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Sempre há sistema

 

Por Nelson Niero Neto

 

 

A vida em sociedade pode ser sufocante. Com suas regras rígidas e sistemáticas, o indivíduo sente sua liberdade tolhida e considera intoleráveis as complexas injustiças e desigualdades entre as pessoas. Todos já nos pegamos imaginando como seria viver em um mundo de liberdade total, onde não houvesse regras, dominações, burocracias e deveres. Esta utopia seria o completo caos ou haveria algum jeito de levar uma vida em harmonia mesmo com todos fazendo o que bem entendessem?

 

Mesmo as teorias sociais que defendem uma transformação total do sistema vigente – buscando o fim das explorações e opressões – têm as suas regras e propostas de acordos coletivos para a sociedade.

 

Até a teoria anarquista, que é confundida com defesa de destruição e caos, é fundamentada em estratégias que buscam substituir a organização social presente.

 

É impossível traçar, historicamente, quando o mal-estar com o sistema começou. Ele caminha com a humanidade desde o momento em que a primeira pessoa sentiu a opressão de outra e se rebelou contra ela. Para Peter Marshall, escritor britânico simpático às ideias anarquistas, este “rebelde” foi o primeiro anarquista da história, ainda que o anarquismo como corrente de pensamento tenha surgido em meados do século XIX. As lutas contra as dominações estão presentes em todos os momentos históricos, mas foram as características do século XIX, com a consolidação do capitalismo e as degradantes condições de trabalho nas fábricas, que proporcionaram as condições para o surgimento da teoria anarquista.

 

Os teóricos desse movimento propõem uma sociedade mais igualitária a partir de um sistema de autogestão. Grosso modo, todas as pessoas teriam a possibilidade de participar das decisões na medida em que são afetadas – o que não significa que todos decidem sobre tudo. Ao contrário do que se forjou no senso comum, não seria uma sociedade em que cada um pode fazer o que quer.

 

A verdade é que não há vida em sociedade sem um sistema por trás. Mas cada sistema pode ter níveis diferentes de liberdade e igualdade entre as pessoas. É disso que o anarquismo se trata: a busca por uma sociedade que seja mais igualitária e libertária.

 

Quanto à pergunta inicial, que nos leva a um mundo fantasioso, não há resposta correta. Mesmo no mais completo caos, haveriam relações entre as pessoas e elementos influenciando suas atitudes. Isso representaria um sistema – caótico, mas ainda um sistema.

 

Colaboraram: Felipe Corrêa Pedro, autor da dissertação “Rediscutindo o anarquismo: uma abordagem
teórica. EACH-USP. 2012”; André Tiê, graduando em História pela FFLCH-USP.

Engolidos pelo sistema

 

Por Vinícius Bernardes

 

 

Um olho, depois o outro. Assim Maria acorda todos os dias. Coloca os óculos. Calça os chinelos. Toma um banho. Apressada, desce para a cozinha. Coloca a água no fogo. Retira a roupa do varal. Arruma a bagunça da sala. Vai até o espelho. Veste a roupa branca. Está pronta. Pega a xícara. Bebe o café. 5:30h. Hora de sair. Com as chaves em mãos, abre a porta. Corre para o ponto de ônibus.

 

Um degrau, depois o outro. Assim Maria sobe as escadas do ônibus. Está quente. Procura um lugar. Não encontra. Espreme-se no corredor. Segura-se em um dos apoios. Apertada, tenta não cair. O ônibus balança. Coloca os fones de ouvido. Não escuta mais nada. Tenta se desligar. 1 hora. 2 horas. Trânsito. Um passo, depois o outro. Assim Maria entra no Hospital. Lá, os pacientes, em quartos ou em corredores, aguardam seus cuidados. Bate o cartão. Olha para a fila. Tenta não se assustar. Chama o primeiro. Medica. Aplica injeção. Equilibra-se entre a UTI e a Internação. Atravessa o corredor. Entra nos quartos. Alimenta os enfermos. Troca o soro. Está cansada.
Uma garfada, depois a outra. Assim Maria almoça todos os dias. Come apressada. Não saboreia. Engole. Rápida, pega outro ônibus. Segue para o segundo hospital. Lá, a mesma coisa. A imensa fila toma conta do corredor. Chama o primeiro. Medica. Aplica injeção. Equilibra-se entre a UTI e a Internação. “Será que o dia já está próximo de terminar?”. Uma badalada, depois a outra. Assim Maria completa sua rotina. O sino da igreja anuncia o término do dia de trabalho. Mas aquele não era o fim. Correndo, segue para o ponto de ônibus. Pensa nos afazeres de casa. A louça. A janta. As crianças. De volta ao lar, abre a porta. Exausta, verifica se há café na jarra sobre a mesa. Nada. Olha para a sobra da xícara da manhã.

 

Sonhava com o dia em que se libertaria daquela rotina. Mas como? Tudo estava sob sua responsabilidade: o aluguel, a água, a luz. Não podia pedir as contas sem mais nem menos. Teria de se adaptar. Conformada, observa o líquido escuro. Preso em um recipiente de vidro, tentando se adaptar à forma que lhe é imposta. Cansada, Maria pega a xícara fria. Engole o resto de café, como o Sistema a engole dia a dia.

 

Com os pés na terra

 

Por Diego Smirne

 

 

Com suas mãos ásperas, Gabriel Trevisan corta um “cacho” de cogumelos que brota de um saco cheio de substratos onde os fungos são cultivados, nos galpões escuros e úmidos como cavernas que existem em sua propriedade. O jovem de 25 anos cultivou os cogumelos e construiu os galpões com seu irmão mais velho, Lucas, formado em engenharia florestal. O trabalho é motivo de orgulho, embora ele lamente seus inevitáveis resíduos plásticos. “Não dá para sair completamente do sistema”, admite.
De fato, a vida de Gabriel, que hoje mora em um sítio na estrada de Gavião Peixoto, cerca de 300 quilômetros a oeste de São Paulo, mudou radicalmente em pouco mais três anos. Pode-se dizer que ele deixou para trás um sistema, e agora tenta construir outro.

 

Formado em aviação civil, foi piloto executivo por mais de dois anos. Mas, embora amasse voar, a realidade não tinha nada do glamour idealizado pelo senso comum. “A competição é imensa, sempre vai ter quem tope voar por menos dinheiro. Cheguei a ter gastrite nervosa naquela época.”

 

Foi quando Gabriel estava mais exaurido que seus pais compraram a propriedade onde ele vive e trabalha com o irmão. “No início eu conciliava as duas coisas. Eu estava voando para um fazendeiro do Mato Grosso, mas a convivência com ele foi me desgastando. Então larguei a aviação e vim trabalhar de vez na terra.”

 

Além do cultivo de cogumelos, recentemente os irmãos começaram uma agrofloresta, onde serão cultivados no ritmo da natureza vegetais como bananas, batatas, mandioca e outras plantas frutíferas. “Além de produzir nosso próprio alimento, queremos estreitar a relação entre produtor e consumidor. Muita gente acha ruim pagar sete reais por uma bandeja de shimeji, mas acha normal gastar mais que isso com remédios de que talvez não precisasse se comesse melhor.”

 

Acordar cedo até aos domingos, espetar o pé em espinhos que perfuram as botas grossas, sujar as mãos na terra, tê-las ásperas de tanto trabalho. A rotina do campo é muito diferente da romantização das histórias que pipocam na internet sobre gente que “largou tudo para viver na natureza”. Mas, para Gabriel, mais que um negócio, seu trabalho no sítio é um ideal, um estilo de vida.
“Se no futuro alguém quisesse comprar o sítio, eu não venderia. Mas ficaria muito feliz de inspirar essa pessoa a fazer o mesmo que eu, retomar o valor da vida no campo, de uma alimentação saudável, de uma vida na qual o maior objetivo não seja o dinheiro.”

 

 

Dos tempos de aviador, preserva apenas a foto de perfil no Facebook, segundo ele “mais por não gostar de tirar fotos do que por nostalgia”. Mas a paixão por voar ainda existe, e ele a alimenta com um paramotor, comprado para matar a saudade de tirar os pés da terra. É junto a ela, no entanto, que o jovem mostra que um outro sistema é possível.

 

Peças da engrenagem

 

Por Alvaro Logullo

 

 

O Sistema não é uma célula só. O Sistema é um conjunto de elementos que, ordenados, desempenham uma função específica em um todo. Concretos, abstratos, morais, sociais ou econômicos, tais componentes orientam a vida em sociedade. Viver no Sistema é subordinar-se a todos os pequenos subsistemas interligados que determinam nossa conduta e que nos definem padrões, modelos, exemplos, métodos.

 

E o que fazer para sair do Sistema? É possível confrontá-lo? Esta edição do Claro! se propôs a discutir tais questões, em busca de entender qual o nosso papel e espaço dentro desse Sistema. E como somos apenas integrantes de uma engrenagem muito maior.

 

O claro! é produzido pelos alunos do 3º ano de graduação em Jornalismo, como parte da disciplina Laboratório de Jornalismo - Suplemento.

Tiragem impressa: 5.000 exemplares

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