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memórias demolidas

 

Por Rafael Canetti

 
Arte: Adrielly Kilryann e Guilherme Castro

No duelo da memória e com o capital, os espaços urbanos são o ambiente de batalha. O urbanista Leonardo Civale sintetiza esse conflito dizendo que a memória e a identidade desses espaços são tensionadas em uma disputa política entre comunidades e dinheiro. Para ele, as transformações físicas tendem a assumir o valor financeiro, subjugando o sentimental.

Lucas Chiconi ilustra isso ao expressar como uma das transformações no centro histórico de São Paulo o impactou: ele viu um lugar cômodo e planejado para ser pedestre configurar-se em um espaço abandonado e inseguro. “Ir para lá não é mais a mesma coisa, por consequências sociopolíticas, hoje o comum é ir de carro, há mais vulnerabilidade social, criminalidade e áreas problemáticas com drogas”, aponta.

O pertencimento espacial ocorre quando alguém sente que o lugar é um patrimônio, uma extensão da sua vida, há vontade de permanecer e visitar, de preservar o meio ambiente e as relações que são construídas nele. A psicóloga Maíra Felippe explica que o processo de transformação do espaço causa um nível de sofrimento associado à disruptura da própria identidade.

Essa disruptura se vincula à modernização urbana. A construção da linha azul do Metrô modificou o estilo de vida de Kareen Terenzzo. De um lado, aproximou as fronteiras com sua família, por outro, ela se queixa da profunda mudança na paisagem: o asfalto se concentrou e algumas casas tradicionais foram expropriadas.

Atualmente, Kareen milita contra a verticalização e a desintegração das identidades do bairro de Pinheiros, pelo movimento Pró-Pinheiros. Ela resume sua luta: “As novas edificações urbanas têm finalidade comercial, não cidadã. Nelas, pessoas se afastam e se individualizam, perdem o pertencimento e o elo comunitário”.

Praças, parques e outros espaços públicos podem ser a fonte de novas memórias e comunidades. Eles devem ser constantemente valorizados, fiscalizados e revitalizados. Nesse sentido, são os próprios movimentos locais que devem ser os protagonistas políticos para transformações democráticas, com o elo emocional acima do capital.

COLABORADORES: JOÃO VICTOR PAVESI, PROFESSOR DE GEOGRAFIA, ROSANNA BRANCATELLI, MOVIMENTO PRÓ-PINHEIROS.

Cronometrar o esquecimento

 

Por Lígia de Castro

 

Esquecer a data de um exame é revoltante. E não se lembrar das palavras ternas do marido nas núpcias pode ser pior ainda. Mas, tomando distância das frustrações imediatas, o esquecimento é um processo bom. Mais, é fundamental.

 

Quem o diz é Lílian Stein, pioneira no estudo sobre falsas memórias no Brasil. A professora da PUC-RS conta que seus alunos ficam surpresos quando ela dá a declaração fatal: “Seria horrível ter uma memória perfeita. Esquecer faz parte de um processo adaptativo do nosso sistema. A raça humana só sobreviveu por ter essa capacidade”.

 

João Roberto Tenório, doutor em psicologia cognitiva pela UFPE, complementa que, sem o esquecimento, nós sofreríamos uma grande sobrecarga mental: “Criar uma memória não é só reter uma informação: você guarda, processa e significa ela. Cognitivamente falando, é um processo muito pesado”.

 

A primeira teoria sobre o tópico foi publicada em 1881, batizada de Curva do Esquecimento. A ideia do psicólogo Hermann Ebbinghaus era que, após decorar uma lista de 10 palavras inventadas, ele mediria o quanto das letras seria lembrado com o tempo. A conclusão foi que uma quantidade maior de informações desaparecia do cérebro em um período curto, mas, no decorrer dos dias, menos se esquecia.

Porcentagem de retenção de informações ao longo do tempo: experimento de Ebbinghaus. Gráfico por Marcelo Canquerino

Porcentagem de retenção de informações ao longo do tempo: experimento de Ebbinghaus. Gráfico por Marcelo Canquerino

 

A curva foi replicada e atestada muitas vezes. Mas nela, há limitações: primeiro, porque ela parte do princípio de que o indivíduo memorizou 100% das informações. Além disso, os assuntos do nosso cotidiano quase nunca vêm em formato de lista (muito menos de uma lista de letras sem nexo).

 

A teoria do alemão também diverge de outras posteriores em relação ao armazenamento de ideias. “Ebbinghaus considerava que a memória fica cravada em um substrato mental, e o que se esquece é apagado do cérebro”, explica João Roberto. Outros modelos, no entanto, entendem o esquecimento como uma dificuldade de acessar informações armazenadas.

 

A teoria da Falha na Recuperação, de 1932, é um exemplo do último caso. O teórico inglês Frederic Bartlett sugeria que as informações não são de fato perdidas. Experimentos comprovam esse modelo: neles, pessoas se lembram de fatos que antes não podiam ser recordados.

 

Além dessa, a Teoria da Interferência, de 1894 (sempre atualizada), postula que o esquecimento se dá pela sobreposição de memórias. Ela ajuda a explicar o porquê de esquecermos coisas tão importantes como a declaração do marido no casamento: as informações mais recentes e mais ligadas à afetividade estariam sempre competindo e conquistando um lugar na nossa memória, em detrimento das mais antigas  – por mais tocantes que elas sejam.

 

Ilustração por Marcelo Canquerino

Ilustração por Marcelo Canquerino

 

Fontes:

Lílian Milnitsky Stein – psicóloga, pesquisadora e professora da PUC-RS

João Roberto Ratis Tenório da Silva – doutor em Psicologia Cognitiva pela UFPE, bolsista em programa de Doutorado de Psicologia Cultural na Dinamarca.

Repetida(mente)

 

Por Ligia Andrade e Thaislane Xavier

 

Antes de colocar a venda sobre os olhos, Vicenzo Cecchini, que se tornou recordista mundial de Cubo Mágico aos 13 anos, se concentra. Na sua frente, um cubo de seis faces: cada uma delas é dividida em nove partes, todas pintadas com uma cor diferente, prontas para serem desembaralhadas. No pouco tempo que tem para memorizar o lugar em que as cores estão, cria histórias para cada uma das peças, nomeando-as com letras que formarão palavras quando não conseguir mais enxergar. Assim que é vendado, leva cerca de apenas dois minutos para conseguir decifrar o cubo.

No total, um Cubo Mágico oferece mais de 43 quintilhões de possibilidades de combinação, mas os dedos de Vicenzo parecem ignorar a matemática. Segundo o recordista, o segredo é decorar as etapas propostas por determinados algoritmos, que definem sequências de regras a serem seguidas para decifrar o quebra-cabeça tridimensional, e então repeti-las até se tornarem instintivas: “Enquanto eu decoro, meu dedo já vai sabendo o que fazer”.

 

Embora possa parecer que Vicenzo Cecchini possui uma memória acima da média e, portanto, consiga aplicar sua habilidade de memorização em outras partes de sua vida, isso não é, necessariamente, verdade. Gilberto Fernando Xavier, neurocientista e professor de fisiologia do Instituto de Biociências da USP, explica que a memorização de certas habilidades ocorre por mecanismos distintos da memorização de certos momentos. 

 

No primeiro, o que importa é a repetição de movimentos, enquanto que, no segundo, a ativação de circuitos facilitados do sistema nervoso, responsáveis pela captação de informação e por sua lembrança, ocorre por diversos fatores, como carga emocional e importância do evento. “Se você perguntar para uma pessoa que pratica um esporte como ela faz para que seus dedos façam determinado movimento, ela não saberá explicar direito. Diferente de uma memória autobiográfica, em que a pessoa é capaz de fazer um relato verbal do ocorrido, a experiência percepto-motora só é capaz de ser demonstrada através da execução”.

 

 Trabalhar a chamada memória de trabalho, responsável por nossa capacidade de guardar mentalmente as informações em curtos períodos de tempo, é fundamental para o atleta. É precisamente isso que faz com que Vicenzo seja capaz de quebrar recordes. Após decorar as cores, seu cérebro começa a processar as informações necessárias para resolver o cubo, mas sem esquecer a ordem inicial do que se encontrava a sua frente. Quanto mais ele repete a ação, mais intuitivo se torna colocar todas as cores do cubo em ordem. 

 

Ainda assim, ele precisa se concentrar, por quê? Bem, a memória de trabalho possui alguns limites, entre eles a distração: “Um pensamento surge, uma interrupção como um telefone tocando ou alguém falando por perto, pode ser suficiente para desviar a atenção do conteúdo da memória de trabalho de modo que o seu conteúdo é rapidamente perdido”, explica Emílio Takase, especialista em neurociência aplicada ao esporte.  Por isso, campeonatos como os de tênis, golfe, xadrez e cubo-mágico exigem silêncio tanto de quem assiste quanto dos que competem.

Já senti esse cheiro…

 

Por João Vitor Ferreira

 

Sabe aquela nostalgia que bate quando sentimos o perfume de uma pessoa querida? Ela pode nem estar perto, mas é só de sentir um aroma parecido, que a lembrança vem na hora. Isso é a nossa memória olfativa agindo. 

 

Segundo a neurocientista Grace Schenatto, professora do instituto de ciências biológicas da UFMG, as memórias episódicas são aquelas formadas quando algum evento nos marca muito, como um aniversário ou um pedido de casamento. Elas são polissensoriais, ou seja, estão ligadas a mais de um sentido; porém, o olfato é o que nos faz revivê-las de maneira mais rápida. A professora explica que “as memórias olfativas estão associadas a uma parte do nosso cérebro chamada de bulbo olfatório. Ela possui uma ligação direta com o complexo amigdalóide, que é um dos responsáveis pelo armazenamento dessas memórias (episódicas).”

 

Profissões como os sommeliers utilizam suas próprias memórias sensoriais (memórias relacionadas aos nossos sentidos) como instrumento de trabalho. Jayro Neto, campeão brasileiro de sommeliers de cerveja, explica que sua função é traduzir para cliente o que está no rótulo de uma cerveja em forma de sensações e criar combinações de aromas e sabores que fiquem marcadas na memória do freguês. “A cerveja tem uma substância que faz ela ficar com um gosto parecido ao de maracujá. Eu vou falar pro cliente que ela tem gosto de maracujá, eles até me perguntam se ela é feita com a fruta e ficam espantados quando eu digo que não. Mas é esse tipo de explicação que eu tenho que dar pra familiarizar eles”, comenta o sommelier.

 

A partir de um prato escolhido pelo cliente, o sommelier utiliza de suas memórias e conhecimentos técnicos para sugerir a bebida que melhor acompanha aquele pedido. “Algumas cervejas realçam um certo sabor, outras são mais leves e menos amargas. Essas diferenças entre elas que temos que descrever para o cliente para que ele também saiba qual melhor se encaixa no seu gosto”, explica Jayro. As cartelas de vinho ou cerveja são elaboradas pelo sommelier da casa, que para criá-las faz um estudo meticuloso do cardápio do restaurante, preparando previamente diversas combinações para sugerir ao cliente.

 

Jayro afirma que a maior parte do seu trabalho envolve as memórias olfativa e gustativa, e reforça a ligação entre elas: “Você não pode sentir um sem o outro. A experiência não é a mesma, tipo quando você está gripado. O gosto não é a mesma coisa sem sentir cheiro.”

Assim como os pássaros

 

Por Nelson Niero Neto

 

Desde a primeira memória que tenho, Dona Nisa já não conseguia guardar suas lembranças muito bem. Ao conversar, ela logo esquece o que falamos. Seus chocolates – doces são uma de suas grandes paixões – estragam nos armários porque ela não lembra que escondeu. E, para fazer as atividades mais básicas do dia a dia, ela precisa do apoio da sua ajudante, a Vera.

 

A mais velha dos três filhos de Luís e Ondina, Nisa Navarro nasceu em 1920, em Mococa, no interior de São Paulo. Diretora pedagógica, sempre teve uma pose autoritária. A braveza, porém, se esvai após as primeiras palavras trocadas. Perdeu seu companheiro de vida aos 69 anos – hoje tem 97. Mas nem isso abalou sua postura firme.

 

Vera ainda se lembra da época em que ela era totalmente lúcida. E se lembra do dia que isso começou a mudar: Dona Nisa, um senhora sempre tão confiante e cheia de si, quase caiu em um desses golpes baratos de banco. Esbaforida – não sei se pelo episódio ou pelo calor intenso típico de cidade interiorana –, chegou em casa gritando pela ajudante:  “Vera! Preciso da senha da minha conta. Qual é mesmo?”. Vera estranhou, afinal, minha vó nunca tinha tocado nesse assunto com ela. Perguntou o motivo. “Uma amiga que encontrei na rua disse que precisa ir comigo ao banco. Ela está me esperando na porta”. Ao ir até lá, a estranha saiu correndo. Minha vó teve algum tipo de apagão enquanto andava sozinha e a fulana tentou se aproveitar dela.

 

Isso faz uns 20 anos. Desde então, ela passou a sempre ter companhia – o que não virou um problema. Não perdeu a personalidade marcante e o bom humor. Não deixou de dizer que a vida seria mais interessante se o feijão tivesse gosto de sorvete. E não deixou de brincar com as pequenas coisas. Mesmo ao esquecer de tirar os óculos na hora de se deitar, ela não perde a pose. “Eu preciso enxergar no sonho, oras”, diz, ao colocá-lo no criado mudo. De alguma maneira, consegue manter a postura inabalável.

 

 

Mas há momentos difíceis. Os que ela não me reconhece, por exemplo. Não chega a dizer, mas o olhar é revelador. Num primeiro momento, a tristeza é implacável. Tento, então, pensar que sou só mais um entre os quinze netos. E ainda tem os seis bisnetos. Talvez seja exigir demais dela. Olho a situação com a experiência de 23 anos de vida. Enxergo cada dia como uma experiência única.

 

 

Por outro lado, esse curto período de tempo mal cabe na memória de Dona Nisa. O que são 23 anos quando se tem quase um século de vida? Pior ainda quando não se pode distinguir com clareza o ontem do hoje. Os dias, para ela, são pássaros que pousam rapidamente no parapeito da janela e logo alçam voo para longe. Ao menos, eles levam consigo os problemas e angústias que costumam nos afligir.

 

O claro! é produzido pelos alunos do 3º ano de graduação em Jornalismo, como parte da disciplina Laboratório de Jornalismo - Suplemento.

Tiragem impressa: 5.000 exemplares

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