia velha, que conta sua história em vermelho, laranja e amarelo. 

 

Eliptica (ilustração)

 

Ao mesmo tempo, se vê no Universo estrelas azuis jovens, de meia idade vermelhas, e anciãs amarelas. As cores presentes nas diferentes fases de vida de cada estrela descrevem seu “nascer, crescer e morrer”, respectivamente. 

 

Como capturar o passado?

“Para entender o passado, é preciso estudar todo o processo dali até o presente, observando bem o caminho”, afirma Eduardo. Ou seja: é preciso ter certeza de que a criança, o jovem e o adulto dizem respeito a fases diferentes e subsequentes do mesmo ser, para constituir sua memória. “As dificuldades são encontrar os fenômenos adequados, reconhecer sua equivalência, e examiná-los com rigor para não perder detalhes”, explica o pesquisador.

 

Entretanto, os desafios não são só teóricos. Estudar algo que aconteceu há bilhões de anos também apresenta desafios práticos – e que só tecnologias avançadas e investimentos são capazes de resolver.

 

Mas como conseguir financiamento para um projeto que começa hoje, mas só vai ser publicado em vinte anos? Eduardo ressalta que há que se ter paciência para esperar o tempo passar e novos equipamentos surgirem. E, depois de prontos e instalados, paciência para conseguir locar os grandes e inovadores telescópios. 

 

Mesmo assim, o pesquisador não desanima: “Vejo tudo mais como um desafio! É um privilégio da astronomia ter toda a história disponível.” A animação não é recente.

 

Se o jovem alienígena do início deste texto tivesse chegado ao nosso planeta em 1987 e caísse justamente numa escola específica em São Paulo, encontraria Eduardo com 16 anos tomando café. Com o jornal impresso na mão, o jovem, que sempre quis ser cientista, lia com fascínio sobre a primeira supernova identificada. Muita coisa já mudou na Terra, mas até hoje ele espera uma nova supernova surgir para revelar mais a respeito da memória, do presente e do futuro do universo. 

 

Colaboraram:

Elcio Abdalla, físico especialista em estudo das partículas elementares, gravitação e cosmologia do IF-USP. 

Marcelo Porto Allen, doutor em astronomia, estuda astrofísica de altas energias.

Henriette Righi, doutora em biotecnologia e biofísica dos Planetários de São Paulo.

Dinah Moreira Allen, doutora em astronomia, estuda composição química de estrelas e é ligada ao Planetários de São Paulo e à Escola Municipal de Astrofísica. 

Edição Online – Memórias

 

Por clarousp

 

Confira aqui a edição online do Claro! Memórias.

Memórias Compartilhadas

 

Por Beatriz Quesada

 

Hora de passar adianta a herança da família

coisas antigas

Sua parte favorita da herança são as seis xícaras listradas de amarelo e acompanhadas dos pires, o único conjunto completo de sua coleção. Ficavam na prateleira à altura dos olhos, quando ainda era uma criança admirando a cristaleira que a avó ganhou de presente de casamento, na década de 30.

 

Minha mãe arruma cuidadosamente as xícaras antigas, primeiro envolvendo em jornais e depois colocando numa caixa de papelão. Tudo bem conservado até que a restauração do móvel da família fique pronta para receber as peças que acompanham a cristaleira há três gerações familiares. É bom estar cuidando do que sua avó e sua bisa cuidaram.

 

Olhei aquela pilha de louças amontoadas e perguntei se ela já havia pensado em se desfazer de alguma coisa. Claro que não. Preferia que se mantivesse na família, que eu e a minha irmã tomássemos gosto pela coisa e herdássemos o sentimento junto com as louças. Eu, que nunca tinha pensado em cuidar da cristaleira, propus que procurássemos outro destino para os objetos, só para ver a reação. Primeiro um não, depois um riso desconfiado. Cê tá louca, filha? Disse que ia dar só uma olhada, como quem não quer nada.

 

O primeiro passo foram os antiquários e afins. Na feira de antiguidades do MASP, que acontece todo domingo, encontrou uma xícara rosa igual a da bisa. Quanto custa? Ela não queria saber de vender, mas perguntava o preço. Depois percebi que só por curiosidade, já que também não queria comprar. Nada daquilo tinha o mesmo valor para ela, eram coisas estranhas à sua memória.

 

Quem sabe um museu? Uma instituição que se dedica à preservação e apresentação de objetos antigos parece um bom local para que as relíquias passem a eternidade. Minha mãe aprovaria. Sempre gostou de observar essas peças, pensar nas pessoas que as teriam usado.

 

Claro, nem todas as peças são aceitas pelas instituições. Se passar pelas etapas de seleção, a relíquia da minha mãe deve ficar na reserva do museu, entre suas iguais, sendo zelada por funcionários e exposta de quando em quando.

 

Mesmo se os museu e lojas estiverem prontos para receber a cristaleira, minha mãe não está pronta. Filha, não sei se estarei um dia. E eu nunca havia percebido o quanto aquele objeto significava até pedir que ela fizesse isso.

 

Cada um tem um tempo próprio para decidir que está na hora de se deixar aquele objeto – que tanto significa para sua vida e para sua família – ser conhecido e até usado por outras pessoas. Às vezes esse tempo nunca chega.

 

Perguntei se não queria contar a história da família em um projeto de registro, compartilhar o valor afetivo, como havia acabado de fazer comigo. Pra quê, filha? Ninguém vai querer escutar isso.

 

Encontrei uma iniciativa que ela achou interessante. Não por poder contar a sua história, mas por ouvir a dos outros. O projeto de voluntários do Museu da Pessoa funciona à distância, e conta com transcrição de relatos de vidas comuns. Para minha mãe, seguem juntos o medo e o entusiasmo de tentar algo novo, ou nem tão novo assim. Afinal, cuidar da cristaleira durante anos já não é manter viva a história de alguém?

 

Futuro do pretérito

 

Por Giovana Feix

 

2015-09-13 19.53.03

Com 77 anos de vida, 57 de casada, preciso admitir. Não sei bem o que fazer de tantas lembranças.

Meus filhos estão sempre aqui em casa, mas nenhum jamais teve interesse em abrir isso junto comigo – em conhecer esse quase museu de memórias que juntei ao longo da vida.

Fazia tempo que eu mesma não dava atenção a ele. Foi a mudança que me obrigou. O escritório é o cômodo que mais está dando trabalho: esse armário do canto direito, que costumo fechar a chave, tem tanta lembrança dentro que muitas vezes me vi hesitante em explorá-lo.

 

Quando abri estas portas, hoje, as coisas foram diferentes. Além do passado, era também o futuro que eu temia. Diferente do primeiro, este novo medo me trazia um frio gostoso à barriga. Eu e Silvio nunca fomos acomodados, mas, com a idade, as coisas mudam. Assim que nos demos conta, decidimos pela casa nova, no bairro onde, tanto tempo atrás, nos conhecemos e construímos nossa vida.

 

Aqui dentro estão, catalogados, os mais de quarenta álbuns de foto da nossa família. Diante deles, uma sensação estranha: ao contrário do que acontece com as madrugadas que passei organizando as imagens, já não lembro com clareza dos momentos que elas registram.

 

No canto direito está a caixa com minhas cadernetas. São mais de quinze, preenchidas de ponta a ponta com versinhos que escrevi, quando ainda não tinha família para fotografar. A tentativa de lembrar como foi composta minha vasta poesia também causa estranhamento. Desse tempo, o que pareço ter registrado com mais intensidade é a esperança: as cadernetas, muito além de momentos, têm o poder de me lembrar de sonhos. Elas são lembranças do futuro que, durante muitos anos, me dediquei a planejar.

 

Ainda que esses planos tivessem, sim, um espaço reservado aos álbuns de família, não posso negar que a ideia central do meu roteiro nunca chegou a se concretizar. Ter meus versinhos publicados sempre esteve rotulado, em um canto escondido dos meus pensamentos, como nada além de um sonho juvenil. Nenhum poeta famoso nasce em Caxias do Sul, eu pensava. Melhor seguir os conselhos da mamãe: as responsabilidades da casa e da família são as únicas capazes de fazer da menina uma mulher.

 

A tarde que passo relendo os versinhos atrasa a mudança e castiga  minha coluna, mas também torna evidente: a beleza do novo frio em minha barriga ultrapassa o mero frenesi da novidade.

 

Voltar ao bairro onde eu e Silvio nos conhecemos é voltar à sensação que um dia tive, de que as palavras me reservavam um futuro brilhante. Afinal, esse também é o bairro onde eu cresci, e onde, além das cadernetas, meu futuro foi um dia preenchido com sonhos.

 

Depois de finalmente terminar a separação do que vai à casa nova e o que vai ao lixo, é engraçado o quanto já não me sinto confusa sobre o que fazer das lembranças desse armário.

 

Não há mais espaço para receio. Ainda tem futuro pela frente, e quem sabe agora, com 77 anos de vida, 57 de casada, seja hora de apostar em ideias juvenis.

O claro! é produzido pelos alunos do 3º ano de graduação em Jornalismo, como parte da disciplina Laboratório de Jornalismo - Suplemento.

Tiragem impressa: 5.000 exemplares

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