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Os nômades das metrópoles

 

Por Fernando Magarian e Luís Viviani

 

 
página 9
 

Os artistas de rua têm muitas histórias. Não seria presunção considerar que cada um traz consigo um universo de experiências, recheado de angústias, alegrias e liberda­des. Lucas é apenas um desses contadores de histórias. Trata-se de um moreno, alto e que usa dreads. Lucas conta que estudou em Minas Gerais, trabalhou por 6 anos numa empresa de caldeiraria, até que se “libertou disso” e foi viver como artesão de rua.

 

“Quando perdi meu emprego, fui pra rua”, conta, sorrindo um misto de astúcia e mo­déstia. Lucas tem 51 anos e há quase 25 anos trabalha com artesanato. Produz sua própria arte. Diz que são nômades. “Volta­mos ontem do Rio. Vida boa lá, ninguém tra­balha”, diz, gargalhando.

 

Lucas relata que a vida de artista de rua pode ser muito boa. “A gente vai pro meio do mato de vez em quando, ter um contato com a natureza”. Para dormir, procura os lugares mais baratos, mas caso não consi­ga encontrar, dorme na barraca. “Gosto de filé, mas como ovo de boa”.

 

Quando questionado sobre por que es­colheu o artesanato, Lucas responde que “quando você é criança, fica impressiona­do, quer fazer mil coisas”. “E meu pai era jardineiro, sempre andava com ferramen­tas. Aí comecei a fazer artesanato”.

 

Porém, a vida de um artista de rua pode en­durecer, principalmente no que diz respei­to como os outros os vêem. “A nossa tribo é a que mais sofre preconceito. Mas isso é pobreza espiritual, né”. Lucas conta que po­demos aprender muito com moradores de rua. “Às vezes vemos alguém todo sujo, mas essa pessoa pode ter um problema mental, ou teve uma grande decepção na vida. Mas se trocar uma ideia, aprende muito. É mais sábio que a gente”, afirma.

 

Lucas demonstra que não é alienado, nem mesmo com relação à nossa legislação. “A polícia era um problema grande, cara. Mas agora está de boa, pois aprenderam a respei­tar a gente. Há uma lei federal que protege a gente, desde 2011”. Trata-se do Decreto nº 14.589, de 27 de setembro de 2011, que re­conhece os direitos constitucionais de livre­-expressão artística em espaços públicos.

 

O artesão conta que também foi parte de um movimento grande. “Um líder pra gen­te, o Rafael [Lage, fotógrafo e artesão que estuda a reconfiguração do movimento hi­ppie no Brasil], filmou certa vez a polícia pegando as nossas coisas.

“Aí o padre da Igreja São José, catedral de BH, viu e arrumou duas freiras advogadas que defenderam a gente. Com o filme, cor­remos atrás de vereadores, agora tá libe­rado no RJ, MG, ES… Mas antes tomavam todos os nossos bagulhos, perdi os docu­mentos umas 16 vezes.”

 

“Mas é a vida, cara, temos que nos defender. E vamos continuar ocupando o espaço pu­blico do mesmo jeito, hoje e sempre”.

Arcos e flechas

 

Por Rafael Bahia

 

Arcos e flechas (4) (Crédito_ Coletivo Vie La En Close)

Rafael Hayashi prende os cabelos longos, compridos e negros em um coque por trás da cabeça. Com as têmporas raspadas e os olhos puxados como seu sobrenome sugere, ele parece mesmo um samurai. Ao menos é assim que brinca Enivo, ele também com os longuíssimos dreadlocks atados à nuca. Mas, por mais marcantes que sejam, não foram essas as feições que estiveram sob os holofotes midiáticos poucos meses atrás.

Os dois artistas estão por trás de uma das obras que estampam os vãos dos Arcos do Jânio, ali na avenida 23 de Maio. As famigeradas feições são aquelas de um grafite ilustrando o que era para ser um homem negro, mas acabou interpretado como um retrato do ex-líder venezuelano Hugo Chávez. Os grandes veículos de imprensa logo se apressaram a contatar Hayashi para a a fatídica pergunta: era ou não era?

“Foi sem querer querendo”, ri Enivo. “A gente juntou cinco artistas para fazer uma coisa legal, que não tivesse marca-d’água de nenhum de nós. Aí pegamos uma de várias imagens do Rafa e fomos lá numa madrugada.” Mas, no plano artístico, ser ou não ser é questão subjetiva. E o grafite é arte.

A afirmação parece descabida em tempos onde essa vertente da arte urbana aparece na novela das oito e em propagandas da Coca-Cola, mas pintar muros da cidade em público gera um retorno imediato da audiência. “A cada cinco minutos alguém passa e fala alguma coisa, muitos elogios, mas também muitas críticas”, diz Enivo, que nem sempre pede autorização para grafitar e, por isso, já teve seus incidentes com a polícia.

Rafael prefere fazer da periferia sua tela, e pede licença para pintar. Mas reconhece: “A essência do grafite é ser ilegal, é a contravenção mesmo”. A estética é apenas um lado de uma arte com potenciais múltiplos: o protesto social, a ocupação do espaço urbano. Isso, é claro, enfrenta resistência do poder público, com seus policiais e inexoráveis pincéis, como na história em que a prefeitura removeu, por engano, desenhos enormes na própria 23 de Maio. Cada grafite apagado, porém, é o surgimento de uma nova tela para ser preenchida.

Um episódio, que diz muito sobre a desaprovação do público, foi este protagonizado por Enivo e Rafael, quando sua obra amanheceu rabiscada com o inconfundível desenho de um pênis.

“A partir do momento em que termino a arte, ela não é minha: é da rua”, fala Enivo. “Mas aqueles rabiscos foram uma manifestação ridícula de um bando de fascistinha. Aquilo não é pixação; pixação é outra coisa. O prefeito Haddad me ligou para conversar. Disse: ‘Se foi mesmo a intenção, assumam. Vocês têm meu apoio.'” Mas o desenho do homem, com todas as interpretações e opiniões que fomentou, já virava personagem principal de um debate ao qual não pertencia. “O que ficou claro é que estávamos sendo usados em um jogo político bem mais amplo que aquele grafite”, Rafael acrescenta. “Fomos os bodes expiatórios.”

Os artistas sabiam que aquele seria um ponto de muita visibilidade. “Mas o local era fechado com grades, era sujo, abandonado, tinha gente que se abrigava lá.” Quando os desenhos surgiram, de repente, o valor histórico do monumento reapareceu e os Arcos se tornaram intocáveis. Se a vida imita a arte, a obra de Enivo e Rafael trouxe consigo uma profusão de concepções, ideias, de reflexões, de protestos, ideais políticos… O grafite, no entanto, ainda se mostra para quem vem da Zona Leste e pega a alça de acesso à 23. Agora, porém, com os olhos vendados e a boca calada.

 

O claro! é produzido pelos alunos do 3º ano de graduação em Jornalismo, como parte da disciplina Laboratório de Jornalismo - Suplemento.

Tiragem impressa: 5.000 exemplares

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