Trabalhar com uma vista para o mar é o sonho de muitos, mas trabalhar em um escritório flutuando sobre ele é uma oportunidade para poucos. No porto de Rijnhaven, nos Países Baixos, está ancorado um escritório flutuante: o Floating Office Rotterdam (FOR). O edifício de três andares foi projetado para ser desmontável e resistir às variações do nível da água, sendo capaz de subir e descer dois metros por dia, flutuando conforme a maré.
A 9.600 km de distância do FOR, em Joanópolis, no interior de São Paulo, brasileiros também criaram empreendimentos sobre as águas. Em 2019, a empresa Altar desenvolveu duas casas flutuantes que ficam ancoradas em represas e estão disponíveis para hospedagem. O projeto promete ser um meio sustentável de reconexão com a natureza.
Porém, ocupar corpos d’água e suas margens não é algo tão raro. Desde a Revolução Agrícola, populações desenvolvem tecnologias que possibilitam a ocupação de áreas sujeitas a variações do nível da água – como as enseadas, deltas e várzeas de rios. Os moradores vivem em casas que flutuam sobre troncos ou de palafitas para impedir que as residências sejam destruídas durante os períodos de cheia. A técnica é utilizada em diversos locais, como às margens do Rio Amazonas ou do Rio Mekong, na China.
Além de fenômenos naturais, como os períodos de cheia e vazante, outro fator tem alterado o regime fluvial: as consequências da mudança climática. Diante desse cenário, algumas empresas passaram a dedicar esforços para mitigar os agravantes desse problema. O FOR e o Altar, por exemplo, foram pensados para agredir minimamente a natureza: as estruturas são de material sustentável e placas solares geram a energia necessária. Contudo, no escritório, os resíduos gerados são apenas redirecionados para serem reciclados em terra firme. Na casa, um biodigestor trata o esgoto e o lixo sólido é levado a uma fazenda próxima para ser reaproveitado.
Para Alexandre Delijaicov, especialista em infraestruturas urbanas-fluviais, a ocupação das águas, da maneira como acontece hoje, não pode ser vista como uma alternativa para os problemas de regiões submersas ou superlotadas. Seriam necessárias, a longo prazo e em larga escala, a viabilização do tratamento de esgoto, a inserção de uma energia limpa e segura e a extinção do lixo para que os escritórios e casas flutuantes – e os que estão em terra firme – funcionassem de maneira sustentável. “A vida dos seres humanos no planeta está submetida a um modo de produção extremamente prejudicial para a saúde e equilíbrio da natureza. Tanto faz se estão embarcadas ou não.”
Barreiras invisíveis
 
Por Elaine Borges
 
Arte: Nathalie Rodrigues
No Brasil, cerca de 2,9 milhões de pessoas se identificam como gays, lésbicas ou bissexuais, o que equivale a aproximadamente 1,8% da população adulta. Uma pesquisa realizada em 2021 pelo Center for Talent Innovation — organização sem fins lucrativos focada em pesquisas sobre grupos subrepresentados no ambiente de trabalho — revelou que 33% das empresas brasileiras não contratariam pessoas LGBTQIAPN+ para cargos de liderança.
As ações afirmativas, derivadas dos movimentos sociais que emergiram após a redemocratização brasileira em 1985, demandaram uma postura mais ativa do Poder Público em relação a questões como raça, gênero e etnia. Elas são uma alternativa para a integração, retenção e ascensão dessas pessoas no mercado de trabalho, já que visam combater a discriminação enraizada na sociedade.
No entanto, não existe nenhuma regulamentação específica para esse grupo. Por isso, os dados indicam que a porcentagem desta população em posições de liderança ainda é baixa. De acordo com a consultoria Great Place To Work, apenas 8% dos profissionais brasileiros em cargos de liderança se autodeclaram homossexuais, bissexuais ou transgêneros. Entre os que ocupam uma cadeira na presidência, o número cai para 6%.
Para a população trans, esse número é mais agravante. Apenas 4% das mulheres trans no Brasil estão formalmente empregadas. A Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) estima que 90% desse grupo recorre à prostituição como fonte de renda principal e única possibilidade de subsistência.
Felipe Carvalhal, pesquisador na área de diversidade, considera que não existe uma inclusão de pessoas LGBTQIAPN+ em cargos de liderança, mas sim uma tentativa de entender e mapear este cenário. Outros fatores que contribuem para a baixa ascensão profissional desse grupo incluem recortes de raça, classe e gênero. O pesquisador aponta que as oportunidades são significativamente menores para pessoas negras e pobres em comparação com homens brancos da mesma classe social: “Essas disparidades, combinadas com uma sexualidade considerada desviante, agravam ainda mais a situação”.
Colaboradores: Alexandre Putti, diretor de comunicação do Fundo Positivo; Daniela Damiati, gestora de ESG no Instituto Ethos; Felipe dos Anjos Almeida, especialista em marketing digital na Accenture; Niodara Faria, CEO da consultoria Novas Narrativas.
…o que fazemos para ser parte da família?
 
Por Erick Lins e Leonardo Vieira
 
Arte: Adrielly Kilryann e Guilherme Castro
Vestir a camisa da empresa, ter a sensação de pertencimento à família empresarial, se doar ao máximo ao trabalho, ter o pet ao seu lado durante a jornada, confraternizar com os colegas durante os finais de semana, poder se vestir da maneira mais confortável, happy hour. Empregado? Não! Colaborador, família.
De acordo com Ana Cristina Limongi Franca, professora da Escola Politécnica da USP, além de especialista em gestão de pessoas e comportamento organizacional, esse cenário surgiu a partir da década de 1990, com a expansão do neoliberalismo, o que levou a ações de gestão da qualidade do ambiente profissional e humanização. “Para as empresas, é uma forma de gerar aproximação, por outro lado, transmite uma falsa sensação de poder ao funcionário.”
Essa narrativa, entretanto, pode se configurar em assédio moral no trabalho, segundo a Cartilha de Prevenção ao Assédio Moral do Tribunal Superior do Trabalho (TST). O documento explica que as empresas utilizam estratégias organizacionais – como impor condições de trabalho personalizadas, diferentes daquelas acordadas e previstas em contrato, e delegar tarefas impossíveis de serem cumpridas – criam uma cultura institucional de humilhação e controle. Algumas dessas são amparadas pelo discurso organizacional.
Maria Clara do Nascimento*, coordenadora de recursos humanos (RH), esclarece que viveu uma situação de abuso: “essa cultura acolhedora, familiar, era uma estratégia de fazer com que nós [funcionários] achássemos normal passar tanto tempo dentro da empresa”. As consequências desse sistema podem afetar a saúde física e mental dos funcionários. Ela conta que a pressão da empresa desencadeou crises de ansiedade, insônia e burnout. A terapia é mais sobre trabalho do que qualquer outro assunto.
Para o vendedor, João Guilherme de Andrade*, esse discurso funciona apenas quando convém para a empresa. Ele relata que durante o expediente, em um sábado, véspera do dia das mães, ninguém havia falado de fazer hora extra. Próximo ao fim da jornada, seu chefe perguntou se ele poderia ficar duas horas a mais. “Informei que não seria possível, pois tinha um compromisso marcado. Ele começou a falar que eu não valorizava a empresa, que era ingrato.”
*Os nomes foram alterados a pedido dos entrevistados
“sempre foi isso, mas …”
 
Por Mateus Cerqueira
 
Arte: Adrielly Kilryann e Guilherme Castro
Encerrar uma carreira e começar outra é uma vontade de 60% dos profissionais brasileiros, conforme levantamento do LinkedIn. Em parte, porque aspectos como autossatisfação e bem-estar com o trabalho estão ganhando espaço entre a população, e por outro, porque a insegurança financeira na atual posição desperta a necessidade de mudança de profissão.
Esse fenômeno, conforme a psicóloga do trabalho, Camila Caldeira, entretanto, não é livre de desafios e pode gerar medos e arrependimentos.
“Partimos do pressuposto que essas pessoas que optam pela transição já gozam de uma boa condição financeira e estabilidade. Então, como desapegar? É nesse momento que elas se questionam sobre os riscos dessa decisão”.
Ela explica que as pessoas com esse privilégio não buscam somente a estabilidade financeira, “mas também estarem satisfeitas e com um trabalho adequado aos seus anseios, cotidiano e, até mesmo, propósitos”.
No caso de Rafael Tessaro, 26, a satisfação com o que faz veio em primeiro lugar. “Passei para a polícia, sonho de menino. Mas mudei. Fui cursar engenharia civil, trabalhei no mercado imobiliário, mas saí”.
Em seguida, ele entrou no mercado financeiro, mas também observou que aquela não era a sua área. Hoje, toca um e-commerce de moda feminina.
Ao ser questionado se estava feliz com o seu negócio, ou se teve algum arrependimento sobre suas trocas na trajetória profissional, ele respondeu, respectivamente, que “sim” e que “não, sem arrependimentos”.
Apesar disso, transitar de uma profissão a outrafoi um desafio para Rafael, o que o fez duvidar sobre a porobabilidade de suas escolhas darem certo e do risco de ficar desocupado, como corre com 10% dos brasileiros, segundo o IBGE.
Esse também foi o sentimento de Andressa Bovolenta, 32, profissional de TI e educadora física. “Estudei educação física na USP e, depois de um tempo, consegui um bom retorno financeiro, trabalhando em uma academia”, disse. Entretanto, a rotina afogava Andressa, o que a obrigava a deixar em segundo plano outras atividades do dia a dia. Então, foi aí que surgiu a ideia de mudar de área.
Atualmente, ela trabalha como analista de software em um grande banco e se diz feliz com a transição que fez na carreira, embora continue dando aulas de personal para complementar sua renda. “Mas foi em TI que me redescobri”.
Entre os brasileiros, a transição de carreira ainda não é uma realidade concreta, já que fatores como desemprego e instabilidade financeira ainda assolam a sociedade. “Por isso, esse desapego é um privilégio. Não são todos que podem trocar de profissão no Brasil”, conclui Camila.
Um impostor no ninho
 
Por Matheus Zanin e Sofia Kassab
 
Arte por Bruna Irala e Mayara Prado
Letícia abre seu computador, procura por uma vaga de emprego e, finalmente, a encontra. Tudo parece de acordo, mas alguma coisa a impede de clicar no botão de “candidatar-se”, e passa por sua mente se aquela posição é realmente para ela.
O “fenômeno do impostor” atinge qualquer um, principalmente quem enfrenta problemas como insegurança e falta de autoconfiança. Entretanto, sentir-se estranho ao sucesso e duvidar de suas capacidades afeta, sobretudo, pessoas que lidam com machismo, homofobia ou racismo diários. E os gatilhos para o despertar de seus efeitos ocorrem, geralmente, no ambiente de trabalho.
Uma pesquisa da Universidade de Heriot-Watt, na Escócia, por exemplo, constatou que mais da metade das mulheres já se sentiram impostoras em algum momento de sua vida, comparado com apenas 24% dos homens.
Desde a infância, Letícia aprendeu que meninas devem brincar de boneca, ao invés de jogos mais ativos, como correr, subir em árvores ou jogar bola. Os meninos, desde pequenos, participam de brincadeiras nas quais errar, perder e cair fazem parte do jogo. É ali que começa a construção do erro como “natural” aos homens, mas não para as mulheres.
Quando chegam ao mercado de trabalho, a cobrança que impõem sobre si se torna cada vez maior. Letícia acha que “deu sorte” ou que atingiu seus objetivos “por acaso”, não por competência. Pessoas com comportamentos semelhantes percebem mais os próprios erros do que os acertos. “O ‘ego’ dessas pessoas, isto é, a parte da psique que caracteriza a personalidade de cada um, é fragilizado”, explica a psicóloga Michelle Witzke.
A mesma dinâmica é notada em outras vivências fora do ambiente de trabalho. Em ambientes conservadores, a falta de diversidade prejudica a autoestima. “No mercado financeiro, mulheres se sentem mais inseguras ao lidar com investimentos. Desde cedo, elas não aprendem sobre como cuidar do próprio dinheiro”, diz Sofia Bacha, produtora de conteúdo sobre finanças.
A autossabotagem é outro efeito do estranhamento ao sucesso. Tal sensação faz parte da vida de minorias como a população negra. O racismo gera problemas na saúde mental de pessoas que são constantemente desafiadas e questionadas sobre suas capacidades. “Tenho amigos negros que se queixam da auto-cobrança dentro do ambiente acadêmico”, relata Thiago Ferreira, doutor em comunicação. Qualquer que seja a causa, a consequência é a mesma: um ciclo vicioso de insegurança e ansiedade.
Hoje, Letícia não sabe se tais efeitos passarão. Ela começou a se sentir menos impostora quando começou a fazer terapia. Paralelamente, entrou em uma empresa com um departamento de recursos humanos mais ativo e preocupado com os colaboradores. Mesmo assim, os estímulos para o fenômeno são raízes de problemas sociais graves, difíceis de serem arrancadas.
Se, por um lado, é possível amenizar o lado impostor com sessões de terapia e a segurança gerada por um departamento de RH presente, por outro, existem questões coletivas que permanecem. Resta a dúvida se, mesmo com mudanças estruturais, sentir-se impostor ainda será um mal na sociedade.
Colaboraram:
Gilnara Silva, analista de recursos humanos e psicóloga
Kamilla Maximos, gerente de marketing e criadora da página @eximpostoras no Instagram
Letícia Rosa, engenheira e ex-gerente administrativa
Manuca Ferreira, professor, doutor em comunicação e jornalista
Michelle Witzke, analista de recursos humanos e psicóloga
Sofia Bacha, advogada e criadora de conteúdo sobre investimentos
Jogo da oportunidade
 
Por Mateus Feitosa
 
Suas mãos estavam sujas e calejadas, mas isso não era um problema. Ao girar a chave na porta do carro o cheiro de seu interior tomou conta da garagem, e, assim que o sentiu subir em seu nariz, as cicatrizes de sua mão pareciam estar se curando sozinhas. O táxi novo só não brilhava mais que seus olhos. O sufoco havia passado. Queria chorar, mas não iria. O amanhã estava aí e nunca foi tão promissor. Entretanto, as coisas nem sempre foram assim.
Tudo começou com uma ideia. “A oportunidade sempre está lá, basta saber como enxerga-lá”. Pelo menos era isso o que sempre ouvia de seu pai. Ele saiu de casa cedo, com uma ingênua determinação. Caminhava com o mundo em suas mãos, nuas e sem nenhuma marca do trabalho. Foi para a cidade grande, que crescia sem pedir licença. Começou pequeno, porteiro de um prédio de luxo. “Colha os frutos de seu trabalho, todos começam em algum lugar”, lembrava de seu pai. Recebia pouco. Via as pessoas passando perto de seu balcão, sempre com pressa e com algum lugar para ir. Às vezes parecia que sabiam mais que ele, que tinham um rumo. Se fosse embora, alguém perceberia sua ausência? Ninguém sabia seu nome, era o “porteiro”. Pouco importava, faria seu nome.
A cidade pedia e ele atendia. Começou a fazer bico em construções. Deu entrada em um apartamento ao lado de uma das obras em que trabalhava. O lugar tinha três tímidos andares, era feito de tijolos que de tão desgastados já não brilhavam mais e pareciam estar prestes a sucumbir a qualquer momento. “Guarde, conte e invista seu dinheiro”, dizia o pai em sua cabeça. Contava seu dinheiro como contava o preço de cada grão de arroz que comprava. Vivia um dia atrás do outro, caso pensasse demais perderia tempo.
Viu seu trabalho ganhando vida, em pouco tempo o prédio estava pronto. Três tímidos andares feitos de tijolos que sangravam de tão vermelhos. Nunca mais entraria lá, seu serviço estava completo. Apenas seu novo vizinho que teria todo aquele espaço para si só. Já ele, desfrutaria de seu feito somente da janela de seu minúsculo apartamento. “Trabalhará para os outros para que um dia trabalhem para você”, as palavras do pai pesavam em sua mente. Das suas mãos aquele lugar tinha nascido e a elas jamais voltaria.
Tudo bem. Usou o dinheiro da obra para colocar um táxi em sua garagem. O amanhã estava aí. Queria chorar, mas não iria. Sua mão já não doía tanto. Dali a pouco passou de um táxi a oito em seu comando, uma nova empresa.
Um dia seu vizinho entrou no táxi. Levou-o até o centro da cidade, mas, sem carteira e sem vergonha, seu passageiro pediu para deixar fiado. As coisas caminhavam bem, até que, como o motor do seu carro, o país parecia não funcionar. Recebia a mesma quantidade de dinheiro, mas ele já não valia mais a mesma coisa. Guardava tudo em sua poupança, até o dia que o Presidente pediu emprestado. Não tinha mais como sustentar sua nova empresa. Não importava, sua salvação estava ali. Seu vizinho iria investir em seu negócio. Mas, poderia ser fiado?
Corpos do ofício
 
Por Aline Naomi
 
O direito ao livre exercício de qualquer trabalho, ofício e profissão é uma garantia prevista no artigo 5º da Constituição Federal. Apesar disso, a prostituição, considerada a profissão mais antiga do mundo, é alvo de um extenso debate que, para além das questões moralistas, discute também a prática da atividade — incluindo sua regulamentação — e suas implicações sociais.
A prostituição é reconhecida como uma ocupação profissional pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) desde 2002, mas não é regulamentada. Tal reconhecimento serve para fins de classificação do MTE, mas não outorga nenhum direito trabalhista.
Em 2012, o deputado federal Jean Wyllys (PSOL) resgatou um projeto de lei que regulamenta a prostituição. Chamado de PL Gabriela Leite, em homenagem à prostituta e ativista falecida em 2013, o documento gerou uma discussão com diversas opiniões acerca do tema, inclusive entre as próprias prostitutas, mostrando que a questão está longe de ser unânime.
Para analisar essas opiniões, o Claro! conversou com a advogada Camila Sposito, integrante da rede de juristas feministas DeFEMde, e com o Comitê pela Abolição da Prostituição, organização que defende a perspectiva abolicionista, isto é, contrária à manutenção da prostituição.
Camila afirma que, com a falta de regulamentação, as prostitutas ficam sujeitas a péssimas condições de trabalho. “Pela ausência de fiscalização, devido à inexistência de leis regulamentadoras prevendo jornada de trabalho digna e compatível, condições sanitárias mínimas e adicional de periculosidade, elas têm que aceitar turnos ininterruptos e salários aviltantes”, afirma a advogada.
Na concepção abolicionista, no entanto, devem ser criados programas de auxílio à saída de mulheres da prostituição. “Entendemos que a legislação deve apoiar a emancipação das mulheres em vez de colaborar para a manutenção da estrutura que lhes escraviza”, explica o Comitê.
Segundo os abolicionistas, o sistema prostituinte é visto como resultado do poder estrutural dos homens sobre as mulheres, e, portanto, a solução é conceder possibilidades reais às prostitutas de deixar a prostituição.
Camila também aponta as atividades ilícitas ligadas à informalidade dos prostíbulos, como sonegação de impostos, corrupção de agentes públicos e associação com narcotraficantes. “Essa informalidade sujeita as trabalhadoras aos cafetões, uma vez que eles fornecem a estrutura que sustenta o negócio: a propina para o policial, a segurança, entre outros”.
O Comitê, por sua vez, defende a penalização de clientes e intermediários — cafetões e traficantes —, mas é contrário a qualquer medida punitiva às pessoas em situação de prostituição. “Um tratamento digno às pessoas prostituídas só pode existir dentro de um modelo que combata a prostituição focado em penalização de compradores de sexo, descriminalização das pessoas prostituídas e promoção de políticas públicas que possibilitem a saída da prostituição”.
Feito com o suor dos outros
 
Por Larissa Lopes
 
Com a sua idade, você já deve saber como os bebês são feitos. Mas e se te perguntarem sob quais condições são produzidas as suas roupas, os seus eletrônicos, a sua comida ou o seu carro? Você está ciente de como tudo isso foi parar nas suas mãos?
Com dados assombrosos, a plataforma Slavery Footprint estima que cerca de 42 escravos estejam por trás dos bens e serviços consumidos por um jovem de classe média. A partir da quantidade de produtos que você possui, o programa calcula quantas pessoas em situação análoga à escravidão estão envolvidas na produção.
E se engana quem acredita que apenas a indústria da moda perpetua a escravidão. Só na China, a jornada de trabalho de fabricantes de bolas de futebol chega a 21 horas por dia. Em Uttar Pradesh, Índia, mais de 200 mil crianças trabalham no mercado de tapetes.
Estima-se que ao redor do mundo cerca de 27 milhões de pessoas sejam traficadas e vivam sob algum tipo de exploração. Para se ter uma ideia, esse número é 2,5 vezes maior do que a população de Portugal, país que nos deixou como herança uma sociedade racista e escravista, que claramente não sucumbiu ao riscar da pena da Princesa Isabel.
O professor Jorge Souto Maior, da Faculdade de Direito da USP, lembra que, nos anos 1990, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) interpelou o Brasil para que algo fosse feito em relação às milhares de denúncias ao trabalho escravo. Após a bronca, em 1994, foi criada uma repartição no Ministério do Trabalho para cuidar do assunto. Dez anos mais tarde, três fiscais e um motorista do Ministério foram assassinados ao supervisionarem uma fazenda em Unaí, Minas Gerais.
“De lá para cá, o trabalho escravo continua existindo e nenhuma pessoa foi presa pelo crime. O máximo a que se chega é a ‘libertação’ dos escravos e a determinação de que o escravista pague os direitos trabalhistas que já deveria ter pago”, lamenta Souto Maior.
Só na cidade de São Paulo, seis empresas foram descobertas entre dezembro de 2014 e dezembro de 2016, nas regiões do Brás, Bom Retiro, Lapa e Vila Bela Vista.
Pois é, pertinho da sua linha de trem ou metrô. Você já fez a conta de quantos escravos estão no seu dia a dia?
O LOCAL OCULTO DA PRODUÇÃO
 
Por Marcelo Grava
 
Arbeit macht frei – em alemão, “o trabalho liberta” – era a frase que esperava milhões de prisioneiros em campos de concentração nazistas. Aqueles que a liam eram obrigados a trabalhar nas prisões, muitos até a morte. Em retrospecto, é fácil entender o absurdo dos letreiros: os nazistas submeteram seus prisioneiros a tudo, menos à liberdade. Mas, fazendo uma análise mais ampla, desde o surgimento da humanidade, será que o trabalho já foi exercido livremente, ou representou algum tipo de “libertação” para os povos?
No século XIX, dois teóricos alemães, Karl Marx e Friedrich Engels, observaram que toda sociedade, desde os primeiros humanos, desenvolveu suas próprias formas de transformar a natureza para sobreviver.
A dupla mostrou que a divisão do trabalho, as classes sociais e toda a base político-ideológica de cada época correspondem às condições de sua produção. Além disso, a classe que detém os meios de produção sempre explora as demais.
No capitalismo, segundo Marx e Engels, a burguesia é quem concentra os meios necessários para a produção da vida humana (infraestrutura, tecnologia, recursos naturais etc). Aqueles que não possuem tais meios, o proletariado, vendem sua força de trabalho para um capitalista, em troca de um salário.
Cléber Souza, 27, é um proletário. Trabalha desde a adolescência com manutenção de máquinas, e já passou por várias fábricas do ABC paulista. Hoje, é empregado da Método Manutenção. Ele conta que chegou a ficar 18 horas seguidas fazendo reparos em máquinas. “A fábrica é o setor onde a galera mais trabalha e menos recebe”, diz.
Cléber acredita que o trabalho é sempre exploratório. “Eu vejo a galera trabalhando muito, engolindo muito sapo e não recebendo o que lhe é de direito. A gente é responsável por todo o faturamento da empresa, mas o dono tá cada vez mais rico e o salário cada vez menor.”
Eis o que Marx e Engels consideraram a base da exploração capitalista: a extração de mais-valia. Trata-se da diferença entre o valor pelo qual uma mercadoria é comercializada e o valor pago ao trabalhador para sua produção, na forma de salário.
O trabalhador recebe apenas uma parcela do valor que produz. O restante, mais-valor, se transforma em gastos e lucro do capitalista. Através da mais-valia, o patrão gera a acumulação e a concorrência e garante seu domínio sobre o empregado.
Com 18 anos, Cléber participou de sua primeira greve. Filiou-se à Central Única dos Trabalhadores (CUT), mas percebeu que o sindicato submetia os trabalhadores a acordos pré-negociados com os patrões. Hoje, não pertence a qualquer central.
Sua realidade é como a de muitos trabalhadores em grandes cidades. Célio Viana é gari no Rio de Janeiro e, em 2014, protagonizou uma greve que rompeu com o sindicato, conquistou aumento salarial de 37% e fez a cidade, em pleno carnaval, perceber que não é maravilhosa sem a labuta diária e quase invisível da categoria.
Ele conta que os garis sempre questionaram as condições precárias de trabalho, e a paralisação de oito dias os ajudou a se valorizarem. “Você fazendo reuniões, falando pros trabalhadores que quem decide são eles e a direção do movimento não vai decidir nada além do que a categoria decide, faz eles se sentirem representados.”
Célio também não nutre esperanças no modelo sindical e defende que “a mudança parte do povo”. “Esses partidos e sindicatos que estão aí não nos representam. Uma nova direção tem que começar pela base. O povo, quando quer se organizar, consegue.”
O roteiro foi antecipado por Marx e Engels. Para eles, somente a livre organização do proletariado poderá superar o capitalismo e cessar o domínio de uma classe sobre outra, libertando a sociedade da propriedade privada e, por conseguinte, da exploração do trabalho.
Editorial – Trabalho
 
Por clarousp
 
Desde pequenos, somos questionados a uma definição. Ainda crianças, sabemos que o
somos, mas almejamos o mundo adulto com pressa. Recebemos a mais comum das
perguntas tão logo tenhamos consciência de que, um dia, vamos crescer: “O que você quer
ser?”. Ser. Não fazer.
Enquanto crescemos, na rotina diária dos adultos que nos cercam, nos programas aos
quais assistimos na TV e nos brinquedos que ganhamos, por vezes aprendemos que o que
escolheremos para a nossa carreira profissional será o que nos construirá enquanto
indivíduos. Enquanto pessoas. Nos acostumamos com a ideia e a empregamos com
destreza. Se alguém nos perguntar o que somos, com essas palavras, provavelmente
teremos de pensar muito antes de dar uma resposta simples como “sou feliz”.
Estamos habituados a rótulos: podemos ser médicos, advogados, professores ou
engenheiros. Mas não nos imaginamos como a pessoa que sequer tem seu trabalho
reconhecido. A pessoa que é julgada por transpor o senso comum no mundo profissional. A
pessoa desempregada.
Cultivamos sonhos, mas conforme somos realmente chamados à vida adulta, o sistema nos
ensina que, muito além de fazer o que gostamos, a atividade que desenvolveremos em
nossas vidas será a fonte de nosso sustento. Mais do que isso; lidamos com o excesso.
Temos de ser bemsucedidos e acumular não só dinheiro, mas também status e conquistas
de carreira para sermos reconhecidos de alguma forma.
Nesse tipo de lógica torta, talvez demoremos a perceber que, enquanto membros de uma
sociedade embasada nesses valores, julgamos as pessoas de acordo com seu trabalho.
Exploramos: construímos uma escala e temos dificuldade em reconhecer os direitos
daqueles que julgamos profissionalmente inferiores. Desprezamos: não encontramos valia
no que nos parece mais fácil ou menos intelectual. Não vemos que a competição e as duras
cobranças de um sistema que não nos permite a falha podem solapar a tranquilidade e a
paz de espírito absolutamente necessárias a qualquer ser humano.
Apesar de tudo isso, e como tudo na vida, o trabalho tem seu lado bom. Ele pode, sim, ser
um espaço de satisfação pessoal e de realização de sonhos, muitas vezes desligado de
qualquer expectativa financeira. Pode ser um espaço de luta por direitos e reconhecimento,
não só profissionais, mas também humanos. Um espelho de como a sociedade pode mudar
sua organização, suas ferramentas e até seus valores.
E dentro de todas as possibilidades e dificuldades, o trabalho é essencial. Do momento que
nascemos àquele em que abandonamos esse mundo, seremos cercados por ele, não
importa se na forma de um sonho, objetivo, ocupação, sobrevivência, fardo ou libertação.
Esta edição do Claro! convida você, leitor, a refletir sobre todas essas nuances do trabalho.
Questione a si mesmo: como elas moldam a sua visão de mundo?
O claro! é produzido pelos alunos do 3º ano de graduação em Jornalismo, como parte da disciplina Laboratório de Jornalismo - Suplemento.