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À la carte

 

Por Gabriel Cillo

 

Arte: Gabriele Mello

A alta gastronomia brasileira passa pelo movimento de redescobrir ingredientes do passado. Nesse sentido, o resgate da criação do gado Curraleiro Pé-Duro é motivo de inovação com raridade e brasilidade.

Com origem no período colonial, essa espécie tipicamente brasileira é resultado de cruzamentos e de processos de seleção natural, em solo nacional, de gados advindos de Portugal e Espanha. Entretanto, com o tempo, o Curraleiro foi se tornando cada vez mais raro e perdeu espaço na pecuária moderna, que prioriza animais como commodity para exportação. Por isso, tem-se optado por gados que demoram dois ou três anos para atingir o tamanho e peso para abate — o Pé-Duro tem média de quatro ou cinco. 

Hoje, encontram-se ameaçados de extinção e o último censo, realizado em 2012 pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), apontou para 3.692 animais. Atualmente, estima-se de 5 mil a 6 mil, que ainda estão em risco, segundo a Associação Brasileira de Criadores de Bovinos Curraleiros Pé-Duro. O Curraleiro ganhou destaque na alta gastronomia como alternativa ao aclamado Wagyu, de origem japonesa, por também conter alto marmoreio, que é a quantidade de gordura intramuscular presente no corte da carne e que agrega sabor, textura e maciez.

O fator genético explica o grau de marmoreio elevado de ambos. Contudo, o gado brasileiro ganha valor na diferença em sua criação, suportando mais aridez e alta temperatura, com menor exigência de manejo e insumo agropecuário, barateando a criação. É assim na Fazenda Mutum, em Pirenópolis, Goiás, com trabalho familiar de Pé-Duros há dez anos, focado na recuperação e melhoramento genético.

O Curraleiro conquistou a alta gastronomia, também, pelo menor aspecto hormonal, alimentando-se de folhas, cascas de árvores e cactos, com redução do uso de medicamentos e rações, sendo redescoberto por chefs de cozinha que buscam inovação na brasilidade e no olhar para o passado.

Ele tem menos oferta do que demanda, sendo agora uma carne cobiçada e servida em pequenas quantidades em menus à la carte. Ganha brilho ao ser maturado em pasta de anchova acompanhado de algas, ou ao ser sublimado com pimentão piquillo e melancia. Em menu degustação de oito a dez tempos o preço pode variar, de R$ 900 a R$ 1500.

Colaboradores: Chef Ivan Ralston; Katherina Cordás, pesquisadora gastronômica; Luiza Fecarotta, crítica gastronômica.

Construção de sabores

 

Por Nara Siqueira

 

 

Água que escorre por finos furos de um grande regador e molha as flores do lado de fora. A bendita é bem recebida, afinal, o domingo ensolarado caprichara em seus mais de 30º. As pétalas se abrindo para anunciar o desabrochar de um novo expediente. Ansiosas, assim como eu, por saber, afinal, quem serão os próximos a pedir licença e entrar na dança.

 

A gastronomia é uma dança. O sabor, a melodia que envolve todos os elementos e cativa até os mais desprevenidos ou emburrados. Mas ele não é nada sozinho. Por dentro, o restaurante é rodeado por paredes vermelhas e verdes – seria a Itália? Há quem diz que pode ser paixão e esperança. Não falam sem razão – não são esses os sentimentos despertados ao sentar-se diante de uma refeição?

 

As mesas de madeira e o pequeno tapume de tijolos indicam que estamos em casa. Porque casa é onde as batidas do coração são tranquilas e afetuosas. É também onde o estômago expira aconchego e satisfação. Casa, lugar comum, mas único.

 

Na estrutura em frente ao balcão, estão penduradas cebolas e dentes de alhos. Os mesmos que agora são cortados em perfeitos quadrados e que, em breve, darão sabor ao risoto. Mas vamos com calma. Nem música, nem gastronomia são simples e objetivas assim.

 

Sérgio está à frente da cozinha hoje. Não considera o ácido, o cítrico, o doce ou o amargo os elementos principais de um prato. Para ele, o mais importante é, ao dar a primeira mordida, voltar à infância. Quando passava tardes na casa da avó com os primos. Comida de vó, a melhor do mundo.

 

O chef conta-me que a arte de cozinhar é sempre a arte de persistir – porque haja tentativa! Muitos erros, alguns deslizes, outras precipitações. Até que, voilá, chegamos ao ponto perfeito. Acertamos. Emocionamos.

 

Voltemos à cebola. Picada, agora vai à panela com manteiga. Duas colheres é o suficiente. Refoga até ficar branquinha. Aqui já sinto gosto de vó – o cheiro me leva a isso. Os olhos marejam, não sei se pelo bulbo ou pela saudade.

 

Acrescenta-se o arroz arbóreo e meia garrafa de vinho branco. Depois, um pouco de caldo de legumes. Caseiro, por favor. Comida boa é comida feita em casa – ou no restaurante-casa. Meio litro está de bom tamanho.

 

Assim que os líquidos secam, é hora de desligar o fogo. Esse é o pré preparo. Não disse que nada é tão simples assim? Cozinha é paciência, Sérgio já havia me dito. Despeja-se a mistura em uma assadeira para esfriar.

 

Carol, dona da casa, chega para arrematar os últimos detalhes. São 11h45, daqui quinze minutos as portas se abrem. “Colocar todo o amor no seu trabalho é o jeito mais bonito de projetar o futuro”, já diz a tela de fundo do computador. É música – todos os elementos seguem o mesmo arranjo. Nesse caso, amor.

 

Puxa a mesa de madeira um pouco para a direita. Ajeita os guardanapos sobre ela. Pronto!

 

Das caixas de som, saem acordes franceses. Apesar de restaurante italiano, o ambiente é inclusivo. Todos são bem vindos. Prato multicultural é difícil de preparar. Mas quando consegue… Ah! É a prova de que amor é ingrediente universal.

 

O relógio bate as doze badaladas. Dois dançarinos acomodam-se em uma das mesas. Pessoas de idade – e tinha como ser diferente? Vó e vô em um espetáculo incrivelmente saboroso.

 

Na cozinha, Sérgio retorna o conteúdo da assadeira para a panela. Mais um pouco de caldo de legumes, parmesão, meio pedaço de mussarela de búfala, tomatinho, azei… Salivo. Esbaldo. Não há contenção.

 

Colocado em prato de ágata, o risoto toma seu rumo: o coração dos idosos. Aprendi que comida não é para nenhum sistema digestivo – disso, os nutrientes e vitaminas se encarregam.

 

Assim que posto à mesa, os olhos do casal arregalam. Sérgio me explicou que nada ali é chique. O negócio é ser simples. A ágata foi escolhida porque é rústica. Mas não pense você que isso torna a coisa fácil. Não, não. Segundo o chef, o simples é ainda mais difícil que o sofisticado.

 

As flores que enfeitam a mesa também ficam mais robustas. Sentiram o cheiro, é claro. Outrora foram regadas com água; dessa vez, o alimento é amor. Não existe melhor.

 

Todos estão, finalmente, entregando-se à dança. É hora de fechar os olhos. Delicie-se.

 

O claro! é produzido pelos alunos do 3º ano de graduação em Jornalismo, como parte da disciplina Laboratório de Jornalismo - Suplemento.

Tiragem impressa: 5.000 exemplares

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