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Nós proibidos

 

Por Dado Nogueira e Gustavo Drullis

 

Pense na vida como uma estrada longa. Sinuosa e bifurcada como se tivesse sido projetada a partir de um punhado de barbantes jogado no chão por uma criança. Com muitos caminhos e muitas variáveis, cada quilômetro desse percurso traz suas particularidades. Mas tem uma coisa que a gente consegue perceber em todo metro desse emaranhado de vida: os nós, que te impedem de passar, de ver, de ouvir, de ser. Proibido. E de repente, com uma placa aqui, outra ali, com um grito de ‘não’, com um olhar repreensivo, ou com um dedo na cara, os caminhos e as escolhas já não parecem mais tão bonitos e diversos.

 

 

É a lei que te proíbe de fumar o que quer fumar e de ouvir a música que quer ouvir. É a moral que te proíbe de amar quem você ama, e de ser quem você é. É a política que não quer que você saiba como as coisas são. É a sociedade que não quer que você, mulher, se descubra.

 

 

O que é proibido? Por quê? Como? A quem interessa fazer que todos sigam o mesmo curso no barbante? Qual é a questão? É proibido ser diferente? É proibido ser? Vivemos cercados de tantas proibições que mal percebemos o quanto elas ditam nossas vidas.

 



E é das proibições mais agressivas, moralistas, curiosas e estigmatizadas que o claro! Proibido vai tratar, tentando ao máximo se desvencilhar das amarras do pudor, da moral, e é claro, do proibido.

Arte proibida não, pervertida!

 

Por Iolanda Paz

 

Prova de que a sociedade brasileira está evoluindo é o boicote à “Queermuseu”. Sob o disfarce de “diversidade sexual”, a exposição fazia apologia explícita à pedofilia, zoofilia e putaria. Falta de respeito e sacanagem que, na verdade, é antiga: de tempos em tempos ataca as belas artes.

 

 

Michelangelo, por exemplo, deve ter achado que estava na Grécia Antiga quando pintou o altar da Capela Sistina: 391 peladões! Os fiéis nunca ouviriam a palavra do santo padre com tantas indecências sobre suas cabeças. Amém que o incentivo a orgias acabou anos depois, com as partes cobertas por outro artista. Graças à Igreja Católica, a arte ganhou belos padrões morais e as baixarias do paganismo foram proibidas.

sistina

 

Só que o século XIX resolveu se rebelar e, com o “modernismo”, vieram as trevas. No mundo Pós-Revolução Francesa, Manet não retratou uma deusa Vênus nua: pintou logo uma vagabunda pelada no mundo real. Por pura piedade, “Almoço na Relva” foi para o “Salão dos Recusados”, e não irei nem comentar a vergonha que sinto de “A Origem do Mundo” (uma vagina exposta sem rodeios – nem depilações).

Origem com círculo

 

O imbecil do Duchamp piorou as coisas, como se o mundo já não estivesse perdido o suficiente. Achou que estava inventando moda, “expandindo os limites da arte”, mas teria passado menos vergonha se tivesse seguido um manual claro do que é arte. Pelo menos o lixo do urinol não foi aceito. Esses pseudo-vanguardistas ignorantes me dirão que a função da arte é gerar debate… Ela não tem que questionar nada, nem incomodar. Isso tudo só é ruim para a sanidade – afinal, tem que ser louco para gostar de refletir sobre o que está vendo.

Duchamp com círculo

 

Mas concordarei com os modernistas em um ponto: a arte mexe com a cabeça das pessoas, dá até medo. Por isso não podemos deixar aberrações serem representadas – nem vistas. Quando não são, aos poucos vão deixando de existir, como as bizarrices da “Queermuseu”. Para denunciar aquelas obras satânicas, os liberais do MBL fizeram uma campanha nas redes sociais. A população brasileira nem precisou olhá-las com calma: pouco pensou, pouco se contaminou. A arte é como a política. Sorte que temos gente de bem para nos guiar. Obrigada, tecnologia, pela facilidade!

 

 

Não Colaboraram:

  • Cauê Alves: professor e coordenador do curso “Arte: História, Crítica e Curadoria” da PUC-SP
  • Felipe Martinez: doutorando e mestre em História da Arte pela Unicamp; professor no MAM-SP

Queime (ou proíba) antes de ler

 

Por clarousp

 

De um segundo para outro, um livro é proibido. Mas o que fez o livro? Nada – ele só não é exatamente aquilo que alguns gostariam de ver na mão dos leitores. “É um mecanismo repressivo que, apesar de ineficaz, revela um esforço de ‘policiar’ o pensamento,” resume Luciana Lombardo, doutora em Antropologia pela UFRJ, com pesquisa sobre livros apreendidos pela polícia política do Rio de Janeiro.

 

O Segundo Sexo, de Simone de Beauvoir, é um exemplo – entrou para o Index Librorum Prohibitorum, editado pela Igreja Católica entre 1559 e 1966. Mas o Index não está sozinho na censura religiosa: sendo as religiões expressões de uma verdade, tudo o que contradiga seus dogmas pode ser proibido, explica Bruno Feitler, professor de História na UNIFESP. Elecomenta que as comunidades judaicas também controlavam livros, mas mais a nível de recomendação que de proibição. Outro título emblemático é Os Versos Satânicos, banido em países como Índia, Paquistão e África do Sul e cujo autor, Salman Rushdie, foi jurado de morte pelo Aiatolá Khomeini, do Irã islâmico.

 

Líderes de Estado, particularmente os soberanos, também podem impedir a circulação de conteúdos, se estes não os interessam politicamente. Por aqui, isso aparece na censura régia do Brasil colônia, segundo Feitler, e nos períodos ditatoriais, principalmente o Estado Novo de Getúlio Vargas (1937-1946) e a Ditadura Militar de 1964, em que vários volumes foram apreendidos e até queimados, em ambos “para combater sobretudo as ideias de esquerda e silenciar os dissidentes políticos”, conforme explica Lombardo.

 

Mas nem mesmo os períodos democráticos escapam da censura literária. Neles, pode entrar em cena a moral, evocada quando alguma temática é contrária aos costumes de um local ou pode influenciar negativamente um grupo. Lolita, de Vladimir Nabokov, por exemplo, foi banido na Inglaterra em 1955 e na França em 1956, entre outros países, por obscenidade e pedofilia.

 

Nem Branca de Neve escapou: em 2016, um exemplar foi retirado de uma biblioteca escolar do Catar pelo Conselho Supremo de Educação (órgão equivalente ao nosso Ministério da Educação), após um pai alegar que ele continha ilustrações ‘indecentes’. Enquanto isso, o cerceamento à livre circulação de ideias segue. Resta saber onde – e se – ele vai parar.

Sob a névoa do tabu

 

Por Natan Novelli

 

Fui à sauna. O cheiro do eucalipto ardendo só não supera o calor trocado dos corpos. Homens enfileirados uns em cima dos outros. Rostos ocultados pela névoa. Névoa que esconde também o pudor de cada um.

 

 

De que forma me defronto mais com a nudez? Estando nu, ou falando sobre? Em tempos em que as pessoas assumem personas na internet, imaginei poder lidar facilmente com a segunda. Mas me engano: minha nudez ficou presa a um espaço-tempo. Já minha descrição, viverá até essa página esmorecer.

 

 

Ainda assim, nada é pior do que a pressão imposta pela sociedade. O corpo, que na Antiguidade era exposto até em competições esportivas, tornou-se, por interdições religiosas, animalesco e vergonhoso. Em outras palavras, proibido. Isso foi o que me disse Julio Simões, professor doutor de Antropologia da FFLCH. Curioso. Obrigaram-me a vestir roupas em busca do civilizado, mas o encontrei talvez de forma mais sincera estando pelado.

 

 

Um senhor, com seus 60 anos, se aproxima: “Vem sempre aqui?”. Era minha primeira vez numa sauna. Foi reconhecer a fachada que meu coração disparou. Por que será? Nunca tive pudor em andar nu com a minha família. O que fazia desses homens diferentes?

 

 

“Aqui parece as saunas finlandesas originais, bem calmas”. Ele estava enrolado numa toalha branca, e o volume se fazia numa trouxa. Vários homens entravam e saíam da sala. Alguns nus, outros com a mesma trouxa. Uns ao relento, outros com mais reserva.

 

 

Censurava-me contra o animalesco? Ainda que isso fosse verdade, a naturalidade das conversas que ali aconteciam afastava qualquer impressão de libido alheio.

 

 

Calmo?, questionei. “Existem certas conversas que não poderia ter em ambiente de trabalho, mas aqui posso… com as mesmas pessoas”. ‘Civilizado’, diriam. “Aqui me dispo de corpo e alma”.

 

 

Censurava-me contra o vergonhoso? Sob a luz da ducha, percebi algumas estrias no senhor. Eu, com as minhas. Pois é, já é senso comum pensar que despidos, não somos feios, somos todos iguais. Mas vou além: seja na transa, na admiração ou nas marcas, a nudez aproxima.

Se toca

 

Por Beatriz Arruda

 

Em uma ida ao ginecologista, a professora Ana Paula, de 30 anos, foi aconselhada a conhecer melhor sua vagina através do toque e a vergonha que a tomou foi tão grande que nunca mais voltou. “Achava que seria tachada de louca se me tocasse e gostasse”. Ela não é a única que se priva da masturbação. Segundo a pesquisa Mosaico 2.0 do Programa de Estudos em Sexualidade (ProSex) do Hospital das Clínicas, de 2016, 40% das mulheres não se masturbam com frequência e, dessas, 19,5% nunca experimentaram a prática.

 

 

O medo de Ana Paula de gostar da tal da siririca era o mesmo da sociedade, igreja e medicina, instituições que tiveram papel importante na repressão da sexualidade feminina. Lígia Baruch, psicóloga e autora do livro “Uma revolução silenciosa: A sexualidade em mulheres maduras”, explica que o prazer da mulher preocupava por estar ligado à vazão dos desejos sexuais, que poderiam resultar em maior independência.

 

 

Conversas sobre sexo não ocorreram na casa de Ana, e na escola não ultrapassavam as questões anatômicas. Segundo Carolina Ambrogini, ginecologista e uma das fundadoras do Projeto Afrodite (centro de sexualidade feminina da UNIFESP), para além do desconhecimento, o desestímulo da mulher ao toque acontece desde cedo. Quando a menina é flagrada tocando seu órgão sexual, a frase “tira a mão daí” é uma certeza, enquanto o mesmo gesto reproduzido por garotos é acompanhado de “brincadeiras” sobre seu desempenho sexual futuro: “Esse vai dar trabalho”.

 

 

Ambrogini afirma também que “a masturbação é um grande exercício da sexualidade” e seu desestímulo pode resultar na inexistência de prazer e, até mesmo, desprazer nas experiências sexuais. “Fazia sexo com meu ex-marido porque era obrigada a fazer, para ter filhos mesmo. Era mecânico”, conta Ana Paula.

 

 

Na década de 60, a revolução sexual começou a mudar o cenário. Baruch ressalta, no entanto, que algo tão enraizado demora a ser desconstruído. O ponto de virada para Ana Paula foi quando entrou em um novo relacionamento e teve a curiosidade despertada pela literatura erótica. Porém, mesmo em 2018, a liberdade sexual não chegou para todas. “A mentalidade de que a mulher é desejada mais do que ser desejante ainda está presente. Elas precisam despertar para o fato de que são donas dos seus próprios corpos”. E ser dona do próprio corpo passa pelo aprendizado de ter prazer sozinha.

 

 

Por isso, Ana Paula, não tira a mão daí.

 

Para te proibir… nem o céu é o limite

 

Por clarousp

 

Por Ana Carolina Aires

“Olha o carro do ovo passando. Ovo direto da granja. Dez reais é a cartela com 30 ovos. Ovos branquinhos, ovos que a galinha chorou! Olha o carro…”

 

 

Quem nunca acordou ao som do carro do ovo? Existem centenas deles espalhados pelas ruas e esquinas do Brasil. O vereador do Recife, Romero Albuquerque, incomodado com um que passa logo cedo perto de sua casa em Boa Viagem, propôs recentemente um projeto de lei que visa proibir esses carros. Os ouvidos de muitos agradeceriam. Já existem tantas proibições consideradas “malucas” propostas nos municípios, que essa nem seria tanto assim.

 

 

Reginaldo Balão, advogado especialista em direito processual civil, entende que o processo legislativo deve ser levado a sério e não deve ser regido por interesses individuais. Em Santa Bárbara d’Oeste, cidade do interior de São Paulo, foi aprovada, em 2015, a lei ordinária nº 3.791 que passou a proibir a implantação de chips e dispositivos eletrônicos no corpo humano, por esses serem considerados a “marca da besta”. Proposta pelo vereador Carlos Fontes, do PSD, o texto da lei não tem nada a ver com teorias relacionadas a série Black Mirror, da Netflix, e é embasado, na verdade, em passagens bíblicas. A intenção endo é impedir que uma ordem satânica seja capaz de rastrear as pessoas.

 

 

Para Balão, uma proposta de lei não deve levar em conta teorias formuladas por uma “mente genial” em particular. Infelizmente, essa prerrogativa nem sempre é respeitada e gasta-se tempo e energia em votações de leis sem real utilidade pública. Apesar dos Estados e Municípios terem autonomia para propor suas próprias leis que atendam às particularidades de cada região, essas devem estar em concordância com os códigos de instância superior, como a Constituição Federal. E a justificativa para a proibição da implantação de chips em humanos desrespeita um pilar importante dela: o Estado laico.

 

 

Brasil afora, encontramos outros projetos de leis que ferem liberdades individuais e mostram-se absurdos, como tentativas de proibir judicialmente a ocorrência de enchentes. No Recife, projetos de leis importantes que buscam proibir mais de 24h corridas de plantão médico, por exemplo, seguem em trâmite na Câmara Municipal com passos de tartaruga. Enquanto isso, mais um carro do ovo passa divulgando seu produto para a clientela e, na mesma Câmara Municipal, um vereador gasta seu seus argumentos porque está cansado de ser acordado de manhã pelo anúncio de som que passa em sua rua.

 

 

Nem o céu é o limite

Por Pedro Graminha

Não, você não leu errado o parágrafo ao lado. É tanta lei que até a chuva forte foi proibida. Isso foi em Aparecida do Norte, em 2007, a 167 km de São Paulo.

 

 

Claro que tudo não passou de uma provocação do prefeito de Aparecida, José Luís Rodrigues, também conhecido como “Zé Louquinho”, após ter sido criticado pelas fortes enchentes que tomaram a cidade no ano anterior. Mesmo assim, o projeto de lei foi proposto e gerou muita polêmica.

 

 

No entanto, essa não foi a única vez que Zé Louquinho fez barulho com suas propostas. Entre suas façanhas, criou projetos proibindo o uso de minissaias e bermudas na época da quaresma – a cidade é um importante centro da fé cristã no país -, o que foi derrubado na Câmara. Além disso, conseguiu colocar dois cachorrões de guarda no cemitério da cidade para evitar furtos e vandalismos. Carismático, o prefeito guarda até hoje um séquito de apoiadores em Aparecida, com direto a grupo no Facebook intitulado “Amigos do Zé Louquinho”.

 

 

Mas a pequena cidade do interior de São Paulo não é o único canto do Brasil que foi palco de leis excêntricas. Em 1997, na cidade de Pouso Alegre, Minas Gerais, um projeto de lei estipulava multas de até R$100 para faixas e banners com erros de português e R$500 para outdoors que desrespeitaçem a norma culta. Já pensou? Outro caso famoso foi a ideia do prefeito Élcio Berti, de Bocaiúva do Sul, Paraná, também em 1997. Preocupado com as baixas taxas de natalidade do município – o que diminuiria o repasse de verbas do Governo Federal – o político simplesmente decidiu proibir a venda de camisinhas e anticoncepcionais. Revoltada, a população protestou e a lei caiu em 24h.

 

 

Mas não ache que são só nos municípios que essas leis peculiares surgem não. O Governo Federal também é um importante celeiro para a imaginação dos políticos. Inclusive, um dos casos mais famosos quando se pensa em absurdos legislativos é a Lei de Contravenções Penais que, em um de seus artigos, prevê penas de quinze dias a três meses de prisão para indivíduos “entregues à ociosidade”. Tal medida ficou conhecida como “lei da vadiagem”, sendo muito usada durante a ditadura, em especial para criminalizar negros e pobres caso não pudessem comprovar trabalho ou estivessem em lugares “indevidos” a sua classe social.

 

 

Por mais “inusitadas” que todas essas leis sejam, há limites para que uma lei seja aprovada. O que garante serem criadas ou não é o bom senso mesmo. A partir do momento que são propostas, devem ser analisadas para saber se não violam nenhum princípio da Constituição e se não interferem em nenhum outro projeto em tramitação. Depois são votadas na câmara e aprovadas pelo poder executivo. É um processo que pode levar poucos meses ou vários anos, ainda mais com a quantidade de lei que é votada todo dia.

Acesso negado

 

Por Ingrid Luisa

 

Parece que vivemos em um eterno “Erro 403”. Quando algo limita o nosso acesso no ciberespaço e somos impedidos de acessar uma URL — por sei lá qual motivo — já gera uma sensação bem frustrante, imagine na vida real. E a resposta é agressiva, “Forbidden. You don’t have permission to access”. Quem me proíbe? Por que ficam ditando regras para o meu acesso? E no mundo tangível essas proibições são bem piores. Se prestarmos atenção no dia a dia, os servidores que nos negam passagem estão por todo lugar, e eles ditam exatamente para onde querem que cada um de nós vá.

 

 

Mas não é como se eu quisesse passar as férias na Coreia do Norte. Não consigo estacionar o carro! Por dois retornos seguidos fui proibida. Quando finalmente consegui, o cara do carro de trás fez o retorno errado e quase bateu em mim. Essas proibições todas não eram para “melhorar o fluxo”? Mas não acabou aí. Ao chegar no meu prédio, fui barrada na porta de trás, “moradores só pela frente”. A catraca me impediu de entrar com minha mala, e eu ainda não podia subir com ela no elevador social, só no de serviço. Finalmente em casa, fui impedida de tirar o lixo porque o caminhão já tinha passado. Cansada, o vizinho não parava de ouvir uma música muito alta que estava estourando meus miolos! Ele sabe que a essa hora é proibido, não?

 

 

Um dia. Basta prestar atenção em um dia. Placas de trânsito, “regras” de condomínio, lugares reservados, acessos restritos a várias portas. As proibições nos podam e nos salvam. Mas é bem estranho parar para pensar em todas elas. Pare, ande, vire, siga. Role, deite, finja de morto. Somos nós mesmos que decidimos para onde queremos ir?

 

 

“Está trancado, não pode entrar”. “Sem senha não passa”. “Pagou a taxa?”. “Faz parte do grupo?”. “É fechado para convidados”. “Desculpe, sem exceções. Ordens são ordens”. Fico imaginando a situação hipotética em que pudéssemos ter acesso a todos os lugares. Que a falta de transporte público em certas áreas não escancarasse que lá não é um lugar para todos. Que não me impedissem de entrar por estar com a “roupa errada”. Que pudéssemos ir para onde quisermos e ser quem quisermos.

 

 

Não é proibido proibir. Aliás, tenho que parar por aqui porque o diagramador me proibiu de ultrapassar o número de caracteres.

Uma estrada proibida para chamar de sexualidade

 

Por Liz Dórea

 

Da soleira do primeiro beijo ao abismo do primeiro sexo, ninguém percorre a mesma estrada. Mas há uma encruzilhada que intercepta todas as rotas: o destino final. Mais cedo ou mais tarde, cada um acaba descobrindo como conduzir a própria travessia à autoconsciência. Eu sabia qual era a minha desde os sete. Mas me neguei a acreditar nela. Errada, absurda, imoral, proibida. Diante de minha sina, paralisei. De medo, fugi ao mapa. E, por anos a fio, fui sendo qualquer coisa que não eu.

 

 

Há quem se dê ligeiro com as máscaras e consiga gastar a vida inteira sem se importar com sua estranha aderência na carne. Mas hora vem em que elas inevitavelmente arrebentam. Até porque é impossível mentir para si mesmo. E só eu sei o quanto tentei. O quanto pelejei para me inventar noutra. Noutra que coubesse. Noutra que não perigasse, para existir, perder-se: dos amigos, da família, da vontade de viver. Mas o que suportei por teimosia, meu corpo negou. Travou, comprimiu, sangrou. Como dissesse, intransigente: “a mim não me engano e, da verdade, não abro. Nem que para isso eu lhe arrebente a bexiga e o peito. Lhe deixo as pernas para dar meia-volta.”

 

 

E dei.

 

 

Daria ainda se não quisesse. Surreal se não desse. Será justo me julgar por ter tentado? Fiz o que fiz para pertencer. Mas, não, alguma coisa sempre me faltaria. Alguma coisa sempre me doeria. Porque para caber, só se eu me arrancasse ainda mais pedaços. De fora e de dentro. Mas depois de tanto sangue já derramado, a ânsia de sobreviver dispara. Era então hora de resgatar a estrada proibida nos dutos secos de minha vagina. Como a própria sexualidade, pronunciada na resistência de meu corpo, o instinto pela vida é um dado biológico e age segundo sua própria autodeterminação. Por isso, não poderia jamais impedi-lo. Não importa o que fizesse. Na iminência de ser violentado, o instinto, em nome de meu direito primário de existir, proclama seu ultimato: autoconsciência ou morte.

 

 

Essa crônica foi produzida a partir de relatos de Vanessa R. e Melina M., além da colaboração do psicólogo e especialista em educação sexual, Paulo Rennes.

Proibido para quem?

 

Por Tais Ilheu

 

O uso de entorpecentes no Brasil é regido pela chamada Lei de Drogas, de 2016, que regula tudo o que envolve essas substâncias. A lei prevê punições tanto para usuários quanto para traficantes. As penas para o tráfico variam de cinco a quinze anos de prisão, e os que são enquadrados como usuários assinam um termo e prestam serviços à comunidade. Segundo Ricardo Nemes, advogado da Rede Jurídica pela Reforma da Política de Drogas, do Rio de Janeiro, o Estado gasta cerca de R$ 2 mil cada vez que penaliza um usuário.

 

 

Para além do gasto que representa aos cofres públicos, há uma outra incongruência muito maior envolvendo a Lei: ela não determina com precisão o que difere o usuário e o traficante. A decisão fica a cargo de interpretação judicial, que considera aspectos como a quantidade da substância apreendida, o local, se o suspeito tinha dinheiro em espécie e outras circunstâncias sociais e pessoais.

 

 

Maria Gorete de Jesus, uma das responsáveis pela pesquisa Prisão provisória e lei de drogas, realizada em 2011 no Núcleo de Violência da USP, destaca que um elemento importante é a narrativa policial, que muitas vezes constrói a imagem do traficante perante o juíz. Os depoimentos dos policiais dificilmente são questionados, já que supostamente não teriam razões para mentir. No entanto, o Estado avalia a produtividade da polícia a partir do número de prisões e apreensões realizadas.

 

 

Segundo o estudo, além da maioria apreendida ter sido classificada como parda ou negra (59%), e de baixo poder aquisitivo — uma vez que recorreram à defensoria pública —, a maior parte das ocorrências se dá em áreas da periferia. As apreensões quase sempre acontecem em patrulha e não é possível mensurar se todas as regiões da cidade contam com o mesmo policiamento e fiscalização. Um dado disponibilizado pela Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo (representado no gráfico ao lado) revela que enquanto nas regiões mais pobres da cidade a maioria das apreensões são enquadradas como tráfico, nas regiões nobres acontece justamente o oposto.

 

 

Para Maria Gorete, a concepção do tráfico enquanto atividade localizada e característica das periferias impede que ele seja tratado como a sofisticada atividade econômica que de fato é, desconsiderando uma complexa rede de distribuição e circulação que vai além das “biqueiras”.  Enquanto as atividades policiais se atém apenas a elas, a superlotação dos presídios continua a ser uma realidade. “A gente se sente enxugando gelo”, ouviu a pesquisadora repetidas vezes de policiais civis e militares. “Ou seja, até quem está atuando nessa engrenagem repressiva compreende que seu papel não tem sido efetivo”.

Eu quero o Pancadão agora!

 

Por Camilla Freitas

 
Sabadão, zona sul, Heliópolis. Helipa. Pancadão do Bonde 3. Pancadão. Tem maluco subindo de tudo quanto é lado. Mano da leste, mina da sul. Um fervo. De gente, de quente. Quase duas mil. E mais de oito em lucro. Dinheiro pesado. Pode? “O bagulho é louco.” É Ranger, Veloster, Evoque. Só nave. XJ e Meiota, tudo passando no grau. “Tem motos e carros furtados desfilando.” E a molecada na rua. Só menor, de menor. Seu lazer. “Ficava ansioso a semana inteira pra ir pro funk.”
Pancadão. É na rua. Estreita, na espreita, apertada, nos becos. Onde o coro come. Balinha, marola, doce, lança. “Venda de droga é o que mais tem.” Pancadão. Depois da boca, só beijo. Sexo quente. No quente. Som. “A música é mais forte que religião.” Som. “As pessoas não conseguem dormir.” Abre o porta-malas, luz, treme, dança. Bunda desce, sobe. Sarra. “É um misto de emoções.” Com uma bala na boca e outra no cano. Na mão o copo. Red Label, Absolut. Gelinho de coco. Encarou? Atirou. “Você vai, fica meio cabreiro, não fica tranquilo.” Uns mano bem louco pagando de malandrão. “Tem história de assédio.”
Pancadão. Se chamar gambé, nem tem resenha. “O cara reclamou do baile pra polícia. Botaram fogo no carro dele.” Pancadão. Se a PM chega, acaba. Vaza. Vem quebrando todo mundo na borrachada. Não tem homem nem mulher. “Como se fosse um bando de marginal reunido.” Pode? Sob gás sobe o estalo. “Xingamento, corre corre. Quem fica pra trás é pisoteado. É um inferno.” Pancadão. “A polícia não vai tratar o favelado bem, entendeu?” Pancadão. A lei quer proibir. “Bem radical.” Pancadão. Tem galera que quer proibir. “Gosto muito, mas sei la, concordaria se proibissem.” Pancadão. O sexo. Pode? As crianças. Pode? As drogas. Pode? Os bailes… “Tem que acabar com essa merda de baile funk.” Os bailes. “Tem que ser banido.” Os bailes. “Prejudica muito a população.” Os bailes. “Não trazem benefício nenhum”. A música. Sério, a música?

 

O claro! é produzido pelos alunos do 3º ano de graduação em Jornalismo, como parte da disciplina Laboratório de Jornalismo - Suplemento.

Tiragem impressa: 5.000 exemplares

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