Baixar, deletar e emoji são palavras que, com o tempo, deixaram de ser exclusivas do mundo virtual e passaram a estar entre importantes dicionários pelo mundo. Antigamente, a inclusão de verbetes dependia de uma “sabatina” de cinco anos, para ver se eles pegavam entre as pessoas. Mas a língua abraça cada vez mais rapidamente o que lhe é diferente.
Para uma geração que já cresceu falando o “internetês”, “baixar” é comum como vírgula. Porém, a implementação de outras construções que aparecem dentro da língua podem vir acompanhadas de alguns obstáculos.
A linguagem não binária, por exemplo, nasceu de uma necessidade. Pessoas que não se identificam com nenhum dos gêneros admitidos pela norma padrão da língua portuguesa criaram uma forma de participar da língua que usam cotidianamente. Na visão de Lysandre, uma pessoa não binária de 19 anos, seria importante que a língua rejeitasse a binaridade de gênero, porque isso mostraria o reconhecimento da existência das pessoas não binárias pela cultura e pela sociedade.
As línguas e suas variantes nascem espontaneamente, emergindo das necessidades, usos e práticas. Para Iran Ferreira de Melo, pesquisador em Linguística, a língua é construção coletiva social e histórica sempre em disputa — sempre um processo contínuo enquanto houver falantes. Por isso tantas criações, perdas e reconstruções.
A prova dessa disputa vem na reação às mudanças. Por propor novas designações de gênero, grupos LGBTQIA+ são acusados de “corromper as regras gramaticais”, como o foram no texto do PL 5198/20, que busca proibir o “gênero neutro” em escolas, concursos públicos e bancas examinadoras.
Fato é que estranhamos mudanças, mesmo em relação a algo naturalmente mutante, como as línguas, cujo começo e fim trocam tanto de lugar um com o outro. Apesar de usarmos a linguagem todos os dias como se fosse mais um membro do nosso corpo, nenhuma língua é pedra lapidada. As criações na língua são constantes na história. O que varia é como elas interagem e são adotadas por diferentes grupos da sociedade.
O escritor mineiro Guimarães Rosa não foi contemporâneo da maioria das discussões sobre o gênero na língua portuguesa, mas sua inventividade pode nos ajudar a refletir sobre elas. Reconhecido por usar neologismos, brincar com o português arcaico e elementos de outras línguas, Rosa e sua literatura em muito simbolizam a construção social que é a língua: uma obra aberta com várias possibilidades. Ela emerge do mesmo solo que é a comunidade, se ramifica em raízes na forma de vozes e gestos para se transformar de tempos em tempos como as estações do ano.
Colaboraram
Érika Gimenes, formada em Comunicação Social pela Universidade Federal de Juiz de Fora, atua profissionalmente como estrategista de conteúdo.
Fabiana, professora no projeto Girassol, localizado na Zona Oeste de São Paulo, que atua com a alfabetização de jovens e adultos.
Iran Ferreira de Melo, professor na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), mestre em Linguística pela UFPE e doutor em Letras pela USP.
Lysandre, 19 anos, estudante.
Regina Pereira, jornalista e uma das coordenadoras da Oficina de Leitura Guimarães Rosa, abrigada no IEB-USP.
Vozes da quietude
 
Por Gabriel Bastos
 
Ilustração: Thais Navarro
Sabe quando você precisa de um consolo e a melhor forma de consegui-lo é de forma silenciosa? Ou então, quando não falar nada numa discussão parece a melhor opção? Pois é, por mais que a gente não perceba, estamos falando a todo momento sem verbalizar nada. Nossos gestos, olhares e linguagem corporal por si só, dizem muito por nós.
Ainda assim, sem falar muito, somos compreendidos. Isso porque, “um gesto – realmente – vale mais que mil palavras”. Nos anos 60, Albert Mehrabian pesquisou sobre isso. O professor de Psicologia da Universidade da Califórnia em Los Angeles apontou que 55% da comunicação fica por conta das expressões faciais, quando se trata dos nossos sentimentos e atitudes uns com os outros. Seguindo essa ideia, os outros 38% seriam da tonalidade da voz, enquanto apenas 7% diriam respeito às palavras.
Hoje em dia, a ciência entende que é o conjunto de tudo isso que nos permite interagir socialmente. Mas o peso dessa comunicação não-verbal fica evidente numa paquera, como exemplifica Sérgio Kodato, professor de Psicologia Social. Quando há um clima de romance, os olhares insinuantes e gestos discretos são bastante relevantes. Ou seja, só um olhar ou um sorriso podem ser a escolha certa para conquistar alguém, ao invés de palavras, que podem acabar causando um belo de um mico.
Até mesmo quando estamos na presença de um médico, o nosso corpo fala. A professora Rosa Maria Mesquita da EEFE-USP observou em seus estudos que além dos exames e diagnósticos, um profissional da saúde também conta com a linguagem corporal de um paciente para saber se ele está doente ou não.
Nem pensamos nisso, mas até ao caminhar passamos uma mensagem aos outros. Rosa constatou também que pacientes podem mostrar seu estado emocional através dos passos. E isso ficou bastante claro ao analisar pacientes com estado grave de depressão, que demonstram grande tensão em seus movimentos.
Indo além, há quem diga que só nos comunicamos a partir do momento que observamos o rosto de alguém, como explica Deodato Rafael. O jornalista e pesquisador da comunicação comentou uma teoria de que a comunicação só começa quando duas pessoas estão cara-a-cara. Assim, o silêncio, uma expressão facial e aspectos que não verbalizamos seriam bem mais importantes nas nossas relações, por apontar como uma pessoa recebe essa interação. Essa é uma das vertentes de estudo do filósofo francês Emmanuel Lévinas, mencionado por Deodato.
Seja através do que o nosso rosto mostra, da forma como reagimos ao mundo e nos portamos diante da vida, ou mesmo ao escolher não expressar o que pensamos, dá pra imaginar que ainda vamos dizer muito, sem pronunciar quase nada. Mas, como defende Sérgio Kodato, “A ausência da palavra, a não resposta, a mudez, tudo se constitui em gesto e mensagem singular, no contexto da comunicação”.
Emoji-se
 
Por Juliana Santos
 
Clique aqui e confira a matéria especial do claro! Linguagem sobre a linguística dos emojis.
Créditos: Amanda Péchy
O mundo na ponta da língua
 
Por Wender Starlles
 
Ilustração: Amanda Péchy
Marianna Zawadi, 22, intercambista do curso de Relações Internacionais da USP é fluente em quatro idiomas, dentre os 7.111 vivos. De estatura média, pele negra em harmonia com os olhos e cabelos trançados, a jovem é dona de um sorriso contido.
Apesar da aparente timidez, bastam apenas alguns minutos de conversa para ela se sentir à vontade e agir com enorme simpatia. Na fala levemente pausada, quase passa despercebido o fato dela ser estrangeira: o sotaque é leve e sutil.
Os olhos da moça brilham de orgulho ao falar de sua cidade natal, Goma, na República Democrática do Congo. Lá, aprendeu duas línguas nativas: o swahili, com aproximadamente 98 milhões de falantes, e o francês, com 280 milhões, a oficial do país. Porém, na infância, seus pais não permitiam que ela e seus 11 irmãos falassem, em casa, a língua dos colonizadores, no intuito de preservar a cultura ancestral.
Fora do ambiente familiar, foi inevitável que ela estabelecesse contato com o francês. Marianna passou a frequentar creches e outros meios sociais ao longo da infância. Daí por diante foi só questão de tempo para dominar a langue française.
Na pré-adolescência, ela e sua família mudaram-se para a capital Kinshasa, onde morou por oito anos. Lá, entrou em contato com o lingala, idioma bastante comum entre os países da África Central e, voilà: tornou-se fluente em mais uma.
A essa altura, faltava pouco para Marianna ser poliglota. A questão foi resolvida com sua vinda ao Brasil. Em apenas três anos, ela aprendeu do começo ao fim a língua portuguesa. No entanto, o processo não foi fácil, e envolveu muita dedicação. Quando chegou na Universidade Federal de Roraima, seu primeiro destino acadêmico, entrou no curso de “português para estrangeiros”. Após um semestre, seu lado autodidata entrou em ação através da escrita, da leitura e de muita conversa.
E Marianna não pretende parar por aí: a congolesa ainda quer ser fluente em espanhol e inglês. “O mundo fica pequeno para quem vê no estudo de línguas um jeito de se sentir livre”, disse.
Editorial: Homo linguisticus
 
Por Bruno Carbinatto e Sabrina Brito
 
Já dizia o ditado: “A caneta é mais poderosa que a espada.” É por meio da escrita, da fala, da música, do cinema que o ser humano se comunica — e esse poder é muito maior do que a simples força bruta.
Ainda assim, é claro que a capacidade de interagir com outros indivíduos não é exclusiva do homem: golfinhos conversam por meio de sons, abelhas se entendem com o uso de diferentes movimentos durante o voo e assim por diante.
No entanto, somos nós os únicos — até onde sabemos — que fazem da conversa a nossa principal ferramenta de compreensão do meio e do outro. A língua tem o poder de construir impérios e determinar o rumo de civilizações, e sua decadência pode significar o fim de toda uma cultura. Nós usamos a linguagem como forma de agregar pessoas em torno de um objetivo comum, seja ele político, social ou simplesmente humano. E é isso que nos faz quem somos.
Convidamos você a se aventurar pelas nuances da linguagem, desvendando fatos e conhecendo histórias que elucidam o porquê dessa ferramenta ser tão importante.
“Não deixe a língua morrer, não deixe a língua acabar”
 
Por Pedro Vittorio e Thais Navarro
 
Todos os dias, Jacildo Ribeiro, 48, recebe os filhos em casa depois da escola. Ele os ajuda nas lições de casa — entre elas, o estudo do iatê. Trata-se da língua falada pela comunidade indígena dos Fulni-ô, da qual Jacildo, arte educador, faz parte. Localizada em Águas Belas, 270 quilômetros a sudoeste de Recife, Pernambuco, a comunidade indígena é uma das poucas do Nordeste que mantém sua língua viva.
A mais de 2500 quilômetros de Jacildo, em Serafina Corrêa, Rio Grande do Sul, Edgar Maróstica, 54, apresenta um programa de rádio aos domingos. Quem sintoniza ouve Edgar falar em talian — idioma nascido da mistura entre dialetos italianos e o português e que hoje possui 500 mil falantes estimados.
Para Jacildo e Edgar, a língua é bem mais que um conjunto de palavras. “O iatê representa nossa identidade”, diz Jacildo. O ensino do iatê prepara os Fulni-ô para seu ritual mais importante: o Ouricuri. De setembro a outubro a comunidade troca de aldeia para a prática — sobre a qual pouco se sabe, dado o sigilo mantido pelos Fulni-ô. “Durante o Ouricuri, falamos 90% em iatê. Sem isso, perdemos nosso ritual.”
“Uma história contada em talian tem outro sabor. A língua influi no nosso jeito de ser”, diz Edgar. Em 2014, o talian foi reconhecido como idioma co-oficial pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), ou seja, divide oficialidade com o português, mas a nível municipal.
Jacildo e Edgar lutam para manter suas línguas vivas. De acordo com dados da UNESCO de 2017, a cada 14 dias morre um idioma no mundo — hoje há 178 em risco só no Brasil. Quando acontece, o impacto é profundo: “Perder a própria língua faz muitos povos não serem mais considerados indígenas, por exemplo”, diz o linguista Thomas Finbow, da Universidade de São Paulo.
Há quem ajude não sendo das comunidades de falantes. Luís Ramos, engenheiro, é branco e filho de professores. Em 2015, criou o Dicionário Ilustrado Tupi Guarani, no qual reuniu verbetes de diversas línguas. Um dos motivos foi considerar superficial o ensino sobre povos indígenas nas escolas. “Temos que aprender a conviver com diferenças”, diz. “Por isso questões indígenas são tão importantes.”
O auxílio do governo também é bem vindo. Hoje o iatê e o talian são ensinados em algumas escolas públicas. “Isso ajuda a não perder a língua”, diz Jacildo. Há também o Prodoclin (Projeto de Documentação de Línguas Indígenas), em que trabalham linguistas e pesquisadores. Indígenas ou não, individuais ou coletivas, estas iniciativas vieram para ficar. É como diz Edgar: “Enquanto a gente tiver uma gota de sangue, vamos lutar para manter a língua viva”.
Teaser – claro! Linguagem
 
Por Andre Martins
 
Ahh… claro! Linguagem
Confira o teaser da edição de março de 2019.
Esse é o meu lugar
 
Por Giovanna Wolf Tadini
 
Linguagem não é regra de gramática. Mais que isso, ela é capacidade inerente que o ser humano tem de expressar pensamentos e sentimentos. Apesar da importância da linguagem para o funcionamento das coisas estar escancarada em todo o lugar, para todo mundo ver, o jeito que ela se cultiva no indivíduo é menos óbvio.
Paulo Ribeiro é estudante da Énois, escola de jornalismo para jovens entre 16 e 21 anos das periferias de São Paulo, que trabalha com a turma o desenvolvimento das ideias, pensando no jornalismo e na cidadania. Três vezes por semana durante dez meses, no período da tarde, ele vai para o sobrado a algumas esquinas de distância da estação Armênia do metrô ter aulas envolvendo técnicas do jornalismo, gramáticas e discussões políticas e sociais. Paulo explica que “a ideia da ÉNois é trazer a autonomia de busca de informação para uma parcela da população que ainda não a tem”. Essa autonomia está relacionada com o domínio da linguagem, ou seja, o desenvolvimento da capacidade de se expressar para poder lançar opiniões e exercer a função de cidadão.
Para uma pessoa desenvolver suas próprias ideias é preciso educação e reconhecimento de seu espaço como sujeito no mundo: entende-se as engrenagens para questioná-las. Feito isso, atinge-se a liberdade a partir da autonomia. Paulo Freire, em seu livro “Pedagogia da autonomia”, diz que “minha presença no mundo não é a de quem a ele se adapta, mas a de quem se insere. É a posição de quem luta para não ser apenas objeto, mas sujeito também da história.” E completa que essa colocação de um indivíduo no mundo faz com que ele seja capaz de “valorar, intervir, de escolher, de decidir, de romper.” Na Énois, o curso é coordenado por uma jornalista e um psicólogo, esse último com a função de trazer a reflexão sobre o eu jornalista, o sujeito que está diante realidade com a intenção de reportá-la. Para Paulo, a presença do psicólogo é “um mistério, mas funciona”. A única sala de aula da escola, que comporta os dez alunos do curso, é informal, tem uma lousa que mistura anotações dos coordenadores e dos estudantes e a quantidade de puffs é a mesma que a de cadeiras. Em uma das paredes há cartazes com desenhos de mapas descrevendo aspectos subjetivos da periferia onde cada um mora, um exercício para um projeto prático que eles fazem, o Prato Firmeza, guia gastronômico das quebradas de São Paulo. Os rabiscos fazem o reconhecimento do espaço em que os estudantes vivem.
Depois que o espaço é entendido, é possível questioná-lo e expressar opiniões sobre. Não é a toa que Marcos Bagno, linguista brasileiro, trata de preconceitos e normas cultas e ocultas da língua como um estudo sociológico, considerando as interações entre indivíduos e comunidades. A linguagem é subjetiva e determinante para alguém se sentir autônomo e apto a exercer a cidadania.
O claro! é produzido pelos alunos do 3º ano de graduação em Jornalismo, como parte da disciplina Laboratório de Jornalismo - Suplemento.