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desfazer de mim

 

Por Dani Alvarenga

 
Arte: Adrielly Kilryann e Guilherme Castro

Na televisão, programas como Acumuladores Compulsivos, desde 2009 nos canais A&E e Lifetime, distraem a audiência com a limpeza de casas cheias de entulho. Mas para quem convive com o Transtorno de Acumulação (TA), o apego exagerado aos objetos passa longe do entretenimento, afetando a saúde e as relações sociais do paciente.

“Minha mãe tem umas 100 peças da mesma calça. Tem mais de três mil roupas, mais de 300 ou 400 livros. Ela foi acumulando e não consegue se livrar nem do que sabe que é lixo”, conta Ana*. Ela percebeu a dificuldade da mãe, 80, de se desfazer dos itens em 2019. “Ela não deixava ninguém entrar lá”, relata.

De acordo com a psiquiatra Roseli Shavitt, a síndrome afeta principalmente pessoas com mais de 60 anos e que têm outros diagnósticos psicológicos. O TA também varia de intensidade, podendo chegar a níveis em que a segurança, qualidade de vida e saúde do paciente são colocados em risco.

Ana acredita que a acumulação na casa da mãe já ocorria há 20 anos. O  entulho deixou apenas um espaço livre no local: o caminho que ia da porta ao banheiro e ao quarto em que a mãe dormia. Com a dificuldade de mobilidade, a senhora enfrentava risco de quedas. “Minha mãe também gosta de acender vela para santo. A qualquer momento, poderia causar um incêndio”, explica Ana. Em 2022, ela buscou a rede pública de saúde para tentar ajudar a mãe.

O tratamento é feito por meio do uso de medicamentos e, principalmente, por terapia cognitivo-comportamental, a única que tem evidências científicas de resultados, de acordo com Maria Alice de Mathis, psicóloga do Hospital das Clínicas. Parte do processo consiste no desapego gradual dos objetos. “São intervenções bem diretas e específicas, com metas diárias, semanais e mensais”, explica a psicóloga.

Para receber o tratamento, o paciente precisa aceitá-lo. Ana não conseguiu a autorização da mãe, que se recusa a receber ajuda. “Eles foram bem claros comigo: nós não fazemos nada à força”, explica ela. Ana, então, se viu obrigada a interná-la numa clínica psiquiátrica. Na tentativa de retirá-la do meio do entulho a longo prazo, ela também realizou uma limpeza na casa.

A retirada dos objetos, tão comum nos reality shows que ocupam os canais fechados, não é suficiente. O descarte é consequência de um longo tratamento psicológico e, mesmo após a limpeza, a pessoa com TA precisa de assistência para se manter vigilante e não retornar ao estado de acumulação.

*O sobrenome foi omitido a pedido da entrevistada.

COLABORADORES: ATALIBA DE CARVALHO, PSIQUIATRA PELA UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS. TIAGO HAKA, INFLUENCER E DIARISTA. ELLEN MILGRAU, INFLUENCER E ORGANIZADORA DO PROJETO FAXINA MILGRAU.

Uma mente em reconstrução

 

Por Alvaro Logullo

 

 

Parada em frente ao espelho, Aline não tem coragem de encará-lo. Os olhos vermelhos e a pele da face ressecada são reflexos das lágrimas salgadas e de horas sem dormir. Em seu ouvido, uma voz que lhe atormenta. É incapaz de viver assim. E reza para que isso acabe.

 

Saber o que deixou Aline doente não importa. Uma vez presa nas armadilhas do psicológico, o maior problema não é descobrir o responsável por criá-las, mas sim, lutar contra essa voz dentro de si mesmo dizendo que jamais será possível escapar delas.

 

Aline ouviu essa voz por muito tempo. Acordava durante a noite com medo dos pesadelos. Dormia novamente desejando nunca mais acordar. Sentia uma obrigação de viver. Não queria mais isso. Pensou em demolir tudo. Suicidar-se.

 

Mas não o fez. Não implodiu. Agarrou-se na religião, seu abrigo. Aline decidiu pela vida, mas seguiu sentindo-se vazia. Com seu pai, permanecia em silêncio. Incapaz de se expressar. A mãe, que chorava sozinha pela filha, sorria à sua frente tentando animá-la. Deixou de sair com os amigos, que, mesmo assim, abriam mão de seus compromissos para não abandoná-la em sua solidão. Percebia todos a sua volta lutando por ela, sem poder atender suas expectativas. Era o próprio fracasso.

 

Como se estivesse dentro de um liquidificador, sentia-se triturada pela vida, enquanto era arremessada para todos os lados. Ainda assim, não havia analogia capaz de descrever a verdadeira sensação de “ser insuficiente”. Estava desmontada.

 

Reconstruir-se seria uma tarefa díficil. Aline negou um terapeuta e se recusou a tomar remédios fortes. Tinha medo dos efeitos colaterais. Aceitou um tratamento homeopático. Remédios que não agem diretamente no sistema nervoso do indivíduo. Algo mais demorado e que exige uma avaliação minuciosa do paciente.

 

A partir daí, Aline atravessou um processo de enfrentamento consigo mesma, em busca da reconstrução. Por muitos dias, saiu sozinha, durante a madrugada, para caminhar. Refletia, organizava os pensamentos, aceitava-se. Desses momentos, retirava forças para viver o dia seguinte.

 

Aos poucos, o destino de Aline foi ganhando novos contornos. Deixou sua cidade no interior para estudar na capital. Uma nova estrutura. Novos ares. Novas experiências, novos amigos, uma nova perspectiva. Tais elementos foram os tijolos que Aline empilhava aos poucos, com cuidado. Eventualmente, a vida derrubava algum deles que não estava firme na estrutura. Mas uma pequena queda já não abalava tanto. Era uma nova Aline.

 

O engatilhador do quadro depressivo em uma pessoa é variável. Algo insignificante para um, que pode ser determinante para outro. Aline teve sorte. Sorte por contar com pessoas que não desistiram dela, que se sacrificaram, sofreram com ela e não ignoraram sua dor. Somado a isso, uma enorme força de vontade. Soube utilizar o processo como aprendizado e foi capaz de compreender que a vida, às vezes nos desmorona. E o que resta é nos reerguer.

 

Hoje, Aline olha para o espelho e sorri.

 

O claro! é produzido pelos alunos do 3º ano de graduação em Jornalismo, como parte da disciplina Laboratório de Jornalismo - Suplemento.

Tiragem impressa: 5.000 exemplares

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