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Mente e prazer

 

Por Isabela Marin

 

Arte e Imagem: Ana Paula Alves e Maria Clara Abaurre

Tic-tac. O relógio de cuco bate meio-dia.

Ouço de fundo os ponteiros batendo no relógio. Será que realmente tranquei as portas? Toque, afago, sinto um queimar começando aos poucos. Uma saudade, há quanto tempo não era tocada desta forma. Ainda que o impulso de me desprender e viver o momento tome cada vez mais forma dentro de mim, avisos latejantes batem no fundo de minha mente.

Tic-tac. É meio-dia e um.

A comida está por fazer, vou ter que ser rápida. Hoje as tarefas do trabalho vão tomar toda a tarde. Uma pequena angústia se instala. Saco! De novo esses pensamentos atazanando as raras oportunidades que encontramos para nós. O estresse tem me atrapalhado constantemente na concentração, são apitos insistentes na minha mente, quando não são os incômodos com ele.  

Tic-tac. É meio-dia e dois.

Os ponteiros continuam batendo. Os sons do cuco estão me enlouquecendo. 

Costumava gostar tanto desse estímulo, o que está acontecendo? Sinto que estou demorando, ele irá ficar cansado. Se concentra! Esconda suas expressões! Mas, talvez, se fosse um pouco mais para a minha esquerda e ritmado, será…

Tic-tac. É meio-dia e três.  

Inspiro e expiro pausadamente para retornar ao presente. Uma calma volta aos poucos para meu peito, que agora briga com uma onda de calor que vem de dentro. Respiro e acompanho lentamente essas sensações. Vou sentindo a perda das paredes que antes me sustentavam nesse embate consciente comigo mesma. Estou me sentindo viva, ao mesmo tempo que todo meu corpo está entrando em uma onda inebriada. Sim, quem sabe voltei aos ponteiros exatos do meu relógio.

Tic-tac. É meio-dia e quatro.

A onda que me queima bate tão depressa como se vai. Minha mente volta a martelar. A preocupação com a performance agora deixa meu peito frio e a cabeça quente, correndo com possibilidades e alternativas de poses. Como foi que fiz na última do mês passado mesmo? Tente lembrar…

Puff, sozinha as coisas são tão mais fáceis. Talvez na próxima dê, quem sabe.

Tic-tac. Tic-tac. 

Já não conto mais o tempo. Os ponteiros me entretêm enquanto espero acabar. Como a sexóloga da TV pode falar que o sexo é um interlúdio criativo? Como desligar minha atenção e objetividade nesses momentos? Ideias dançam na minha cabeça…Talvez eu deva voltar a falar mais com ele sobre o que gosto, o que quero. Mas depois de tanto tempo juntos, faz sentido, será?

Tic-tac. O cuco canta.

Quem sabe na próxima.

Colaboraram:

Carolina Degani, terapeuta sexual.
Guilherme Conde, psicanalista, professor e jornalista.
Virginia Gaia, sexóloga holística.

Corpos do ofício

 

Por Aline Naomi

 

O direito ao livre exercício de qualquer trabalho, ofício e profissão é uma garantia prevista no artigo 5º da Constituição Federal. Apesar disso, a prostituição, considerada a profissão mais antiga do mundo, é alvo de um extenso debate que, para além das questões moralistas, discute também a prática da atividade — incluindo sua regulamentação — e suas implicações sociais.

A prostituição é reconhecida como uma ocupação profissional pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) desde 2002, mas não é regulamentada. Tal reconhecimento serve para fins de classificação do MTE, mas não outorga nenhum direito trabalhista.

Em 2012, o deputado federal Jean Wyllys (PSOL) resgatou um projeto de lei que regulamenta a prostituição. Chamado de PL Gabriela Leite, em homenagem à prostituta e ativista falecida em 2013, o documento gerou uma discussão com diversas opiniões acerca do tema, inclusive entre as próprias prostitutas, mostrando que a questão está longe de ser unânime.

Para analisar essas opiniões, o Claro! conversou com a advogada Camila Sposito, integrante da rede de juristas feministas DeFEMde, e com o Comitê pela Abolição da Prostituição, organização que defende a perspectiva abolicionista, isto é, contrária à manutenção da prostituição.

Camila afirma que, com a falta de regulamentação, as prostitutas ficam sujeitas a péssimas condições de trabalho. “Pela ausência de fiscalização, devido à inexistência de leis regulamentadoras prevendo jornada de trabalho digna e compatível, condições sanitárias mínimas e adicional de periculosidade, elas têm que aceitar turnos ininterruptos e salários aviltantes”, afirma a advogada.

Na concepção abolicionista, no entanto, devem ser criados programas de auxílio à saída de mulheres da prostituição. “Entendemos que a legislação deve apoiar a emancipação das mulheres em vez de colaborar para a manutenção da estrutura que lhes escraviza”, explica o Comitê.

Segundo os abolicionistas, o sistema prostituinte é visto como resultado do poder estrutural dos homens sobre as mulheres, e, portanto, a solução é conceder possibilidades reais às prostitutas de deixar a prostituição.

Camila também aponta as atividades ilícitas ligadas à informalidade dos prostíbulos, como sonegação de impostos, corrupção de agentes públicos e associação com narcotraficantes. “Essa informalidade sujeita as trabalhadoras aos cafetões, uma vez que eles fornecem a estrutura que sustenta o negócio: a propina para o policial, a segurança, entre outros”.

O Comitê, por sua vez, defende a penalização de clientes e intermediários — cafetões e traficantes —, mas é contrário a qualquer medida punitiva às pessoas em situação de prostituição. “Um tratamento digno às pessoas prostituídas só pode existir dentro de um modelo que combata a prostituição focado em penalização de compradores de sexo, descriminalização das pessoas prostituídas e promoção de políticas públicas que possibilitem a saída da prostituição”.

 

A saga doméstica do alinhamento de chakras

 

Por Isabelle Almeida

 

Em um final de tarde de quinta-feira, tendo voltado do estágio e sem nenhum plano para noite, decidi que tentaria meditar para abrir meus chakras. Sem nenhuma noção sobre o assunto, mas com vontade de aprender, comecei minha pesquisa pelo único lugar por onde sabia começar: o Google. Logo de cara percebi que as opções que haviam na internet são quase que infinitas. Métodos diferentes de meditação, mantras, vídeos, posições de yoga, uma série de ferramentas disponíveis de forma ilimitada para qualquer um com um computador por perto. É um pouco intimidador a princípio. E é difícil escolher o que funciona melhor quando não se tem experiência nenhuma. Sem ter muita noção do que estava fazendo, achei que deveria começar pelo básico: meditação.

Parti para os exercícios. Comecei por um vídeo de meditação guiada que achei no Youtube, de 44 minutos. Se eu ia fazer isso, ia fazer direito. Decidi que deveria tentar uma imersão total. Fechei a janela, me tranquei no meu quarto. Acendi um incenso de lavanda que encontrei guardado no armário e só pela emoção, também tirei da gaveta meu quartzo rosa em formato de coração para ajudar com a energização. Li em algum lugar que cristais ativam os centros de energia e equilibram o campo magnético do corpo. Se isso não funcionasse, não sei o que iria. Sentei-me no chão, arrumei minha postura, cruzei as pernas e alinhei minha coluna. Não tinha ninguém em casa, tudo estava em completo silêncio. Respirei fundo e dei play no vídeo. Uma voz feminina um pouco inquietante logo começou a sussurrar em meus ouvidos, exercício de ativação e alinhamento dos chakras, coloque-se confortavelmente sentado… Eu procurei me concentrar, mas acabou que encontrar uma postura certa foi mais difícil do que eu imaginava. Cinco minutos de vídeo e surgiu minha primeira dificuldade. A cãibra. Descruzei as pernas algumas vezes, tentei me esticar. Não teve jeito. Precisei me levantar e sentar na minha cama.

Recomecei. Tudo bem, estava tudo certo. Já tinha superado a estranheza inicial de uma voz me guiando, estava confortável na minha posição. Sentia meu corpo se aquecer, uma sensação gostosa enquanto me concentrava na voz da mulher. Tudo ia melhor do que eu previa. Imagine agora o ar mudando para a cor laranja, e a cada inspiração ele entrando por suas narinas como uma névoa... Eu tento me concentrar na minha respiração. Inspiro e expiro lentamente, enquanto procuro visualizar a energia laranja saindo de mim. Tento fazer a mesma coisa com os chakras seguintes (o que consigo com mais ou menos sucesso). E tudo parecia certo, até que percebo que estou divagando cada vez mais. Aquilo estava demorando demais. 44 minutos do dia fazendo isso? O que eu tinha na cabeça? Não tinha esse tempo todo para gastar. Se esse vídeo não terminasse logo ia me atrasar, tinha que comprar o presente de aniversário da minha amiga, tinha que arrumar minhas malas porque ia passar o fim de semana na praia. Não tinha tempo para isso.

Dei uma espiada no vídeo. Faltavam 20 minutos. Droga. Não, tudo bem. Concentre-se. Inspire a luz verde, sinta a sensação de calma invadir seu peito... Continuei, distrair-se era normal, li em diversos sites diferentes. Apenas deixe que o pensamento passe, sem julgá-lo. Isso funcionou por um tempo. De repente, ouço um barulho vindo da sala. Percebo imediatamente do que se trata. Minha mãe chegou mais cedo em casa hoje. Sabia que isso ia acontecer. Ela me chama, e eu tento ignorar. Concentre-se, concentre-se. Ela grita alguma coisa e eu grito de volta, Tá mãe, depois eu vejo isso! Ligeiramente irritada, volto a fechar os olhos e tento me focar de novo. Agora só faltam dois chakras. Leve sua atenção ao chakra do terceiro olho, inspire o ar e o visualize na cor azul-escuro índigo... Finalmente cheguei ao chakra frontal. Desde o começo, era o chakra que eu mais tinha curiosidade em abrir. Imagino uma cor forte azul-escura ainda mais saturada, da mesma cor de uma noite escura. Não tenho muita certeza se a cor que imagino é índigo, mas acho que não importa. Sinto-me invadida por uma luz forte, e por alguns breves instantes é quase como se eu realmente tivesse alcançado um estado para além do nível básico de consciência. É difícil de explicar, mas essa sensação dura apenas alguns segundos.

Essa energia estimula uma vibração que se espalha em círculos, de uma forma sutil… A música é suave a voz da moça é tranquilizante. Se eu estivesse deitada, com certeza já estaria dormindo. O silêncio é cada vez maior, seus pensamentos são claros, nítidos... Então, de repente e sem aviso prévio, a música para. Lentamente voltando sua atenção novamente para seu corpo… Abro os olhos com certa surpresa. Talvez até um pouco decepcionada. Os 44 minutos terminaram. Com as palmas das mãos juntas em frente ao coração, agradeço pela experiência. Não me sinto transformada, mas me sinto bem.

Por Isabelle Almeida

 

Alinhamento de chakras: o que é e como fazer

 

Por Laura Capelhuchnik

 

Os chakras são centros energéticos distribuídos pelo corpo, originários das escrituras sagradas do hinduísmo – a palavra chakra significa “roda” em sânscrito e, não à toa, eles estão em constante movimento. Sua comunicação se dá por canais condutores, chamados Nadis, por onde passa nossa energia vital. De acordo com a terapeuta holística Simone Kobayashi, eles representam nossos “centros magnéticos vitais, que fazem parte da natureza sutil do ser humano”, e por isso, exercem tanta influência sobre a saúde e o comportamento.

 

O corpo, em suas diversas facetas – isto é, física, emocional, espiritual e mental – está sob responsabilidade dos chakras. De acordo com os textos védicos, sagrados no hinduísmo, existem mais de 80 mil desses centros energéticos localizados em nossa geografia, trabalhando diariamente para o garantir a manutenção da casa (que é você). Os mais importantes, no entanto, são sete, que estão localizados ao longo da coluna vertebral. Cada um tem uma área de atuação específica, e o conjunto contempla as sete principais glândulas do sistema endócrino, entre outros componentes da estrutura humana.

chakras no corpo

Para que haja harmonia entre as funções do corpo, é preciso que os chakras estejam alinhados. O equilíbrio de cada ponto vital pode ser trabalhado por meio de diversas técnicas, não necessariamente vinculadas ao hinduísmo. Entre elas, o reiki, a meditação, a terapia com cristais e a cromoterapia. Podemos equilibrá-los sozinhos ou coletivamente; à distância – alguns centros especializados propõem consultas virtuais e tratamentos por meio de visualizações criativas, com mandalas e cores – ou na presença de um terapeuta. Tudo vai depender da linha adotada e do tratamento com o qual cada um se identifica. Cada chakra tem sua pedra, cor e mantra, o que facilita o exercício da harmonização.

 

Mas atenção: apesar de ser possível estabelecer contato com os chakras no conforto de seu lar, essa não é uma atividade (totalmente) para amadores. De acordo com Simone Kobayashi, “não é arriscado ou perigoso quando se busca mais conhecimento e aprofundamento.[Mas] também é importante salientar que normalmente temos uma visão pouco clara de nós mesmos, o que nos faz achar que [o problema] é ‘isso’ ou ‘aquilo’ e podemos estar errados. Por isso, uma análise energética [com um profissional] é a melhor forma de buscar onde precisamos harmonizar, energizar, equilibrar ou limpar.” Mas ela garante: “despertar e ativar sucessivamente cada um dos chakras é abrir as portas para um novo mundo, o do autoconhecimento.”

 

A convite do Claro!, a repórter Isabelle de Almeida realizou o primeiro contato com seus sete chakras principais, a partir da meditação e de uma série de exercícios de yoga. O relato da experiência e a lista completa de posições você pode ver aqui!

LISTA DE CHAKRAS

 

chakra vermelho edit

CHAKRA BÁSICO – Muladhara

De cor vermelha, o chakra básico tem como elemento principal a terra. Ele é responsável pela manutenção da vitalidade, disposição e conexão com o mundo material. Está localizado na região do períneo. Quando desalinhado, pode causar alienação, falta de ânimo ou excesso de apego ao mundo material.

 

chakra laranja edit

CHAKRA SACRO – Svadhisthana

O chakra sacro fica localizado na região pubiana, é responsável pela manutenção de nosso sistema reprodutor. Ele exerce poder sobre a fertilidade, os impulsos sexuais e também sobre nossa capacidade criativa. Boas ideias são impulsionadas pelo chakra sacro. Sua cor é laranja.

 

chakra amarelo edit

CHAKRA UMBILICAL – Manipura

Fica a três centímetros do umbigo e está intimamente ligado ao sistema digestório, em especial ao pâncreas. Seu elemento é o fogo. É nele também onde se concentra a energia do poder pessoal, da comunicação entre mente e corpo físico. Por ser central, também desenvolve um papel importante na distribuição de energia pelo corpo. Quando desalinhado, pode tornar a pessoa narcisista ou, ao contrário, muito insegura.

 

chakra verde edit

CHAKRA CARDÍACO – Anahata

O chakra cardíaco é responsável por fornecer energia ao sistema circulatório e cardiorrespiratório. Também está relacionado à glândula timo, que é componente do sistema imunológico. No campo comportamental, tem a função de reger relações afetivas e sentimentos. Quando desalinhado, pode causar tanto problemas emocionais quanto cardíacos ou imunológicos. Alegria fortalece o chakra cardíaco. E atenção: sua cor é verde, não vermelho.

 

chakra azul edit

CHAKRA LARÍNGEO – Vishuddha

É o chakra azul. Fica próximo à garganta e comanda as funções da tireóide. Está relacionado à nossa capacidade de expressão, corporal e verbal. Portanto, quando desalinhado, pode gerar dificuldade na comunicação, insegurança ou problemas na faringe, laringe e nos demais componentes da região.

 

chakra azul escuro roxo edit

CHAKRA FRONTAL – Ajna

Pode ser representado em azul ou branco e está localizado na parte superior do rosto. É responsável pelo sistema nervoso e está relacionado também à visão. O chakra frontal, conhecido também como chakra do conhecimento, tem a ver tanto com a nossa capacidade de enxergar o mundo material quanto com a intuição e o sentimento. Em equilíbrio, pode gerar bons frutos, como a concentração e a capacidade de raciocinar com clareza.

 

chakra violeta edit

CHAKRA CORONÁRIO – Sahasrara

De cor violeta, o chakra coronário está no topo da cabeça. Responde à nossa conexão com o mundo espiritual, com as energias do universo e também com o cérebro e a consciência.

 

Por Laura Capelhuchnik

Violações

 

Por Nyle Ferrari

 

Fecha as pernas, isso é jeito de menina sentar? Para de comer, é por isso que tiram sarro de você na escola. Esse peitinho tá chamando muita atenção, bota um sutiã. Bom dia, princesa. Fiu-fiu. Que rabo, hein. Vai com essa roupa pro trabalho? Trinta e cinco anos na cara, escolhe outro corte de cabelo. Ih, mau humor e esse calor todo é culpa da menopausa. Olha essa foto, você era tão linda novinha. Já pensou em fazer uma plástica? Poderia ter tido filho, mas daqui uns anos vai morrer sozinha, coitada. A gente põe uma roupa bonita e passa maquiagem ou vela de qualquer jeito?

 

Nairim 3 FINALx

 

Por Nyle Ferrari

O espelho e os olhares

 

Por Isabella Galante

 

Os primeiros casos de estranhamento em relação ao meu corpo foram logo que comecei minha vida social, ao entrar na pré-escola. Eu não sabia o que estava acontecendo. A gente nunca sabe. Se sente fora do lugar, mas não sabe dizer onde é seu lugar, já que esse nem sequer é apresentado.

 

As pessoas riem, contrariam, estranham, enquanto você está simplesmente existindo, sendo. Fui chamada de louca por conta do que sentia. De qualquer maneira, eu precisava me descobrir, me desvencilhar do que “deveria ser” e dos preconceitos internalizados. Era preciso que eu me desse outra opção.

 

Vez ou outra, encontrava uma maneira “segura” de expressar um pouquinho daquilo que era inerente, seja por uma peça de vestuário, uma atitude ou até mesmo um sentimento que, diriam eles, não deveria estar ali. Porém, isso, na realidade, servia mais como um jeito de me disfarçar, varria a dor para debaixo do tapete.

 

Todo esse processo, que parece tão natural e leve para quem observa, é uma agressividade psicológica tremenda. Eu me sentia sozinha. Triste. A angústia aumentava. E eu sempre achei que merecia menos. Menos amor.

 

A partir do fim da adolescência, fui aos poucos me informando o suficiente para saber dar um nome, uma definição àquilo que eu era. Eu ainda me negava fortemente e, nos momentos que me permitia me assumir como algo fora do padrão, logo cortava a ideia. “Sofreria muito preconceito, nunca seria amada, seria lida como aberração”. “O mundo não vai aceitar, minha família não vai aceitar, eu precisaria ter uma estabilidade social, financeira e psicológica muito grande para ir à frente. Quem sabe daqui a algumas décadas?”. Fui construindo minha confiança e segurança. A autonegação perdia espaço.

 

À medida que crescia dentro de mim a compreensão de que a vida que me fizeram viver era pesada, de que havia uma necessidade de encarnar uma personagem 24h por dia, junto vinha o desejo de me livrar de tudo que impedia que o outro me lesse como eu ia me entendendo. Eu estava sufocando a minha real identidade. Então, me lembrei da criança que pedia todas as noites: “Deus, me faz ser menina, por favor. Sei que deve ter mais menino que pede isso, não deve? Mas eu queria tanto, juro que vou ser uma menina boa”.

 

Um dia meu nome de registro deixou de me contemplar. E aí veio a primeira vez que depilei meu corpo e o impacto que senti ao vê-lo no espelho, difícil descrever, mas me vi feminina. Depois, a descoberta das pílulas anticoncepcionais, do bloqueador de testosterona, os seios começando a se desenhar, doídos, marcando a blusa, e eu tendo que escondê-los com faixa enquanto me faltava a coragem, a força para me assumir. Nesse período de mudanças, cada uma era comemorada, só que o desejo de me ver outra por inteiro fazia com que nada fosse o bastante.

 

Decidi colocar um vestido e pintar as unhas. Ao mesmo tempo, era difícil me olhar no espelho nua. O medo de o que pensariam ao me ver sem roupas, a insegurança por sentir que meu corpo não estava nem lá nem cá, a transição tardia, os efeitos por demais irreversíveis da testosterona.

 

Demorou meses para eu parar com a peruca, exibir meus cabelos cacheados, então curtos, e me sentir bem dessa forma. Mais de um ano para eu ficar sem maquiagem alguma e me achar bonita, tão bonita quanto nos meus primeiros dias de superprodução.

 

Antes de resolver fazer a cirurgia de mama, passei dois anos decidindo se era um desejo meu ou uma imposição social. Enfim, meu desejo venceu. Por muito tempo pensei: “Sou uma menina, meu coração, cabeça, mas… não quero mutilar meu corpo, tenho medo”. É muito forte eu me olhar no espelho e ver: cintura, seios e pênis; e ainda assim gostar do meu corpo, ainda assim ver uma mulher.

 

Ao final, me assumir foi a maior liberdade de que tenho lembrança. Eu estava tendo o direito de ser eu, algo que deveria ter tido muito antes, mas me foi negado. Respirava um ar diferente, porque não era mais aquele fantoche perseguidor de padrões, carregando o peso de várias pessoas nas costas. Me veriam com bons e maus olhos, porém, ao menos, dessa vez estariam olhando para quem eu sou de verdade.

 

* Baseado nos relatos de Sarah, Helena, Amara e Neon.

 

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Por Isabella Galante

Entre. Cabeça aberta

 

Por Guilherme Caetano

 

“A Devassa vem sempre aqui com o marido e o amante”, conta a crossdresser Pâmela*, enquanto nos leva para conhecer a casa de swing que frequenta, na zona leste de São Paulo. “O marido gosta de assistir [à esposa transar com o amante]. Ela vai para o quarto e arregaça. Às vezes, até nos atrapalha, porque os meninos vão todos para lá”.

 

Frequentadora assídua da casa, Pâmela descreve o estilo do local. Trata-se de uma espécie de clube liberal para casais que desejam praticar o swing –relacionamento sexual entre dois ou mais casais como forma de entretenimento. Liberal, sim, mas com limites.

 

A casa é composta por vários quartos (particulares ou compartilhados), cômodos escuros e preservativos à vontade. O objetivo é ser convidativo para que os clientes possam se divertir. Uma mesa cheia de comida está sempre servida e há diversos bancos do lado de fora, próximos ao bar em que as bebidas são vendidas, para incentivar o vendidas, para incentivar o bate-papo. A dona da casa, Vanessa*, conta que gosta quando os casais fazem amizade entre si antes das “brincadeiras”.
“Ninguém é obrigado a nada. Eu posso estar sentada ali no canto, assistindo a um casal transar. Se eles não permitirem, ninguém encosta. Fora isso, a gente assiste à distância, para respeitar o momento do casal. Há sempre regras”, afirma Pâmela, enquanto checa as mensagens no Whatsapp e traga seu cigarro.

 

O “não” tem que prevalecer sempre e os casais precisam estar à vontade para demonstrar sua vontade. É comum, segundo Pâmela, que o homem ou a mulher peça a permissão ou a opinião do outro para dar qualquer passo. A crossdresser diz que a pergunta mais frequente é “você quer, amor?”.
O público desse tipo de ambiente não é, no entanto, sempre tão resolvido. O consenso entre eles é que o casal precisa trabalhar muito bem essa ideia antes de experimentá-la. Não raramente há desacordo e até consenso entre eles é que o casal precisa trabalhar bem a ideia antes de experimentá-la. Não raramente há desacordo e arrependimento por conta de um ciúme imprevisto.

 

Há pessoas que extrapolam os limites. “Às vezes temos que dar uma podada em alguém. Eu sempre repito: a casa é liberal, desde que seja de comum acordo”, diz Vanessa. “Não é ‘gozou e vai embora’. Não precisa ter romance, mas não pode tratar ninguém como depósito de esperma”.

 

Questionadas sobre a palavra que melhor define o swing, ambas foram consensuais: respeito. O perfil dos frequentadores é múltiplo. “Aqui vem gente de todo o tipo, do ‘mamando’ ao ‘caducando’. Apareceu, a gente brinca. E não discriminamos, pois a pessoa não pode se sentir isolada, excluída”, afirma Pâmela. Ter cabeça aberta e saber que “não é não”. Sem isso, repete ela, não rola nada.

 

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Por Guilherme Caetano

Sociedade inacessível

 

Por Julia Moura

 

Patrícia é uma jovem jornalista de 27 anos que, em decorrência de complicações em seu parto, tem paralisia cerebral. Ela não teve sequelas cognitivas, mas seu desenvolvimento físico foi comprometido e a mobilidade reduzida. Após quatro cirurgias, caminha com o auxílio de uma bengala em curtas distâncias planas. Para longos deslocamentos, utiliza cadeira de rodas com o auxílio de outra pessoa.

 

Não há, no entanto, pontos de ônibus perto de sua casa. Para chegar até o mais próximo, há uma ladeira muito íngreme, que ela não consegue vencer sem a ajuda da mãe. As calçadas também não a acomodam com seus buracos e desníveis. Diariamente, sua liberdade e independência lhe são roubadas pela falta de acessibilidade.

 

Juliano Araújo, estudante de psicologia de 27 anos, também apresenta o quadro de paralisia cerebral. Por sua lesão no cérebro ter sido mais branda, ele tem mais facilidade de locomoção e independência que a maioria dos demais portadores. Mas isso não o impede de sofrer no dia a dia. “O degrau do ônibus claramente não foi feito por alguém que entenda ou tenha nossas necessidades. Nos bairros é ainda pior, porque não há adaptações como as grandes plataformas. O veículo é muito alto e a calçada muito baixa”.

 

Patrícia e Juliano estão inseridos em espaços que não atendem às normas de acessibilidade. Lei desde 2000, a norma 14022 regulamenta padrões de adaptação obrigatórios para pessoas com deficiência (PCD) em transportes coletivos. Já a norma 9050, em voga desde 2004, reúne padrões para edificações, espaços e equipamentos urbanos.

 

Elas ditam padrões dimensionais, especificando medidas adequadas para o uso de PCD, mas, muitas vezes, não são respeitadas. Para Renata Lima de Mello, arquiteta que participou da revisão da norma 9050, a legislação é bem sucedida, o problema é a fiscalização. “A própria prefeitura é responsável por adaptar a cidade e cobrar a sua adaptação”.

 

A arquiteta e professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, Roberta Consentino Kronka Mülfarth, aponta dificuldades dos espaços se adaptarem. “Há as edificações antigas que devem ser adaptadas e as novas que obrigatoriamente são planejadas e construídas para atender as normas vigentes”.

 

Patricia e Juliano são apenas dois dos 45 milhões de brasileiros com deficiência que sofrem com a falta de adequação de obras e projetos. Roberta lembra que, antigamente, era ainda pior. “Não se viam pessoas com deficiência nas ruas, elas ficavam isoladas em casa, era pura ignorância”.

 

Acessibilidade

Por Julia Moura

Por trás do problema

 

Por Vinicius Almeida

 

A adolescência é um momento muito difícil de lidar. Estima-se que cerca de 45% dos jovens em idade escolar querem ser mais magros. O corpo muda, e isso nos incomoda. Queremos nos mostrar perfeitos, atender às expectativas que nos são dadas.

 

O ambiente familiar talvez seja o maior responsável por tal situação. É comum que problemas como o seu se iniciem pela cobrança dos pais. Como não seguir aquilo que dizem?. Não podemos culpá-los completamente, mas é um fato que também erram. Se um tema como obesidade ou controle de peso é recorrente, o desgaste emocional é grande. Julgamentos ocorrem, e isso pode levar a um quadro mais complicado, a um transtorno alimentar. O desconforto com o corpo também pode ser gerado por forças externas. A influência da “cultura do corpo” e da pressão para a magreza que as mulheres sofrem na sociedade está associada com o desencadeamento desse tipo de comportamento.

 

A busca por exercícios e dietas mirabolantes é um dos primeiros problemas que surgem. O exercício físico por demanda estética agride o corpo. As pessoas se machucam, comprometem a saúde, sentem dor deliberadamente. Praticá-lo sem alimentação para emagrecer pode causar desnutrição, perda de massa muscular e até diminuir a imunidade. Emagrecer não deveria ser o único fim a ser buscado, até porque exercícios melhoram a capacidade respiratória, a saúde cardiovascular, preservam os ossos. São inúmeros benefícios, mas a sociedade continua a nos encorajar na busca por um corpo emagrecido.

 

As expectativas, as mídias, o ambiente familiar podem também causar isolamento. É um quadro muito comum em pessoas com transtorno alimentar. Com o tempo as pessoas passam a viver exclusivamente em função das dietas e exercícios, levando ao isolamento social. É comum que ouçamos falar do crescimento da obesidade, da hipertensão. Mas pouco se fala do outro lado, da obsessão pela magreza,  pela “saúde”. O estilo de vida contemporâneo favorece vários problemas decorrentes do sedentarismo e má alimentação, mas a proposta de enfrentamento deles não ajuda as pessoas.

 

Felizmente, entretanto, percebemos que aos poucos as amarras sociais vão se quebrando. Vemos todos os dias pessoas lutando pela libertação dos padrões, criticando-os, problematizando a questão. É triste saber que eles ainda existem e causam um mal muito grande, mas pessoas que passaram por esses problemas não estão sozinhas, e podem e devem tentar mudar o que está estabelecido, evitando assim, que mais pessoas passem por situações terríveis como essa.

 

*Texto baseado nos relatos de Paola Altheia, nutricionista, e Daniela Carvalho, psicóloga.

 

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Por Vinícius Almeida

Em Busca do Corpo Ideal

 

Por Sofia Mendes

 

Toda a batalha com meu peso começou quando eu estava entrando na adolescência. Na infância não tinha muito dessas coisas, eu era uma criança normal, então não ligava muito pra isso… Ou vice-versa. Mas com a puberdade se estampando no meu corpo (nas minhas novas coxas fartas e braços rechonchudos) e as opiniões dos outros importando cada vez mais, a insatisfação com minha aparência se tornou parte da rotina.

 

Meus pais também deram um “empurrãozinho”. Eles foram os primeiros a cortarem minhas “besteiras”, a controlarem o que eu comia e a julgar quando eu estava “acima do peso”. Até promessa de presente caso emagrecesse eu recebi!

 

 

A partir daí as dietas eram as mais malucas: dos pontos, da banana verde (que dor de barriga!), das calorias vazias… Mas o que eu mais gostava mesmo era de ficar em jejum – me sentia poderosa por poder ficar muito tempo sem comer, uma guerreira! Exercício físico? Que preguiça! Mas como não tem solução, o jeito era fazer ginástica aos montes de uma vez só, até me machucar.

 

Com uns 15 anos, eu entrei em uma dieta por conta própria, e ia na academia sete dias por semana. Consegui perder 25 quilos (uau!), mas perdi também alguns amigos, já que não podia comer nada nos lugares que eles iam, além de sempre estar  sem energia para sair. Além disso, sempre fui mestre em esconder as partes do meu corpo que mais me incomodavam, não importava meu peso. Numa dessas, andando na rua  de moletom no auge do verão desmaiei de calor, em prol de esconder meus pobres bracinhos.

 

Gastei energia absurda tentando esconder meu corpo e minhas imperfeições, quando eu podia ter aproveitado minha família, feito novos amigos e dado mais atenção aos antigos. E eu vejo isso agora, no início da vida adulta e com uma cabeça – e corpo – totalmente calejados por essa experiência. Aprendi muito sobre empoderamento feminino e libertação dos padrões. Hoje em dia não compro mais revistas que me prometam o corpo perfeito; seguir “musa fitness” nem pensar!

 

 

Mas vira e mexe eu ainda me pego olhando pro espelho apertando uma gordurinha e odiando ela estar ali. Ainda deixo de usar uma roupa linda porque acho que ela ressalta meu quadril – fora de cogitação! É até meio bobo falar isso, porque ao mesmo tempo que você apoia e empodera as meninas que passaram e passam pela mesma coisa que você às vezes é tão difícil se livrar desses pensamentos ruins!

 

No final das contas, você vira o seu pior inimigo, mais que os olhares julgadores, as revistas de moda, os padrões.E a maior luta, a contra você mesma, é diária, inconstante e sofrida. Pelo menos eu sei que não estou sozinha nessa.

 

*Texto baseado em relatos anônimos.

 

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Por Sofia Mendes

 

O claro! é produzido pelos alunos do 3º ano de graduação em Jornalismo, como parte da disciplina Laboratório de Jornalismo - Suplemento.

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