A terra arde. Flamas subterrâneas aquecem a semente de Bulbostylis paradoxa. Adaptada ao ambiente hostil, a flor popularmente chamada de “Cabelo-de-índio” germina apenas na presença do fogo. Embora natural do Cerrado, ela pode ser encontrada em regiões mais secas do Pantanal, bioma que está tomado pelas chamas desde julho de 2020.
Em uma escalada na intensidade das agressões de origem humana, nem mesmo as adaptações naturais são suficientes para que o ambiente resista às queimadas. Há mais de 35 anos como morador de Cáceres, a 220 km da capital Cuiabá, o biólogo e professor da Universidade Estadual de Mato Grosso Claumir Muniz não se recorda de presenciar algo dessa dimensão.
A temporada de queimadas deste ano no Pantanal já é a pior da história desde o início dos registros, em 1998. O Inpe reportou 19.140 focos de calor em 2020, até 5 de outubro. O número supera os 17.489 focos acumulados nos três anos anteriores: 2019 (10.025), 2018 (1.691) e 2017 (5.773).
O também biólogo e professor da Universidade Federal da Integração Latino-Americana Cleto Peres destaca as perdas de fauna e flora. Dentro desse “capital de biodiversidade” destruído pelo fogo, estão muitos organismos desconhecidos que poderiam ter um potencial a ser explorado, por exemplo, pela medicina.
A morte de biodiversidade impacta os habitantes do Pantanal, em especial, os indígenas. Em meio a cardumes intoxicados e a mananciais acinzentados, os Guató, povo nativo da região, perderam fonte de alimento e água, denuncia a líder indígena Alessandra Guató.
Ao lamentar o fato de 87% dos 19 mil hectares de terra do seu povo terem sido consumidos pelas queimadas, ela conta que sua comunidade recolheu mudas nativas para reflorestar o território em uma tentativa de remediar a situação.
Para avaliar o estrago, o Senado criou uma comissão, cujo presidente, Wellington Fagundes (PL-MT), prioriza a criação de um estatuto para regulamentar o uso do solo e a conservação do bioma. Sem data para aprovação, ele complementará o Código Florestal, “que cita o Pantanal apenas em uma linha”, alfineta o senador.
Além das ações humanas, há uma resiliência natural do bioma que pode reestruturá-lo em cerca de 40 anos, estima Peres. O tempo de resposta é prolongado pelo impacto das queimadas nas sementes locais e na fauna, morta ou expulsa de seu habitat pelas chamas.
Mesmo que a estrutura pantanosa seja retomada, ela não será mais a mesma, complementa o biólogo. Espécies adaptadas à região alagada do Pantanal podem não resistir ao fogo, restando só as que conseguem sobreviver às chamas. A “cabelo-de-índio” ainda florescerá, mas cercada de menos vida e em um ambiente mais inflamável.
Esse embate entre natureza e destruição foi captado pelo fotógrafo Araquém Alcântara durante a sua estadia de duas semanas no bioma, em setembro. Enquanto permeava o Mato Grosso, Araquém se deparou com uma onça sobrevivente do fogo, “deitada na postura da Esfinge de Gizé sobre uma área totalmente queimada”. A cena lhe expôs que “apesar de toda a morte, a natureza resiste e se recompõe”.
Colaboração
Alessandra Guató, liderança indígena
Ana Paula Cunha, pesquisadora do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden)
Araquém Alcântara, fotógrafo renomado especializado na natureza brasileira
Claumir Muniz, biólogo e professor da Universidade Estadual de Mato Grosso (UNEMAT)
Cleto Peres, biólogo e professor da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA)
Wellington Fagundes, senador da República e presidente da Comissão Temporária Externa do Pantanal
Sul do Brasil”, de Rodrigo Endres Ardissone para UFSC em 2013.
Com os pés na terra
 
Por Diego Smirne
 
Com suas mãos ásperas, Gabriel Trevisan corta um “cacho” de cogumelos que brota de um saco cheio de substratos onde os fungos são cultivados, nos galpões escuros e úmidos como cavernas que existem em sua propriedade. O jovem de 25 anos cultivou os cogumelos e construiu os galpões com seu irmão mais velho, Lucas, formado em engenharia florestal. O trabalho é motivo de orgulho, embora ele lamente seus inevitáveis resíduos plásticos. “Não dá para sair completamente do sistema”, admite.
De fato, a vida de Gabriel, que hoje mora em um sítio na estrada de Gavião Peixoto, cerca de 300 quilômetros a oeste de São Paulo, mudou radicalmente em pouco mais três anos. Pode-se dizer que ele deixou para trás um sistema, e agora tenta construir outro.
Formado em aviação civil, foi piloto executivo por mais de dois anos. Mas, embora amasse voar, a realidade não tinha nada do glamour idealizado pelo senso comum. “A competição é imensa, sempre vai ter quem tope voar por menos dinheiro. Cheguei a ter gastrite nervosa naquela época.”
Foi quando Gabriel estava mais exaurido que seus pais compraram a propriedade onde ele vive e trabalha com o irmão. “No início eu conciliava as duas coisas. Eu estava voando para um fazendeiro do Mato Grosso, mas a convivência com ele foi me desgastando. Então larguei a aviação e vim trabalhar de vez na terra.”
Além do cultivo de cogumelos, recentemente os irmãos começaram uma agrofloresta, onde serão cultivados no ritmo da natureza vegetais como bananas, batatas, mandioca e outras plantas frutíferas. “Além de produzir nosso próprio alimento, queremos estreitar a relação entre produtor e consumidor. Muita gente acha ruim pagar sete reais por uma bandeja de shimeji, mas acha normal gastar mais que isso com remédios de que talvez não precisasse se comesse melhor.”
Acordar cedo até aos domingos, espetar o pé em espinhos que perfuram as botas grossas, sujar as mãos na terra, tê-las ásperas de tanto trabalho. A rotina do campo é muito diferente da romantização das histórias que pipocam na internet sobre gente que “largou tudo para viver na natureza”. Mas, para Gabriel, mais que um negócio, seu trabalho no sítio é um ideal, um estilo de vida.
“Se no futuro alguém quisesse comprar o sítio, eu não venderia. Mas ficaria muito feliz de inspirar essa pessoa a fazer o mesmo que eu, retomar o valor da vida no campo, de uma alimentação saudável, de uma vida na qual o maior objetivo não seja o dinheiro.”
Dos tempos de aviador, preserva apenas a foto de perfil no Facebook, segundo ele “mais por não gostar de tirar fotos do que por nostalgia”. Mas a paixão por voar ainda existe, e ele a alimenta com um paramotor, comprado para matar a saudade de tirar os pés da terra. É junto a ela, no entanto, que o jovem mostra que um outro sistema é possível.
Morte e Vida
 
Por Amanda Panteri
 
Tem gente que jura de pé junto que eu nasci antes, mas quando me perguntam, eu não tenho receio em afirmar que eu só me reconheço com vida a partir de 2013.
O meu nome até então era Praça Homero Silva. Eu era mal frequentada, mal cuidada e cheia de lixo e entulho, o que acabava com as poucas chances de eu, um espaço público no meio da cidade, ser habitat para alguma espécie – apesar dos meus quase 12 mil metros quadrados.
O meu renascimento começou quando um grupo de moradores da Pompeia resolveu dar-me uma mãozinha e ajudar no projeto da minha revitalização. Foram meses intensos de retirada do que não prestava, de plantação de árvores, até descobrirem o que tenho de mais precioso. Eu carrego comigo a responsabilidade de ser terreno de duas nascentes do Córrego Água Preta.
Depois da descoberta, a preocupação com a minha preservação aumentou. Fui cuidada por geólogos e hidrólogos, que canalizaram parte das nascentes para a construção de um lago, e hoje sirvo de casa para mais de 80 espécies de animais.
Comecei a receber visitas e mais visitas e, desde então, já fui palco de nove festivais musicais, um batizado, uma festa de aniversário, e pasmem, um casamento.
A parte legal dessa história, infelizmente, acaba aqui. Há três anos, uma incorporadora resolveu comprar as nove casas de um terreno vizinho ao meu para levantar um prédio comercial e residencial de 22 andares e três subsolos.
As demolições começaram, e foi então que descobriram que esse lugar, agora um buraco enorme, também tem as suas preciosidades e é dono de suas próprias nascentes.
A construção do edifício demandaria o descarte dessa água por meio das sarjetas da rua. E o mais grave: como o lençol freático do lugar está interligado, as minhas águas provavelmente seriam sugadas também.
Isso não foi motivo para que meu grupo de amigos, agora mobilizados no Coletivo Ocupe e Abrace, desanimasse. Eles levaram os meus documentos, emitidos pelo Instituto Geográfico e Cartográfico, ao Ministério Público Federal e comprovaram que eu abrigo as nascentes, o que impossibilita que qualquer tipo de construção seja feita a um raio de 50 metros de mim.
A responsável pela obra não ficou nem um pouco contente com a ação do coletivo, e pediu um alvará de construção para a Secretaria de Licenciamento do município.
A situação de agora se resume em disputa: de um lado, a detentora do capital; do outro as organizações civis, que querem defender o espaço público e o meio ambiente. Cabe ao Estado, então, decidir pelo equilíbrio.
Voa, homem
 
Por Felipe Saturnino
 
Há situações que nos põem em face a invejáveis capacidades animais, inalcançáveis: a capacidade de voar, de atingir grandes alturas, de viver só, flutuando entre árvores, o céu e as coisas. Existe, no entanto, um momento em que essas diferenças abrandam — e, quem sabe, um ser humano pode ser pássaro.
Aos 42 anos, a única resposta que Yuri Cordeiro, desde 2007 praticante do wingsuit — ramo do paraquedismo que utiliza um macacão com asas para realizar saltos —, tem quando fala sobre a sensação de voar é que tem grande emoção. “Sinto muita liberdade, apesar de bater um medo”, pondera ele.
A razão não pode ser outra: com um equipamento que eleva o potencial aerodinâmico, quem salta pode atingir 200 km/h em pleno ar, em meio à queda livre que antecede a abertura dos paraquedas. O salto pode ser praticado de um avião, de montanhas ou penhascos.
O traje do esporte, rijo e alado, não é “a coisa mais confortável do mundo” — como afirma Yuri —, tecido em material sintético, inflexível. “Parece mais uma camisa de força”, diz ele, descrevendo a veste.
Largamente disseminado, o wingsuit já angariou adeptos em vários lugares, e o próprio Yuri já empreendeu saltos no estrangeiro: além da terra brasilis, planou na Noruega, Chile, Itália, França, Suíça e China.
A brincadeira também agrega riscos: em 2016, o wingsuit teve um recorde de 36 mortes. Em esporte que alcança tais velocidades, seria de bom senso que a segurança não se negligenciasse. “O problema é que não há controle e as pessoas fazem como querem”, pontua Yuri, atestando que a realidade não segue sensatas recomendações.
Caso se esteja em um avião, o voador pode fazer sua queda até, no máximo, mesmo da altitude de quatro mil metros . Se preferir se jogar de uma montanha, a maior altitude possível é de 2800 metros. Neste exato momento, em ambas as situações, ao olhar para o alto, tomaríamos o voador como um pássaro, um avião, um ponto ou um super-herói inexistente — mas talvez seja mesmo apenas um homem imitando um bicho.
O claro! é produzido pelos alunos do 3º ano de graduação em Jornalismo, como parte da disciplina Laboratório de Jornalismo - Suplemento.