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…o que fazemos para ser parte da família?

 

Por Erick Lins e Leonardo Vieira

 
Arte: Adrielly Kilryann e Guilherme Castro

Vestir a camisa da empresa, ter a sensação de pertencimento à família empresarial, se doar ao máximo ao trabalho, ter o pet ao seu lado durante a jornada, confraternizar com os colegas durante os finais de semana, poder se vestir da maneira mais confortável, happy hour. Empregado? Não! Colaborador, família.

De acordo com Ana Cristina Limongi Franca, professora da Escola Politécnica da USP, além de especialista em gestão de pessoas e comportamento organizacional, esse cenário surgiu a partir da década de 1990, com a expansão do neoliberalismo, o que levou a ações de gestão da qualidade do ambiente profissional e humanização. “Para as empresas, é uma forma de gerar aproximação, por outro lado, transmite uma falsa sensação de poder ao funcionário.”

Essa narrativa, entretanto, pode se configurar em assédio moral no trabalho, segundo a Cartilha de Prevenção ao Assédio Moral do Tribunal Superior do Trabalho (TST). O documento explica que as empresas utilizam estratégias organizacionais – como impor condições de trabalho personalizadas, diferentes daquelas acordadas e previstas em contrato, e delegar tarefas impossíveis de serem cumpridas – criam uma cultura institucional de humilhação e controle. Algumas dessas são amparadas pelo discurso organizacional.

Maria Clara do Nascimento*, coordenadora de recursos humanos (RH), esclarece que viveu uma situação de abuso: “essa cultura acolhedora, familiar, era uma estratégia de fazer com que nós [funcionários] achássemos normal passar tanto tempo dentro da empresa”. As consequências desse sistema podem afetar a saúde física e mental dos funcionários. Ela conta que a pressão da empresa desencadeou crises de ansiedade, insônia e burnout. A terapia é mais sobre trabalho do que qualquer outro assunto.

Para o vendedor, João Guilherme de Andrade*, esse discurso funciona apenas quando convém para a empresa. Ele relata que durante o expediente, em um sábado, véspera do dia das mães, ninguém havia falado de fazer hora extra. Próximo ao fim da jornada, seu chefe perguntou se ele poderia ficar duas horas a mais. “Informei que não seria possível, pois tinha um compromisso marcado. Ele começou a falar que eu não valorizava a empresa, que era ingrato.”

*Os nomes foram alterados a pedido dos entrevistados

Feito com o suor dos outros

 

Por Larissa Lopes

 

Com a sua idade, você já deve saber como os bebês são feitos. Mas e se te perguntarem sob quais condições são produzidas as suas roupas, os seus eletrônicos, a sua comida ou o seu carro? Você está ciente de como tudo isso foi parar nas suas mãos?

Com dados assombrosos, a plataforma Slavery Footprint estima que cerca de 42 escravos estejam por trás dos bens e serviços consumidos por um jovem de classe média. A partir da quantidade de produtos que você possui, o programa calcula quantas pessoas em situação análoga à escravidão estão envolvidas na produção.

E se engana quem acredita que apenas a indústria da moda perpetua a escravidão. Só na China, a jornada de trabalho de fabricantes de bolas de futebol chega a 21 horas por dia. Em Uttar Pradesh, Índia, mais de 200 mil crianças trabalham no mercado de tapetes.

Estima-se que ao redor do mundo cerca de 27 milhões de pessoas sejam traficadas e vivam sob algum tipo de exploração. Para se ter uma ideia, esse número é 2,5 vezes maior do que a população de Portugal, país que nos deixou como herança uma sociedade racista e escravista, que claramente não sucumbiu ao riscar da pena da Princesa Isabel.

O professor Jorge Souto Maior, da Faculdade de Direito da USP, lembra que, nos anos 1990, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) interpelou o Brasil para que algo fosse feito em relação às milhares de denúncias ao trabalho escravo. Após a bronca, em 1994, foi criada uma repartição no Ministério do Trabalho para cuidar do assunto. Dez anos mais tarde, três fiscais e um motorista do Ministério foram assassinados ao supervisionarem uma fazenda em Unaí, Minas Gerais.

“De lá para cá, o trabalho escravo continua existindo e nenhuma pessoa foi presa pelo crime. O máximo a que se chega é a ‘libertação’ dos escravos e a determinação de que o escravista pague os direitos trabalhistas que já deveria ter pago”, lamenta Souto Maior.

Só na cidade de São Paulo, seis empresas foram descobertas entre dezembro de 2014 e dezembro de 2016, nas regiões do Brás, Bom Retiro, Lapa e Vila Bela Vista.

Pois é, pertinho da sua linha de trem ou metrô. Você já fez a conta de quantos escravos estão no seu dia a dia?

 

Expansão das fronteiras do planeta Terra

 

Por Rafael Ihara

 

 

Estrelas
O tão vasto Universo, que estamos longe de desbravar. Foto: xxx

 

Já tentou se concentrar pra ouvir a conversa alheia no metrô, no restaurante, na fila do banco? Ou já diminuiu a velocidade do seu carro pra saber como foi o acidente que está obstruindo a avenida? É provável que sim. As pessoas fazem isso simplesmente porque existe algo dentro delas: a chamada curiosidade. Graças a ela descobrimos muita coisa na ciência, na história… Chegamos até a pisar na Lua. A curiosidade natural do homem faz com que ele queira sempre  – inclusive as do nosso planeta.

 

 

Segundo o vice-chefe do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (IAG-USP), professor Roberto Costa, é essa curiosidade que impulsiona os estudos desenvolvidos tanto na astronomia (estudo dos planetas, da estrutura do universo), quanto na astronáutica (prima da engenharia, que consiste na exploração espacial com foguetes, sondas, satélites, naves).

 

 

O pesquisador do IAG fez questão de salientar que muitas pessoas e veículos de comunicação acreditam que deve-se explorar se outros planetas possuem condições de abrigar a vida humana porque a Terra não conseguirá mais, daqui a algum tempo, abrigar seres humanos. Costa explicou seu posicionamento dizendo que a Terra ficará inabitável daqui aproximadamente dois bilhões de anos – os Homo sapiens existem há 300 mil anos, e os macacos pelados, como disse Roberto Costa, não existiam há 100 milhões. Portanto, os ciclos de vida dos humanos e dos planetas possuem escalas de tempo absolutamente diferentes. Quando a vida na Terra não for mais possível, os humanos de hoje já terão se transformado em outros seres absolutamente diferentes.

 

 

Mas essa curiosidade pelo que acontece no universo só pode ser sanada graças a grandes investimentos em pesquisas, tecnologia, inovação, capacitação. Sabe quanto o Brasil já gastou só com o estudo da astronomia de 1965 até o ano de 2014? 212 milhões de dólares já ajustados pela inflação da moeda no período, segundo levantamento do IAG-USP. E olha que estamos falando só do Brasil que, segundo o professor Costa, é um dos países que menos investe nessa área. Com essa grana seria possível construir 48 hospitais com capacidade para atender, cada um deles, a uma população de 40 mil pessoas.

 

 

E então fica a pergunta: será que vale a pena investir tanto dinheiro em astronomia e astronáutica? Basta olhar para os equipamentos mais usados pela população hoje. Celulares, computadores e tablets só existem por conta de tecnologias desenvolvidas por esses dois campos de estudo, segundo o vice-chefe do IAG-USP. Os Estados Unidos são o país que mais investe em astronomia e astronáutica, o que explica o fato do país ser um dos maiores desenvolvedores de novos produtos tecnológicos. Talvez eles queiram mostrar que não é suficiente serem a nação mais poderosa da Terra: eles também precisam dominar o universo.

 

 

Descobertas pela Terra

 

Por Luiza Magalhaes

 
 

 

Entre fotos de amigos e textos sobre política, encontrei uma citação, daquelas que circulam na internet e a gente não sabe quem é o autor. “Somos os filhos do meio da história”, começa a frase, “Nascemos muito tarde para explorar a Terra e muito cedo para explorar o Universo”. A inquietação me pareceu razoável: o mundo é vasto, já dizia Carlos Drummond, mas ultimamente ele tem mesmo parecido cada vez menor.

 

 

Nós já descobrimos todos os continentes, mapeamos cada pedaço de terra e, através da internet, temos acesso aos lugares mais distantes do planeta sem precisar sair de casa. Já pisamos no topo do Monte Everest e até na superfície da Lua – mas a exploração interestelar, talvez a próxima grande fronteira a ser conquistada, só será possível num futuro muito distante, mesmo se considerarmos as perspectivas mais otimistas. O que restaria, então, para os exploradores do século XXI?

 

 

A resposta, creio eu, é que talvez estejamos pensando pequeno quando achamos que nascemos tarde demais para explorar a Terra. Se a sensação é de que já conhecemos tudo o que tem por aí, eu diria que na verdade o buraco é mais embaixo – 11.033 metros, para ser exata, se estivermos falando da Fossa das Marianas, o local mais profundo do oceano e talvez o menos explorado do planeta.

 

 

“Na verdade, tem muita coisa ainda para explorar”, diz o biólogo Luis Felipe Toledo quando lhe pergunto a respeito. “Não precisa nem ser nas profundezas do oceano: na areia da praia que as pessoas vão tem organismos ainda não conhecidos, no terreno baldio em São Paulo tem espécie nova de sapo”. Toledo estuda os anfíbios, e recentemente coordenou uma pesquisa que descobriu uma nova espécie de rã: a Pseudopaludicola jaredi. Encontrada na caatinga, nos estados do Ceará e do Rio Grande do Norte, a nova rã pôde ser diferenciada pelo som. “Cada espécie tem um canto diferente. Então às vezes, indo pro mato, a gente acaba escutando uns cantos que a gente nunca ouviu, e aí com a análise do DNA consegue descobrir que é uma espécie nova”, conta o biólogo.

 

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Luis Felipe Toledo. Foto: Arquivo pessoal

 

E por que não explorar o passado? “Tenho todo dia a possibilidade de me deslumbrar com a realidade da extinção e a enormidade do tempo geológico. É uma grande lição de humildade, ‘ressucitar’ os nossos ancestrais biológicos e olhá-los nos olhos. Eles têm muita história para contar”, relata a paleontóloga Aline Ghilardi, líder de uma equipe que, por meio de um osso fossilizado, descobriu uma nova espécie de dinossauro na cidade de Sousa, na Paraíba.

 

 

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Aline Ghilardi. Foto: Arquivo pessoal

 

 

“Novas ferramentas para buscar mais conhecimento estão sendo desenvolvidas a todo instante. Temos muita gente trabalhando por isso”, diz Aline. “Em breve, vamos quebrar mais uma fronteira. Alguns colegas dizem que é o espaço, mas eu te digo, com a minha experiência como paleontóloga, que ainda temos muita coisa para descobrir por aqui mesmo”.

 

 

Ambos os pesquisadores com quem conversei são apenas dois exemplos das infinitas possibilidades de descobertas que podem ser feitas na Terra – não só de novas espécies, mas também novas tecnologias, novos avanços na medicina, entre muitas outras. Talvez sejamos os filhos do meio da história, mas essa posição não me parece menos interessante que as outras. Não vivenciamos a descoberta do Novo Mundo, mas temos vários novos mundos aqui, esperando para serem explorados.

 

A reflexão tomou cicuta

 

Por Sérgio Rodas Borges Gomes de Oliveira

 

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A tecnologia do século XXI é exuberante. Se eu descrevesse invenções como o telefone, o computador e a internet a meus colegas atenienses, eles diriam que eu estava louco e querendo desestabilizar a vida da cidade. Bom, eles diziam isso de mim de qualquer forma. Porém, impressiona-me como os homens e mulheres desperdiçam tantas facilidades!

 

Ah, sou o Sócrates. Sim, o velho filósofo. Vós devem estar vos perguntando como estou escrevendo esse texto, uma vez que morri há 2414 anos. Bom, isso prova que estava certo sobre a imortalidade da alma. Lembrai-vos: pouco antes de me suicidar, eu afirmei aos meus amigos que o espírito permanece após o fim da vida, e nesse estágio finalmente atinge o pleno conhecimento.

Dessa forma, tenho assistido ao desenrolar da história de camarote desde então. Fiquei maravilhado com o salto tecnológico ocorrido no fim do século XX e início do XXI. O computador facilitou o armazenamento de informações e a transmissão delas aos outros. Com a internet, essas possibilidades foram multiplicadas, e o saber ficou acessível a todos à distância de alguns cliques. Além disso, ferramentas como e-mails e redes sociais construíram pontes entre as pessoas, acabando com abismos comunicacionais. Com a última evolução do telefone, o smartphone, tais facilidades passaram a estar disponíveis 24h por dia.

 

Deveríais estar comemorando essa mudança de paradigma. No entanto, de uns tempos para cá, fui percebendo que, devido a essas inovações, vós estão esquecendo do meu principal ensinamento: o de que a autoexploração, o conhecimento de ti próprio, é a única forma de compreender a vida em sua plenitude.

 

A hiperconectividade está acabando com o silêncio, com o exercício da autorreflexão. Vós não sabem mais ficar quietos, pensar a vida, suas contradições e seus mistérios. Quando param, logo sacam vossos celulares para enviar mensagens, xeretar os outros, ou vos distrair com algum assunto da moda. Com isso, as mentes ficam rasas, as conversas, superficiais, e a humanidade, pobre.

 

E não sou só eu quem observa isso. A psicóloga da PUC-SP Luciana Ruffo endossa que a ideia de que é essencial buscar o autoconhecimento – isso se a pessoa quiser interagir de uma forma mais plena com o mundo. Talvez o ideal metafísico não tenha mais tanto apelo, mas os benefícios da prática se estendem à vida prática. Isso porque geram uma frente de batalha mais eficaz contra os problemas físicos e emocionais, tal qual a organizada pelos meus conterrâneos em Maratona em 490 a. C., quando barraram a invasão dos persas.

 

Contudo, nem sempre a culpa é só do indivíduo. Para o professor de filosofia da UniRio Nilton Anjos, se ele convive com um círculo social que não estimula reflexões, provavelmente não irá fazê-las, pelo menos não com uma frequência que eu considere aceitável (tudo, bem, talvez eu seja exigente demais). Passatempos populares, como vídeos de gatos, sites de fofocas e piadas do WhatsApp, não incitam a autoexploração, pois servem justamente para distrair a mente. O problema é que eles foram alçados a uma posição de protagonistas na vida cotidiana. E pensar que na minhá época nos “distraíamos” com as peças de Sófocles e Ésquilo…

 

Com isso, as mentes estão mudando – e para pior. Em um dos livros recentes que mais me intrigou, “A geração superficial: o que a internet está fazendo com os nossos cérebros”, do escritor norte-americano Nicholas Carr, descobri que as facilidades da internet e seus diversos estímulos estão acabando com a capacidade de concentração.

 

E sem concentração, o conhecimento não avança. Como bem lembra a professora de filosofia da ECA-USP Marilia Fiorillo, o pensamento tem dois momentos: o ímpeto e o recolhimento. No primeiro, as pessoas buscam a informação; no segundo a metabolizam. Com a drástica redução do exercício dessa segunda fase, o saber não é devidamente apreendido.

 

Sem essa absorção, as pessoas deixam de questionar suas ideias, gerando extremismos e impedindo discussões honestas. Se fosse tentar aplicar o meu famoso método atualmente, seria xingado e ameaçado – ou bloqueado no Facebook. Em meu julgamento, poderia ter pedido uma pena alternativa: prisão, multa ou exílio de Atenas. Recusei todas essas opções, pois avaliei que caso aceitasse uma delas, estaria assumindo a minha culpa em “corromper” os jovens. Em suma, morri pelas ideias, pelo incitamento à autoexploração. Mas será que a cicuta foi em vão?

COSMONÁUTICA

 

Por João Cezar Diaz

 

cosmonautica

OPS-4, Camarada Guryev, na escuta?

Minha cabeça não consegue se situar sobre o meu pescoço, não consegui remover a maior parte dos estilhaços no meu ombro. Pelo menos o sangue secou, assim não preciso vê-lo flutuando pela cabine. Tive de afastar as portas do armário de remédios para chegar ao display. Todos os frascos de analgésicos ainda estavam flutuando atrás do que restou das buchas e parafusos que costumavam segurar o armário ao seu devido lugar no casco. Todos vazios. Não sobrou nada pra me fazer dormir.

Soyuz-57, estou aqui. Camarada Kasyanov, é você?

Tenho que diminuir as luzes, não consigo enxergar a tela. Manchas roxas da iluminação lateral estampadas no fundo da minha retina. As infinitas luzes piscantes me acordam em um compasso de exatos 3,5 segundos. Sinto que, às vezes, elas saem de ritmo.

Negativo. OPS-4, Kasyanov está cuidando de reparos, quem fala é o engenheiro de vôo Tamarkin. O que posso fazer por você, OPS-4?

Está quente demais, Soyuz-57.

Mais quinze dias e eu desceria daqui; seria o fim da minha missão, traria os dados que ninguém mais possui. Teria meu nome em alguma coisa, talvez um terminal ferroviário… Preciso checar uma coisa.Tensiono meus pés contra as paredes de plástico para me lançar pra fora da cabine. Eles escorregam com um som que me reaviva os sentidos. Todo o lado esquerdo do meu corpo tem seus tendões fisgados para fora. Tudo aqui escorrega, todas as superfícies estão encharcadas com meu suor. Entrego-me ali, deixo meus músculos distenderem como quiserem; desmaio envolvido naquele mesmo ar viciado que já respirei por 47 dias.

OPS-4, como é a situação? OPS-4, aqui é Tarmarkin, na escuta, camarada?

Algumas luzes pararam de piscar, mas a lembrança do seu ritmo implacável ainda martela atrás dos meus olhos. Volto-me, sem querer, à pequena janelinha da estação. Lá fora, está a razão por eu estar aqui. “O oceano derradeiro”, como nos diziam na academia. Um destino para os novos desbravadores. O implacável desconhecido que paira sobre nossas cabeças. Uma maçante cortina preta sem propósito, penso, afinal.

OP… ki….

Ainda preciso checar uma coisa. Deixo-me levar até o compartimento do meu engenheiro. Alguns cabos se soltaram, preciso saber se aqueles que puxei para garantir que seu cadáver não flutuasse a qualquer vontade ainda estão firmes. Isso não importa, na realidade. Vou me juntar a ele em poucas horas. Talvez ainda tenha um pouco daquela geleia desidratada por aqui.

OPS-4, aqui é Soyuz-57. Não foi permitida a acoplagem, OPS-4.

Homem soviético, tenha orgulho, você abriu a estrada da Terra para as estrelas!

DOS CÍRCULOS VICIOSOS NA VIDA COMUM

 

Por Marcela Campos

 

corpos

 

No primeiro domingo do mês, dia 2 de agosto, acordamos um pouco mais tarde. De domingo dá pra tomar um café preguiçoso que a mãe prepara. Ela acorda meia hora mais cedo pra passar a água pelo filtro que segura aquele pó quase preto, quase sangue envelhecido.

 

Pode ser que a Gisele também estivesse fazendo isso lá pros cantos de São Leopoldo, RS, quando decidiu que não ia dar mais, não: o que o Élton estava fazendo, ah, não, aí já era demais. Depois de sete anos, ó, não vai dar, ela vai ter que pedir o divórcio. Ela foi decidida, viu? Falou pra ele que não queria mais, que nem a gente caga de medo de fazer toda vez que precisa comunicar uma decisão.

 

Se ela ficou com medo? Acho que não deu tempo. O primeiro golpe foi na cabeça. A Gisele até se fingiu de morta, veja só você, na esperança que ele parasse. Foi por pouco que ela não morreu mesmo. Levantar e pedir ajuda não dava, teve seus pés e mãos decepados.

 

A gente já viu outras mulheres terem seus pés e mãos decepados, assim, de pertinho, olho no olho, não viu? Porque não precisa ser com facão e o sangue não precisa manchar o carpete. Palavra também corta, às vezes. O volume delas corta a voz de quem escuta, essa outra mulher, e é por isso que ela não responde. Batedor de bife quando é muito usado fica cheio de verme e serve também pra bater por cima da voz de quem bate o bife todo dia, assim, diariamente. Batedor de bife pode ser marido. Batem nela todo dia e ela fica carente.

 

Tem um sobrinho que mora lá. O moleque tem uns quinze anos. Ela diz que ele tem um pau rosa na ponta, sabe? Ele não liga muito – quer dizer, ele acha um pouco estranho. Ela é tia dele, não é tia de sangue, tipo da mesma linhagem, mas é tia dele, e ele acha um pouco estranho, sim. É que ela tem um rabo bonito e fica insistindo muito pra ele quando ele volta da escola, mas é só de vez em quando. Aí ele manda ver, né. Custa nada, não, e ele mora lá de favor, quer ajudar no que pode.

 

Já falou pro tio. O cara tem tanta coisa pra resolver que tá desgraçado da cabeça. Nem ouviu, parece. Levantou, passou a mão pela barba, ligou a TV. Sempre que ele passa a mão pela barba é porque tá pensando que não consegue descobrir porque faz da mulher um bicho. Tem remorso do pensamento, mas sabe que é porque foi ela quem criou esse babaca que é o filho. Da última vez que o chamou pra sair, ele passou até no mercado pra comprar uns donuts daqueles ruins do Walmart, mas é porque eles gostavam de comer juntos. Chegou em casa pra pegar o menino e ele tinha sumido com os cem reais da carteira dele e não voltou pra casa até quinta-feira. Não sei porque suscitava toda essa esperança no pai toda vez que sorria pra ele. Era sadismo. Era sempre pra fazer o velho de idiota.

 

Esse aí, até quinta-feira, só deus sabe o que ficou fazendo. Tá com 26 agora. Mamãe deu tudo. Paga a conta do celular até hoje – é baratinha – só pra dizer que lhe paga as contas e quer satisfações. Aos 23, se não fosse dormir em casa, mamãe ainda queria dossiê. Perdi as contas de quantas vezes chorou no telefone – como podia um filho abandonar a própria mãe? As namoradas… Essas ela pagou pra dar no cano. Ele nem sabe que tem um filho por aí, no mundão. Mamãe pagou pra resolver isso também.

 

Agora ele só some. Ele some até quinta-feira e bem pode sumir até sexta-feira se lhe der no cano. E ninguém sabe se morreu. Pode ser que morra ou pode ser que se mate. Pode ser que não se mate porque como poderia abandonar a própria mãe?

O LOCAL OCULTO DA PRODUÇÃO

 

Por Marcelo Grava

 

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Arbeit macht frei – em alemão, “o trabalho liberta” – era a frase que esperava milhões de prisioneiros em campos de concentração nazistas. Aqueles que a liam eram obrigados a trabalhar nas prisões, muitos até a morte. Em retrospecto, é fácil entender o absurdo dos letreiros: os nazistas submeteram seus prisioneiros a tudo, menos à liberdade. Mas, fazendo uma análise mais ampla, desde o surgimento da humanidade, será que o trabalho já foi exercido livremente, ou representou algum tipo de “libertação” para os povos?

 

No século XIX, dois teóricos alemães, Karl Marx e Friedrich Engels, observaram que toda sociedade, desde os primeiros humanos, desenvolveu suas próprias formas de transformar a natureza para sobreviver.

 

A dupla mostrou que a divisão do trabalho, as classes sociais e toda a base político-ideológica de cada época correspondem às condições de sua produção. Além disso, a classe que detém os meios de produção sempre explora as demais.

 

No capitalismo, segundo Marx e Engels, a burguesia  é quem concentra os meios necessários para a produção da vida humana (infraestrutura, tecnologia, recursos naturais etc). Aqueles que não possuem tais meios, o proletariado, vendem sua força de trabalho para um capitalista, em troca de um salário.

 

Cléber Souza, 27, é um proletário. Trabalha desde a adolescência com manutenção de máquinas, e já passou por várias fábricas do ABC paulista. Hoje, é empregado da Método Manutenção. Ele conta que chegou a ficar 18 horas seguidas fazendo reparos em máquinas. “A fábrica é o setor onde a galera mais trabalha e menos recebe”, diz.

 

Cléber acredita que o trabalho é sempre exploratório. “Eu vejo a galera trabalhando muito, engolindo muito sapo e não recebendo o que lhe é de direito. A gente é responsável por todo o faturamento da empresa, mas o dono tá cada vez mais rico e o salário cada vez menor.”

Eis o que Marx e Engels consideraram a base da exploração capitalista: a extração de mais-valia. Trata-se da diferença entre o valor pelo qual uma mercadoria é comercializada e o valor pago ao trabalhador para sua produção, na forma de salário.

 

O trabalhador recebe apenas uma parcela do valor que produz. O restante, mais-valor, se transforma em gastos e lucro do capitalista. Através da mais-valia, o patrão gera a acumulação e a concorrência e garante seu domínio sobre o empregado.

 

Com 18 anos, Cléber participou de sua primeira greve.  Filiou-se à Central Única dos Trabalhadores (CUT), mas percebeu que o sindicato submetia os trabalhadores a acordos pré-negociados com os patrões. Hoje, não pertence a qualquer central.

 

Sua realidade é como a de muitos trabalhadores em grandes cidades. Célio Viana é gari no Rio de Janeiro e, em 2014, protagonizou uma greve que rompeu com o sindicato, conquistou aumento salarial de 37% e fez a cidade, em pleno carnaval, perceber que não é maravilhosa sem a labuta diária e quase invisível da categoria.

 

Ele conta que os garis sempre questionaram as condições precárias de trabalho, e a paralisação de oito dias os ajudou a se valorizarem. “Você fazendo reuniões, falando pros trabalhadores que quem decide são eles e a direção do movimento não vai decidir nada além do que a categoria decide, faz eles se sentirem representados.”

 

Célio também não nutre esperanças no modelo sindical e defende que “a mudança parte do povo”. “Esses partidos e sindicatos que estão aí não nos representam. Uma nova direção tem que começar pela base. O povo, quando quer se organizar, consegue.”

 

O roteiro foi antecipado por Marx e Engels. Para eles, somente a livre organização do proletariado poderá superar o capitalismo e cessar o domínio de uma classe sobre outra, libertando a sociedade da propriedade privada e, por conseguinte, da exploração do trabalho.

EXPLORAR TAMBÉM É PRECISO

 

Por Giovana Feix

 

turismo

 

 

Ser viajante nem sempre envolveu vestir camisa florida e pendurar câmera no pescoço. Alguns séculos atrás, os lusitanos saíram por aí em uns barcos gigantes de madeira, muitos sem nem saber escrever sobre o que encontrariam pelo caminho. E antes mesmo de nascerem as camisas floridas, as câmeras e até Portugal, a busca por lugares diferentes era parte integrante da vida humana. Para os romanos, esse tipo de encontro era tudo, menos amigável, e levou ao pejorativo nome dado por eles aos estrangeiros: “bárbaros”.

 

A ideia de turismo que cultivamos hoje aparece, obviamente, muito depois de todas essas histórias. Turista turista, só depois da revolução industrial, com a introdução de “tempo livre” no imaginário popular. É algo que se distancia das explorações portuguesas ou das inimizades romanas, para então se aproximar de uma sede por descanso. E é aí que nasce um dos segmentos mais rentáveis do mundo: segundo a Organização Mundial de Turismo (OMT), ele é hoje responsável por 9% do PIB mundial. Nada má, a presença dos “bárbaros”, seria bom revelar aos romanos.

 

Mas como colocar preços em praias, climas ou culturas? A turismóloga Clarissa Gagliardi explica: o ganha-pão, na verdade, são os serviços. Com a criação de agências especializadas, que reúnem vários deles em um só lugar, é provável que muitos de nós nos afastemos ainda mais das explorações aventureiras de outrora. Com seus pacotes, essas empresas apresentam vantagens tanto no preço quanto na sensação de segurança que envolve ser guiado e ter companhia, em visita aos “bárbaros”.  Mas elas também podem transformar a exploração de cidades e até de países inteiros na mera visita de pontos turísticos ou roteiros cristalizados. Também compõem esse quadro as padronizadas redes de hotéis internacionais, que se propõem a fazer mesmo da estadia em lugares desconhecidos uma experiência familiar.

Com um cenário desses, é de se questionar como o turista atual ainda se assemelha aos exploradores antigos. Com tanto conforto e familiaridade, perderia a viagem algo de seu valor? Clarissa não é tão pessimista assim. Segundo ela, ao mesmo tempo em que a globalização torna as viagens mais padronizadas, ela possibilita um acesso cada vez maior ao turismo. Além disso, um tipo de viagem não exclui a possibilidade de outro. E são possíveis, como ela conta, muitos outros. “Você não tem só essa estrutura”, propõe. “Dá pra ir pra Portugal e ficar no Ibis ou ficar numa pousada histórica, por exemplo”. O país dos exploradores que descobriram o Brasil tinha algo muito interessante, nos anos 40: o governo comprou vários prédios históricos, para depois transfomá-los em pousadas tradicionais e estatais. Depois de problemas econômicos, houve a privatização de parte dessa rede, que passou a ser gerida por mais um grupo internacional: o Pestana. “O serviço deve ter ganho um ar de padrão internacional”, opina a turismóloga, “mas em muitos lugares ainda dá para ter uma experiência mais regional, com profissionais que sejam de lá”.

 

Para quem ainda procura por explorações, Clarissa tem ainda outras dicas: o turismo de experiência e, principalmente, o turismo social. O primeiro envolve atividades sensoriais demarcadas, como saltos de pára-quedas, enquanto o segundo inclui tanto preços mais acessíveis (geralmente subsidiados) quanto um contato mais próximo com populações locais. Além disso, novas ferramentas digitais, como é o caso de aplicativos e blogs de turismo,  podem ajudar. Os viajantes, assim, não ficam tão dependentes das agências na hora de explorar. O cenário é novo, mas é importante saber que ainda dá pra sair por aí com um quê daqueles lusitanos. Mesmo que – por que não? – com camisa florida e câmera pendurada no pescoço.

Um lado dos Jogos Olímpicos que ninguém vê

 

Por Vinícius Inácio

 

esportes

“Os treinos aconteciam quatro vezes por semana e duravam quatro horas. Aos fins de semana jogávamos em cidades que não a nossa, viajando por horas”. Se você pensa que essa é a rotina de um atleta adulto, está enganado. É assim que Karina Oliveira, 21, passou a juventude nas quadras. Para ela e outros jovens que almejam disputar uma Olimpíada, a dura rotina de treinos e jogos é cotidiana.

Um salto, um drible e um bloquio, executados à perfeição, escondem a rotina de repetidos movimentos, pulos e quedas, que por vezes levam à lesão crônica. A dor é cotidiana para o atleta, desde as categorias de base até a fase profissional: “Tive colegas que pararam de jogar porque adquiriram lesões. Não sofri com isso, mas me afastei do esporte. Perdi a esperança de me tornar profissional, por exigirem muito de mim. Fisicamente e psicologicamente”, declara.

Para Kátia Rúbio, professora da Escola de Educação Física e Esporte da USP (EEFE) e ex jogadora de vôlei, “é importante que o atleta tenha a clareza de que sua atividade é diferenciada”, que não é possível atingir o nível olímpico “sem viver diariamente o limite”, mas aponta que a exploração do corpo, exigida pelo esporte, pode levar a níveis extremos de desgaste emocional e físico. “Existem clubes preocupados com o desenvolvimento do atleta e que respeitam as especificidades da faixa etária e da modalidade, desenvolvendo a capacidade de competir, de acordo com o indivíduo. Porém, existem clubes que obrigam jovens a executar um trabalho tão proibido quanto o de uma criança que trabalha nas pedreiras de São Tomé das Letras”.

Se o jovem aguenta o ritmo pesado de treinos e jogos, quando adulto a conta chega e o tempo cobra. Caso de profissionais consagrados como Ian Thorpe, cinco vezes campeão olímpico e que juntos às vitórias desenvolveu depressão e alcoolismo. Casagrande, ex-jogador do Corinthians, não esconde que a rotina de treinos, concentrações e jogos contribuiu com seus vícios. Ana Moser pagou com 12 cirurgias a primeira medalha olímpica do vôlei feminino do Brasil, em Atlanta, 1996, e convive com dores permanentes no joelho.

A Olimpíada de Los Angeles, 1984, ficou marcada pela imagem esgotada e cambaleante da atleta norueguesa Gabrielle Andersen que ignorando a dor e o cansaço, atingiu a linha de chegada após 42km da maratona olímpica. A imagem que ficou para a história do esporte não foi apenas a de superação ou do desejo de vencer de Gabrielle. Aquele quadro escancarou o alto preço cobrado a qualquer jovem que decide se tornar um atleta.

Pela TV, vemos a beleza e a plasticidade do esporte, mas para atingir o lugar mais alto do pódio é necessário percorrer um caminho que, junto ao desejo da vitória, traz a dor e a incerteza da derrota.

O claro! é produzido pelos alunos do 3º ano de graduação em Jornalismo, como parte da disciplina Laboratório de Jornalismo - Suplemento.

Tiragem impressa: 5.000 exemplares

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