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O espelho e os olhares

 

Por Isabella Galante

 

Os primeiros casos de estranhamento em relação ao meu corpo foram logo que comecei minha vida social, ao entrar na pré-escola. Eu não sabia o que estava acontecendo. A gente nunca sabe. Se sente fora do lugar, mas não sabe dizer onde é seu lugar, já que esse nem sequer é apresentado.

 

As pessoas riem, contrariam, estranham, enquanto você está simplesmente existindo, sendo. Fui chamada de louca por conta do que sentia. De qualquer maneira, eu precisava me descobrir, me desvencilhar do que “deveria ser” e dos preconceitos internalizados. Era preciso que eu me desse outra opção.

 

Vez ou outra, encontrava uma maneira “segura” de expressar um pouquinho daquilo que era inerente, seja por uma peça de vestuário, uma atitude ou até mesmo um sentimento que, diriam eles, não deveria estar ali. Porém, isso, na realidade, servia mais como um jeito de me disfarçar, varria a dor para debaixo do tapete.

 

Todo esse processo, que parece tão natural e leve para quem observa, é uma agressividade psicológica tremenda. Eu me sentia sozinha. Triste. A angústia aumentava. E eu sempre achei que merecia menos. Menos amor.

 

A partir do fim da adolescência, fui aos poucos me informando o suficiente para saber dar um nome, uma definição àquilo que eu era. Eu ainda me negava fortemente e, nos momentos que me permitia me assumir como algo fora do padrão, logo cortava a ideia. “Sofreria muito preconceito, nunca seria amada, seria lida como aberração”. “O mundo não vai aceitar, minha família não vai aceitar, eu precisaria ter uma estabilidade social, financeira e psicológica muito grande para ir à frente. Quem sabe daqui a algumas décadas?”. Fui construindo minha confiança e segurança. A autonegação perdia espaço.

 

À medida que crescia dentro de mim a compreensão de que a vida que me fizeram viver era pesada, de que havia uma necessidade de encarnar uma personagem 24h por dia, junto vinha o desejo de me livrar de tudo que impedia que o outro me lesse como eu ia me entendendo. Eu estava sufocando a minha real identidade. Então, me lembrei da criança que pedia todas as noites: “Deus, me faz ser menina, por favor. Sei que deve ter mais menino que pede isso, não deve? Mas eu queria tanto, juro que vou ser uma menina boa”.

 

Um dia meu nome de registro deixou de me contemplar. E aí veio a primeira vez que depilei meu corpo e o impacto que senti ao vê-lo no espelho, difícil descrever, mas me vi feminina. Depois, a descoberta das pílulas anticoncepcionais, do bloqueador de testosterona, os seios começando a se desenhar, doídos, marcando a blusa, e eu tendo que escondê-los com faixa enquanto me faltava a coragem, a força para me assumir. Nesse período de mudanças, cada uma era comemorada, só que o desejo de me ver outra por inteiro fazia com que nada fosse o bastante.

 

Decidi colocar um vestido e pintar as unhas. Ao mesmo tempo, era difícil me olhar no espelho nua. O medo de o que pensariam ao me ver sem roupas, a insegurança por sentir que meu corpo não estava nem lá nem cá, a transição tardia, os efeitos por demais irreversíveis da testosterona.

 

Demorou meses para eu parar com a peruca, exibir meus cabelos cacheados, então curtos, e me sentir bem dessa forma. Mais de um ano para eu ficar sem maquiagem alguma e me achar bonita, tão bonita quanto nos meus primeiros dias de superprodução.

 

Antes de resolver fazer a cirurgia de mama, passei dois anos decidindo se era um desejo meu ou uma imposição social. Enfim, meu desejo venceu. Por muito tempo pensei: “Sou uma menina, meu coração, cabeça, mas… não quero mutilar meu corpo, tenho medo”. É muito forte eu me olhar no espelho e ver: cintura, seios e pênis; e ainda assim gostar do meu corpo, ainda assim ver uma mulher.

 

Ao final, me assumir foi a maior liberdade de que tenho lembrança. Eu estava tendo o direito de ser eu, algo que deveria ter tido muito antes, mas me foi negado. Respirava um ar diferente, porque não era mais aquele fantoche perseguidor de padrões, carregando o peso de várias pessoas nas costas. Me veriam com bons e maus olhos, porém, ao menos, dessa vez estariam olhando para quem eu sou de verdade.

 

* Baseado nos relatos de Sarah, Helena, Amara e Neon.

 

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Por Isabella Galante

Serviço de mulherzinha

 

Por Thaís Matos

 

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Mediadora: Nossa mesa redonda de hoje vai tratar da divisão de profissões por gênero e

como essa classificação prejudica a todos, mas principalmente às mulheres, que sofrem

opressão e exploração no ambiente de trabalho. Quem quer começar?

Damiana:  Posso  começar?  (todos  assentem).  Trabalho  como  pintora  de  casas  há  três

anos e as mulheres para quem eu trabalhei sempre me admiraram por desempenhar essa

função. Elas me  dizem  “nossa,  você  é muito  corajosa,  uma  guerreira”. Já  os  homens

olham sempre com curiosidade e um pouco ressabiados. Quando estou fazendo a parte

de fora  das  casas,  as  pessoas  param  para  olhar.  Mas  eu  amo  a  minha  profissão,  não

tenho vergonha.

Manoel: Eu estou desempregado há três meses. Faço faxina e essa é uma área que ainda

oferece bastante vaga. Mas tenho certeza que serei rejeitado se oferecer meus serviços

individualmente. As pessoas estão acostumadas com mulheres fazendo isso. Não sei se

elas deixariam um homem entrar na casa delas.

Giulia: Essa diferença entre essas profissões consideradas femininas ou masculinas tem

a ver com a maneira que as pessoas são criadas. Professor de ensino infantil, que cuida

de criança, é uma categoria esmagadoramente feminina e se enquadra na ideologia de

que  as mulheres são mães por natureza  e nasceram pra  cuidar de  crianças. No  ensino

universitário, tem muito mais homens, porque tem a ver com a intelectualidade, que não

está ligada à ideia da mulher emocional e não racional. É uma ideologia falsa, porque os

homens  podem  sim,  e  devem,  cuidar  das  crianças  e  têm  totais  condições  de  serem

professores infantis. E as mulheres têm capacidade de serem professoras universitárias e

não são inferiores.

Márcia:  Eu sou  a  Márcia,  trabalho  na  construção  civil,  no  estado  do  Pará,  e sou  da

diretoria  do  sindicato  da  construção  civil.  Dentro  do  canteiro  de  obras,  o  sistema

machista  é  muito  opressor  e  as  mulheres  sofrem  muito  assédio  moral.  A  mulher  é

considerada  o sexo mais frágil, falam  que  ela  não  dá  conta  de  carregar  as  coisas,  de

desempenhar as tarefas físicas, que o trabalho da mulher não pode ser classificado por

não ter a função. Nós estamos lutando pra que elas sejam classificadas e qualificadas,

porque nós temos pedreiras, ajudantes de obra, marceneiras, carpinteiras. Fora isso, tem

toda a questão do assédio sexual. Quando a mulher vai atrás de um emprego, ela tem

que ser bonita. Se ela é bonita, tem que sair com o encarregado, o mestre de obras. Se

elas saírem com outros trabalhadores do canteiro, elas são mal faladas. Elas não podem

se  relacionar  com  ninguém.  E  se  elas  forem  brigar  pelos  direitos  delas,  elas  são

castigadas. Não podem se envolver com o movimento sindical, é muito difícil angariar

mulheres para a luta.

Mediadora:  Que  horror,  Márcia.  É  inacreditável  que  ainda  passemos  por  isso.  Para

finalizar as falas, chamamos a Sílvia, membra da executiva nacional do Movimento das

Mulheres em Luta.

Sílvia: É muito grande  a opressão que  as mulheres sofrem no trabalho  e  essas pautas

precisam ser  incorporadas  às  reinvindicações  dos sindicatos  e  às  lutas  por  melhores

condições  de trabalho  no  geral. A segregação  do trabalho  por  gênero faz  com  que  as

mulheres que decidem optar por transgredir essa norma sejam vistas como incapazes de

desenvolver  a  atividade  profissional  e  acuadas  dentro  do  próprio  emprego. Para fazer

com  que  as mulheres se sintam fortalecidas inclusive  pra lutar  contra  a  exploração,  é

preciso  que  isso  seja  combatido  nas  organizações  de  trabalhadores  e  convença  os

homens da classe que isso é uma imposição da ideologia machista.

Wana: Mas quando começamos a nos mobilizar, nós mobilizamos também as outras. Eu

trabalho  como  motorista  e  já  recebi  o  testemunho  de  muitas  mulheres  que  tomaram

coragem  para  tirar  habilitação  e  até  procurar  esse  emprego  depois  de  me  verem

dirigindo ônibus. Não podemos perder as esperanças.

Mediadora: Agradecemos a presença de todas e todos e até o próximo debate.

O claro! é produzido pelos alunos do 3º ano de graduação em Jornalismo, como parte da disciplina Laboratório de Jornalismo - Suplemento.

Tiragem impressa: 5.000 exemplares

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