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resquícios de você

 

Por Mavi Faria

 
Arte: Adrielly Kilryann e Guilherme Castro

“Eu não consigo doar. E se eu me arrepender?”. Com a voz amorosa e emotiva, Aparecida Alvarenga, 46, conta porque mantém o quarto e os itens da filha Sabrina, vítima de um acidente de carro aos 12 anos, há quase 20 anos. O medo de ceder e ter mais uma dor a motiva a guardar os móveis e objetos, mesmo após mudar de casa. 

A decisão de manter o quarto de um ente querido intacto faz parte do processo de luto e depende do contexto da morte e do vínculo que o enlutado tinha com quem faleceu. A psicóloga especialista em luto Roberta Paz Barreto diz que “o apego ao quarto é um símbolo do que a pessoa falecida representava para o enlutado”.

Entender a função do quarto para o enlutado é importante para perceber se a manutenção faz parte do processo ou se está dificultando a continuação da vida. Guardar os resquícios de Sabrina amenizam a saudade em Aparecida, sensação que independe do contato ou da presença dos objetos.

Sentimento similar é vivido por Leniel Borel, 38, que entra diariamente no quarto do filho Henry, assassinado aos quatro anos de idade em 2021. O cômodo assumiu a função de um altar simbólico, onde ele entra todo dia para honrar a memória do filho. “Pela forma como perdi meu filho, é muito difícil doar esses objetos, têm uma memória afetiva muito forte e me ajudam nesse clamor por justiça”. 

De forma técnica, Roberta explica que o quarto pode ser um objeto transicional no processo de luto, ajudando o enlutado a ressignificar a vida. Ou seja, a crença de que é preciso tirar de casa todos os itens de quem faleceu não funciona para todos. No luto, tudo é incerto e varia em cada individualidade, em especial o tempo, porque é um processo dual. A vida segue em frente, mas o sentimento volta em certos momentos.

Caroline Navarrina, 30, vive esse processo desde que perdeu a mãe, Sônia, em 2021, aos 53 anos. Diferente de Leniel, para quem o quarto ainda representa um processo latente, ela acredita que o cômodo já cumpriu sua missão. Apesar disso, as funções se assemelham: entre as paredes, ambos encontraram apoio emocional. Após três meses intacto, o tempo mostrou que era hora de mudança. “Eu não queria virar o ano tendo que olhar para aquilo, me sentindo presa naquela dor”.  

Independente de qualquer fator, um vínculo não é medido pelo apego a algo físico, até porque doar os objetos não é sinônimo de que a pessoa se esqueceu de quem se foi. Manter ou não o quarto ou uma recordação é a materialização de uma saudade que é imutável. Para Caroline, é a tentativa de tornar menos latente uma presença que sempre será ausente.

Bullying: a dor do diferente na infância

 

Por Ana Beatriz Garcia e Suzana Petropouleas

 
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Arte por Bruna Irala e Mayara Prado

 

 

A violência contra crianças consideradas “estranhas” pode deixar marcas profundas. Foi o caso de João*, que sofreu bullying na infância por sua orientação sexual. O trauma dificultou sua auto-aceitação e refletiu-se em uma necessidade de construir personagens, em busca da aprovação alheia. A experiência também lhe rendeu um Transtorno Obsessivo-Compulsivo grave, com o qual lidou por anos.

 

“O bullying dita muito dos valores e da personalidade futura da vítima”, explica Gabriela Lask, professora do Infantil. A agressão pode assumir muitas formas: é a criança zombada nos corredores por suas roupas ou ridicularizada nas redes sociais, por exemplo. Também pode ser silenciosa, quando a vítima é excluída pelos colegas, e praticada até por professores, como os que reproduzem apelidos sobre traços étnicos de alunos. “A criança está criando seu chão, sua autoestima. Cresce como alguém que não pertence, o que se reflete em outras esferas”. 

 

Essa luta para se adaptar ao convívio com o outro foi exposta por Freud em “O Mal Estar da Civilização”, lembra a psicanalista Beth Coimbra. Ela recebe pequeninos no divã para tratar os efeitos do estranhamento do ambiente escolar, tão coletivo e heterogêneo. Crianças consideradas “diferentes” pela cor ou sexualidade, por exemplo, são alvos recorrentes de violência porque suas particularidades são vistas como falhas por quem promove o bullying – que, segundo Coimbra, aumentou recentemente. 

 

“Há um clima de mais intolerância. E o bullying envolve ameaças, opressão e autoritarismo, mas ele comunica algo sobre quem o promove: o pavor do que há de diferente ou imperfeito dentro de si mesmo”, diz.

 

E quando a família reforça a intolerância? Ana Gabriela Faversani, professora do Fundamental I, atribui à escola o papel de assumir posição condizente com a esfera pública: embora haja famílias com opiniões diversas, a instituição deve tratar qualquer agressão como inaceitável, de forma clara, persistente e consistente.

 

A abordagem pode assumir a forma de sensibilização sobre o preconceito e reorganização das crenças. Para os educadores, a escola também deve garantir que as crianças convivam com a diversidade e incentivar a compreensão de que todos somos diferentes.

 

Esses cuidados são especialmente importantes no atual contexto, diz a psicopedagoga Telma Pantano, em que crianças retornam ao ensino presencial fragilizadas pelo isolamento e ansiosas para serem aceitas. O stress da pandemia, porém, tende a tornar professores e alunos menos tolerantes. 

 

Por isso, o desenvolvimento das competências socioemocionais é essencial, ressalta o psiquiatra Celso Lopes. Em uma turma que atendeu recentemente, por exemplo, os alunos tinham facilidade de criar conexões e “panelinhas”, mas praticavam bullying contra os outros grupos. Descobriu-se que 40% tinham a empatia pouco desenvolvida, que foi praticada através de exercícios como a escuta ativa, em que ouve-se o que o outro tem a dizer com atenção, sem julgamentos ou pensar na resposta pretendida. 

 

Colaboraram:

Ana Gabriela Faversani, professora assistente do Fundamental I no Colégio Equipe

Beth Coimbra, psiquiatra, psicanalista de criança e adolescentes e membro da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Celso Lopes, médico psiquiatra pela UNIFESP e co-criador do programa Semente, que desenvolve o ensino de habilidades socioemocionais para prevenção do bullying nas escolas

Gabriela Lask, professora do fundamental I no Colégio Equipe

Jaqueline Landim, professora do ensino infantil na EMEI Armando de Arruda Pereira

João*, vítima de bullying na adolescência 

*nome fictício

Patricia Della Posta, coordenadora na EMEF João Carlos da Silva Borges

Tania Pantano, psicopedagoga do Serviço de Psiquiatria da Infância e Adolescência do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP

Victoria Lopes, professora do fundamental I da Rede Decisão – Unidade Mooca

O claro! é produzido pelos alunos do 3º ano de graduação em Jornalismo, como parte da disciplina Laboratório de Jornalismo - Suplemento.

Tiragem impressa: 5.000 exemplares

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