
Um bebê chora de fome, seu cérebro é pequeno e incapaz da palavra, mas aposto que ele pensa, “eu tenho tanta fome que vou morrer”. E sempre que chora, a mãe ignora seus prantos: quer educá-lo para não ser assim, mimado e chorão. É somente no cessar das lágrimas que ela lhe traz a recompensa, veja só, uma mamadeira cheia de mingau para o bebê que já começa a entender a indecência de seus primeiros desejos. “Na infância, somos atravessados pelo mundo, pelos gestos de nossos pais que contrariam instintos’’, afirma a psicanalista Thânis Kristine. Depois disso, não há jeito! Sufocamos versões-de-nós com o travesseiro do recalque, desovamos o cadáver no inconsciente, e esperamos as neuroses.
Mas não é de todo mal e talvez haja certo charme nisso de não ser o que se é. A pessoa mais charmosa que já conheci, conheci enquanto não era. Uma academia de boxe e esse homem gritava com os alunos. A voz grossa, eu queria ser como ele, masculino e maligno, mas ao fim da aula, descobri, era mentira: “Escondemos versões, mas matá-las é impossível”, explica Kristine. E ele agora era o fofinho rapaz que veio me cumprimentar, tão educado e risonho. Anos depois, perguntei o motivo da mudança, e ele respondeu que é pra ser levado a sério. “Sem pulso firme, ninguém obedece.”
Lembrei da história do lutador Jean Silva, que quebrou os pulsos durante uma luta, e continuou brigando. Engraçado, lembrei disso também ao ler As Cinco Lições da Psicanálise, no qual Freud diz que reprimir pulsões é como expulsar de uma aula alguém que cochichava – quebrando-lhe os pulsos? – e de repente o excluso começa a bater na porta pelo lado de fora, brigando para que o deixem voltar – com pulsos quebrados? – atrapalhando bem mais. Parece certo. Ainda que o bebê pare de chorar, sente vontade de chorar; ainda que o boxeador fale tão sério, sente vontade de sorrir.
“Imagina fingir o tempo todo?”, foi o que me disse Clarisse Borges, estudante e ex-bailarina. Ainda jovem, com cérebro de tamanho médio, começou a dançar, e interpretou um personagem agradável às exigências do Balé. “Rivalidade, dietas, disciplina. Eu fingia gostar disso pois não queria admitir que ‘meu sonho’ não tinha nada a ver comigo”. Em 2022, admitiu, e voltou ao Brasil. Há mesmo de haver um tempo em que admitimos, uma hora em que quebramos. Em que, com cérebros incapazes do inconsciente, pensamos, “eu tenho tanta fome que vou morrer”.