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A jornada solitária das brasileiras que abortam

 

Por Marina Reis e Renata Souza

 
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Arte por Gabriella Sales e Mariana Catacci

 

O início da vida humana é estudado pela ciência há séculos. Sem respostas concretas, quando se fala em aborto, a discussão é centrada no que sente — ou não — o embrião. Mas o conceito atual de embrião é recente, de meados do século 19. Há algumas décadas, saber se o bebê era saudável, por exemplo, dependia do nascimento. Hoje, até os traços físicos são vistos no pré-natal.

 

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O acompanhamento da gestação mudou por causa do avanço da tecnologia

 

Mesmo com a tecnologia, o nascimento ainda é um marco do início da experiência que é estar vivo. E, para nascer, é preciso alguém ter condições e vontade de gestar. A Pesquisa Nacional do Aborto (PNA), de 2016, revela que uma entre cinco mulheres aos 40 anos já fez pelo menos um aborto. Enquanto algo em torno de 10% das gestações evoluem para o aborto espontâneo, segundo o Ministério da Saúde.

 

 

O número expressivo de abortos está ligado a uma série de fatores. A decisão de tornar-se mãe, que para muitas mulheres é um sonho, um novo rumo que adiciona sentido à vida, depende de ter condições propícias.

 

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Cena do filme Juno (2007), em que a personagem descobre uma gravidez indesejada

 

Pela lei brasileira, o aborto pode acontecer em três casos: gravidez anencefálica; fruto de violência sexual ou que ofereça risco à vida da mulher. A criminalização não impede, porém, que abortos inseguros aconteçam todos os dias.

 

 

Escolher abortar no Brasil dói. Abortar sem escolha também dói. Mas o aborto espontâneo acontece mais do que ouvimos. Tantas vezes o sangramento ocorre antes que a mulher saiba que estava grávida. As junções cromossômicas, essenciais para a nossa existência, dão errado. Ou o embrião não se fixa corretamente. É a natureza.

 

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Pelo menos 10% das gestações no Brasil evoluem para o abortamento espontâneo

 

Apesar de o aborto ser mais comum na fase inicial da gravidez, para a mulher que escolhe gerar e se prepara para receber um filho, um vínculo é quebrado. Segundo o DataSUS (2019), a cada 100 internações por aborto, 99 são espontâneos e indeterminados e uma é caso de aborto legal.

 

 

O Ministério da Saúde aponta 89 instituições autorizadas a realizar o procedimento, mas um estudo da ONG pelos direitos humanos Artigo 19, que defende o acesso à informação em todo o mundo, diz que apenas 42 de fato o fazem. 

 

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Os medicamentos são usados como método abortivo legal e clandestinamente.

 

Com as restrições para o aborto legal, abre-se um mercado clandestino. Apesar de sua eficácia ter sido descoberta por brasileiras, um dos medicamentos abortivos mais populares do mundo é ilegal no país. Por aqui, os procedimentos clandestinos prevalecem, embora sejam arriscados, causando a morte de uma mulher a cada dois dias.

 

 

A decisão pelo aborto pode estar ligada a diversos fatores: pouca idade, falta de estrutura financeira e familiar, falta de apoio do parceiro e outros. Para muitas mulheres, ter um filho pode significar um desvio do caminho que elas se vêem traçando. Para todas que abortam, entretanto, há uma avalanche de sentimentos. Alívio, culpa, vergonha, medo, tristeza, vontade de recomeçar. Cada processo é diferente, mas algo que permeia todos esses caminhos é a sensação de julgamento sob o olhar público.

 

Histórias que inspiraram essa reportagem

Karina Cirqueira é estudante de fonoaudiologia e não tem filhos

Raquel Kaveski é bancária e mãe de uma filha

Maria Silva* é dona de casa e mãe de dois filhos

*Nome fictício

Colaboraram

Bruna Falleiros, psicóloga e ex-colaboradora do projeto “Milhas pela Vida das Mulheres”

Helena Paro, obstetra e líder da equipe de aborto legal para mulheres vítimas de violência sexual do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Uberlândia

Mariana Ribeiro, embriologista clínica especializada em fertilização in vitro

Maiara Benedito, psicóloga atuante no apoio de gestantes e puérperas com ênfase às questões raciais

Roseli Nomura, advogada, obstetra e professora da Escola Paulista de Medicina da UNIFESP

 

Quem vê Carla, não vê coração

 

Por Natalia Belizario

 

Quem vê Carla, não vê coração. Ela entrava todos os dias no escritório compenetrada, carregando a bolsa num braço e o respeito no outro. Eu, a estagiária, achava que ela era uma daquelas executivas estressadas, que não sabia o que era dar risada das coisas. Errei feio. Precisei pegar uma carona um dia e ela se ofereceu para me levar de volta ao escritório. No meio do caminho, tinha uma passeata na marginal Pinheiros pedindo intervenção militar. Ela deu uma risada alta dentro do carro e falou “não é possível”.
Quando entrevistei Carla, não dividíamos mais a mesa de trabalho. Ela foi demitida, junto com todas as diretorAs da agência de comunicação na qual eu ainda trabalho. Eu não estava lá no dia que ela recebeu a notícia, mas dizem que ela saiu chorando. Quem viu Carla, naquele dia, viu coração. Sua dedicação ao trabalho e seus 20 anos de experiência profissional aceleraram o relógio do desemprego. Depois de pouco tempo, ela encontrou um novo trabalho. Respondeu à minha entrevista entre uma reunião com cliente e outra. Carla não vive do passado: o maior orgulho de sua carreira é o momento atual. “E tudo o que eu fiz para chegar até aqui”, completa.
Apesar da imponência ou, quem sabe, por conta dela, Carla enfrentou o machismo no ambiente de trabalho. Ouviu que sua seriedade era motivada “por aqueles dias do mês”. Sua assertividade como diretora ganhou outro nome: agressividade. E na agência de comunicação, que adora usar termos em inglês, Carla era “bossy”¹. E como já diria Beyoncé: Carla não é mandona. Ela manda. Ainda assim, ganhou menos que homens que exerciam o mesmo cargo que ela. Acredita que isso aconteceu porque os homens de sua geração são melhores em negociar salários, por não terem medo de valorizar seus feitos. Já as mulheres foram criadas para serem modestas. O currículo de Carla não é, nem de longe, modesto: trabalhou nos maiores grupos de comunicação do país, atendeu contas de empresas mundialmente reconhecidas, como a Amazon, e ainda teve tempo para fazer mestrado e outras especializações.
Carla confessou, ao final de entrevista, o que gostaria de dizer para ela mesma no início da carreira: “Você vai passar por momentos desafiadores que te farão questionar todas as suas decisões. Mas são eles que te farão crescer como profissional e como ser humano”. Para sobreviver no mercado machista, Carla escondeu seu coração dos desafios profissionais. Mas sua dedicação pulsa, a todo tempo, ali dentro.

 

¹De acordo com o dicionário de Cambridge, “bossy” é uma pessoa que sempre diz aos outros o que fazer.

Um remédio, dois fenômenos

 

Por Ana Luisa Moraes

 

Logo depois do sexo, uma mulher sacode vigorosamente uma garrafa de coca cola e a insere na entrada da vagina. O líquido chega até a entrada do útero ─ na saída, promete levar com ele todos os espermatozóides depositados ali há pouco. Coca, vinagre, desinfetante: antes dos anos 60, grande parte das mulheres só tinham acesso a esses métodos se não quisessem engravidar. O diafragma, uma “tampa” que cobre o colo do útero, e a camisinha já existiam ─ o primeiro, era de difícil colocação e caro. Já o segundo dependia da boa vontade dos homens, e, surpresa, eles quase nunca topavam usar.
Tudo isso mudou radicalmente no começo dos anos 60, quando a pílula anticoncepcional chegou ao mercado. Discreta e eficiente, ela permitiu, pela primeira vez, que as mulheres fossem as únicas responsáveis pela decisão de quantos filhos teriam e quando eles nasceriam: mesmo que o marido se opusesse, a mulher podia tomar o remédio sem que ninguém soubesse.
Já naquela época, muitas usuárias reclamavam dos efeitos colaterais causados pelos hormônios da pílula: “Dores, inchaço, náusea, coágulos no sangue, secura vaginal. Elas tentavam mudar, usar camisinha, tabelinha, mas não eram tão eficientes”, explica a professora de história Joana Prado. Atualmente, o anticoncepcional possui 85% menos hormônios que nos anos 60 ─ mesmo assim, um movimento crescente contra o seu uso vem ganhando força.
No Facebook, a página “Vítimas de anticoncepcionais. Unidas a favor da Vida” reúne mais de 130.000 curtidas. Lá, e em grupos fechados, mulheres relatam casos de trombose, enxaquecas, baixa na libido e outros problemas que estariam ligados ao uso da pílula.
No Brasil, 27% das mulheres em idade fértil usam o anticoncepcional. O número é alto, mas algumas iniciativas recentes apontam para uma direção contrária ao uso de métodos hormonais. O diafragma, por exemplo, foi redesenhado em 2014 pela primeira vez em 50 anos, dessa vez, mais seguro. O DIU de cobre dos anos 60 causava diversas infecções. Agora, ele é considerado mais seguro do que a própria pílula, e, entre 2010 e 2013, as vendas do dispositivo no mundo aumentaram em 33%. Além disso, algumas mulheres utilizam métodos de percepção da fertilidade 100% naturais, encorajadas principalmente por livros e grupos no Facebook.
A médica de família e comunidade, Luiza Cadioli, diz que muitas mulheres querem permitir que o corpo, antes silenciado pelo anticoncepcional, se expresse: “Elas estão começando a se questionar o por quê de o corpo delas ter que receber hormônio e o dos homens não”. Mesmo assim, ressalta: “Para muitas, a pílula ainda é uma boa opção. Por isso, dizer que elas têm que parar ou têm que tomar é errado. A mulher não ‘tem que’ nada”.

Violações

 

Por Nyle Ferrari

 

Fecha as pernas, isso é jeito de menina sentar? Para de comer, é por isso que tiram sarro de você na escola. Esse peitinho tá chamando muita atenção, bota um sutiã. Bom dia, princesa. Fiu-fiu. Que rabo, hein. Vai com essa roupa pro trabalho? Trinta e cinco anos na cara, escolhe outro corte de cabelo. Ih, mau humor e esse calor todo é culpa da menopausa. Olha essa foto, você era tão linda novinha. Já pensou em fazer uma plástica? Poderia ter tido filho, mas daqui uns anos vai morrer sozinha, coitada. A gente põe uma roupa bonita e passa maquiagem ou vela de qualquer jeito?

 

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Por Nyle Ferrari

O claro! é produzido pelos alunos do 3º ano de graduação em Jornalismo, como parte da disciplina Laboratório de Jornalismo - Suplemento.

Tiragem impressa: 5.000 exemplares

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